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sábado, 2 de agosto de 2014

Índios de Alagoas: a etnomedicina

Sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012


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Umas poucas palavras!   

Luiz Sávio de Almeida        
                 Este trabalho da Professora  Dra. Clarice Novaes da Mota  lida com um dos temas de sua especialidade e, pela qual, tem reconhecimento nacional. Clarice é professora de Antropologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), sendo brilhante estudiosa dos índios Kariri-Xocó e Xocó, os primeiros de Porto Real do Colégio em Alagoas e os segundos em ilha sanfranciscana pertencente ao território de Sergipe.

                 Recentemente, ela publicou na Coleção Índios do |Nordeste ( EDUFAL) o livro Os Filhos de Jurema na Floresta dos Espíritos: ritual e cura entre dois grupos indígenas do Nordeste brasileiro e que é considerado referência de alto nível sobre o campo de investigação.

                 O exame que realiza da questão, em texto que foi apresentado na última reunião Nordeste da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, traz suas reflexões sobre o tema da medicina em seu viés étnico, a sua construção que ressalta o universo cultural, a qualificação dos significados.
O que Clarice faz!

Clarice Novaes da Mota é doutora em antropologia social pela University of Texas at Austin, 1987,e pós-doutora em Etnobotânica Médica pela University of Califórnia at Berkeley, 1991.  Tem atuado e pesquisado em comunidades indígenas brasileiras desde 1977, quando trabalhou como assistente de pesquisa da Dra. Carmem Junqueira, da PUC de São Paulo, em área indígena no norte do estado de São Paulo.  Trabalhou no Museu do Índio, do Rio de Janeiro, de 1980 a 1981, realizando pesquisa sobre relações inter-étnicas entre índios Akwe-Xavante da Reserva de São Marcos em Mato Grosso.  Foi presidente da ONG "Nação de Jurema", em Sergipe, cujo objetivo era educar a sociedade regional sobre a cultura das nações indígenas de Sergipe e Alagoas.  Tem vários artigos publicados no Brasil e no exterior, tendo publicado "Jurema´s Children in the Forest of Spirits: ritual and healing among two Brazilian indigenous communities", in 1997, em Londres, cuja tradução foi publicada em 2007 pela EDUFAL com o título: "Os filhos de jurema na floresta dos espíritos: ritual e cura entre dois grupos indígenas do Nordeste brasileiro".  O último número da revista Ciência e Cultura da SBPC, traz o tema "Cultura Indígena", numa coletânea de artigos acadêmicos coordenados por ela, que também assina o artigo: "Ser indígena no Brasil contemporâneo: novos rumos para um velho dilema".  Atualmente é professora adjunta de antropologia do Instituto de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas.

A MEDICINA INDÍGENA NA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA
Profa. Clarice Novaes da Mota, ICS/UFAL
O conceito de “medicina indígena”  é com certeza amplo demais, pois engloba todas as variedades de medicinas praticadas por grupos indígenas pelo mundo.  Embora alguns autores tendam a generalizar esta terminologia, abrindo espaço para conceitos globais e globalizantes, gostaria de colocar que, sendo o planeta terra populado por uma variedade imensa de povos, cada um com suas peculiaridades culturais, quero partir do ponto de vista que há mais diferenças do que semelhanças, muito embora tenhamos que, para falar de um espectro da vida social tão básico como a prática de cura das doenças humanas, devemos partir do ponto de vista das semelhanças.
Há quem diga que “A medicina dos indígenas é um milagre, uma magia”. (Medicina Indígena: da Magia à Cura, 23 de outubro, 2008 (http:/ boasaude.com.br). Com isto adentramos no campo das chamadas “medicinas alternativas” e mais uma vez no dúbio caminho da “cura pela fé”.  Não estamos aqui trabalhando da perspectiva de uma ciência social positivista, modelada pelas ciências físicas, preocupada com fenômenos sociais observáveis e, portanto buscando ordem, previsibilidade e controle. Há que se ter uma perspectiva crítica dos fenômenos sociais, que focalize sobre as relações sociais e a forma de comunicação engendrada pela cultura onde a doença se manifesta e onde se interpreta os sintomas a partir de percepções e representações simbólicas dos mesmos, através dos signos lingüísticos transmitidos pela comunicação social entre os atores sociais que vivem o drama e a trama do binômio saúde-doença. 

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Antigo Toré  Kariri-Xocó

               Além disto, temos que nos perguntar quais são as relações entre saúde e experiência religiosa.  Para tanto, vejamos primeiramente o que queremos dizer com “experiência religiosa”.  Êxtase?  Misticismo?  Fé’? Se usarmos uma abordagem hermenêutica, temos que reconhecer que a habilidade mediada pela linguagem de compartilhar significados uns com os outros é uma característica fundamental do mundo social e, portanto que não pode haver compreensão independente de interpretação.  Desta forma, usando o paradigma hermeneuta, aplicado à compreensão de experiências de doença, teremos que examinar a multiplicidade de significados culturalmente construídos e compreendidos por aqueles que usam termos sobre doença e saúde para comunicar muitos aspectos de suas experiências vividas. Para entender uma “medicina” praticada por indígenas temos que compreender a construção social dos mesmos que envolve os fenômenos relacionados com a cura de doenças que são igualmente socialmente construídas e compreendidas. 
 
               Em termos globais, a medicina indígena é uma prática mágica? A relação entre religião e saúde é antiga, tanto do ponto de vista dos significados antropológicos de compreensão mágico-religiosa do que é saúde e doença como do ponto de vista do entrelaçamento das instituições dedicadas à saúde, por terem sido maciçamente               religiosas na Idade Média e início da Idade Moderna.      No entanto, se olharmos o fenômeno do ponto de vista da cultura ocidental, dominadora e homogeneizante, diremos que a prática médica dos indígenas em geral se baseia não no paradigma positivista da doença como uma coleção de sintomas e nem sua medicina como um grupo de medidas aplicadas para fazer com que tais sintomas desapareçam. Precisamos olhar além da sintomatologia e oferecer uma interpretação cultural sobre doença e cura, para podermos perceber adequadamente, ou seja, criticamente, de que forma se processa o roteiro da cura entre a maioria dos grupos indígenas do mundo.  Então poderemos oferecer alguma perspectiva esclarecedora sobre os elementos de “magia” nesses processos. O que emerge terá que dar conta do que é a natureza da realidade em outras culturas, qual é o entendimento sobre o corpo físico e sua relação com outros elementos da natureza e o que o corpo doente oferece como compreensão sobre as noções de equilíbrio, normalidade e harmonia dentro de um determinado contexto social.                                                                
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Pajé Francisquinho
               
               A maioria dos estudos sobre medicina indígena aponta para a presença de um xamã, ou especialista de cura que também é um líder religioso.  Geralmente, o Xamã é o líder espiritual, o intermediário entre os homens e os espíritos, que empreende uma viagem ao chamado mundo sobrenatural para assegurar a cura de seus pacientes.  Em extraordinário trabalho, o antropólogo Lévi-Strauss compara o trabalho do xamã indígena com o de um psicanalista ocidental.  Tanto um quanto outro manipula uma mitologia socialmente compreendida e cujo significado não necessariamente corresponde a uma realidade objetiva, pois isto não tem importância.  O que importa é que existe uma comunicação entre paciente e curador já que a pessoa doente, assim como o xamã, acredita na mitologia sendo utilizada no processo da cura, pois ambos são membros de uma sociedade que acredita.  Explica o autor que:
 
               ... a relação entre micróbio e doença é exterior ao espírito do paciente, é uma relação de causa e efeito: ao passo que a relação entre monstro e doença é interior a esse mesmo espírito, consciente ou inconsciente: é uma relação de símbolo à coisa simbolizada, ou para empregar o vocabulário dos lingüistas, de significante a significado.  (Lévi-Strauss, 2003:228)
 
                               É o significado que é mutuamente compreensível e que está sendo habilmente manipulado pelo xamã para produzir um efeito impactante sobre o espírito do paciente.  Explicando mais cabalmente a comparação entre um curador ocidental (o psicanalista) e um indígena, Lévi-Strauss coloca que:
 
                Neste sentido, a cura xamanística se situa a meio-caminho entre nossa medicina orgânica e terapêuticas psicológicas como a psicanálise.  Sua originalidade provém de que ela aplica a uma perturbação orgânica um método bem próximo dessas últimas.  Como é isto possível?  Uma comparação mais particularizada entre xamanismo e psicanálise permitirá precisar este ponto.
(...)          Em ambos os casos, propõe-se conduzir à consciência conflitos e resistências até então conservados inconscientes... Em ambos os casos também, os conflitos e as resistências se dissolvem, não por causa do conhecimento,...mas porque este conhecimento torna possível uma experiência específica, no curso da qual os conflitos se realizam numa ordem e num plano que permitem seu livre desenvolvimento e conduzem ao seu desenlace.  Esta experiência vivida recebe na psicanálise o nome de abreação.” (idem, 2229)
 
O xamã, portanto, é visto como um predecessor do psicanalista, sendo que este último poderá entender melhor o mecanismo de sua eficácia  se confrontar o seu método com o do xamã

OUTROS ELEMENTOS DE CURA: A FARMÁCIA INDGENA

Já é lugar comum imputarem o uso de plantas medicinais aos indígenas e demais moradores da região rural do nosso país.  A idéia em geral é de que também este uso de espécies botânicas se daria devido a uma crença em magia, como se os produtos da natureza não tivessem em si a capacidade de efetivar mudanças no corpo físico dos humanos e outros animais.  Esta premissa não é verdadeira. Nos últimos anos tem havido uma evolução da produção de conhecimento científico relevante sobre plantas medicinais, em especial da flora sul-americana. Está comprovado cientificamente que várias espécies botânicas têm princípios químicos ativos com poder de aliviar sintomas e curar estados mórbidos e que, portanto, não é preciso existir uma crença especial no poder das plantas para que se dê a cura.  São na verdade os princípios ativos existentes na natureza que formam a base para os princípios farmacêuticos encontrados nos remédios industrializados, por um processo de transformação das substancias ativas em fármacos e medicamentos da farmácia “oficial’. O conhecimento das matérias-primas vegetais de importância terapêutica é o objetivo central da Farmacognosia, uma disciplina que integra conhecimentos das mais diversas áreas. É sabido, portanto, que “As plantas são uma fonte importante de produtos naturais biologicamente ativos, muitos do quais se constituem em modelos para a síntese de um grande número de fármacos.” (Simões et all. 1999:12)

O Brasil é o país com a maior diversidade genética vegetal do mundo, contando com mais de 55.00 espécies catalogadas (Dias, 1996) de um total estimado entre 350 e 550.000. (Simões, 1999).  Mas, “apesar do aumento de estudos nessa área, os dados disponíveis revelam que apenas 15 a 17% das plantas foram estudadas quanto ao seu potencial medicinal (Soejarto, 1996).  No Brasil, o uso de plantas medicinais pela indústria farmacêutica nacional e portanto pela população em geral não é novidade, pois se estima que 25% dos US8 bilhões de faturamento em 1996, da nossa indústria farmacêutica tenham sido originados de medicamentos derivados de plantas.  No entanto, apenas 8% das espécies vegetais da flora brasileira foram estudadas em busca de compostos bioativos. Desses poucos, 1.100 espécies vegetais foram avaliadas em suas propriedades medicinais e destas 590 foram registradas no Ministério da Saúde para comercialização.(Simões, 2000)

O uso de plantas medicinais pelos indígenas é, portanto um fator de estabilidade para suas práticas de saúde, não podendo ser pensado apenas como parte de um “ritual litúrgico”, ou como aspecto puramente religioso, mas sim como prática terapêutica baseada em conhecimento científico acumulado pelas populações indígenas a partir de sua experiência ao longo de gerações.  

A autora de um livro sobre plantas medicinais introduz a questão do uso das mesmas com a seguinte afirmação: “durante muito tempo, a medicina foi uma prática religiosa exercida pelos sacerdotes, que receberam dos deuses saber e poder para cumprir a função divina de curar” (Duniau, 2003: XIV).  Precisamos rever precisamente este tipo de pré-conceito sobre a medicina indígena e seus remédios.  É certo que o pajé, ou líder religioso de grupos indígenas brasileiros, tem uma atividade bastante relacionada com a cura de males físicos e de que há um amplo repertório de “plantas mágicas” ou “plantas de poder” sendo utilizadas no contexto da prática médica nativa. Por outro lado, os grupos em contato permanente com a sociedade nacional já aceitam a “medicina oficial” ou “científica” como parte de seu repertório, assim como as plantas por eles usadas já são conhecidas e aceitas pela comunidade científica como tendo propriedades terapêuticas. Ou seja, entre estas sociedades já inseridas no contexto da sociedade nacional estão sendo introduzidos novos modelos de atendimento à saúde.  Com a introdução dessas práticas médicas ocidentais, a relação entre provedores de saúde e clientes mudou substancialmente, assim como o uso de produtos farmacêuticos sintéticos.

  Claro está, no entanto, que as mudanças impostas pela modernização não eliminaram o uso de recursos terapêuticos tradicionais.  O entendimento sobre a experiência da doença e os conceitos de saúde e bem-estar foi modificado, mas as práticas médicas herdadas pela história oral e a práxis desses povos não desapareceram, assim como não desapareceu a experiência eu o doente tem do processo, enquanto “corpo de dor”.  O que vemos na atualidade são contextos médicos plurais dentro das aldeias, onde saberes e práticas se entrelaçam e se suportam mutuamente, geralmente sem maiores contradições.  Zonas de imprecisão são criadas por tal situação e através delas as várias contradições provenientes das maneiras diversas de conhecer e entender o mundo permeiam a práxis terapêutica de forma sucessiva.  Não sempre existe uma forma conciliadora entre estas diferentes experiências culturais, mas ainda assim elas co-existem “apesar dos pesares” e sempre que as práticas tradicionais continuam sendo afirmadas e respeitadas. 

 É certo que uma das características encontradas na maioria das práticas médicas tradicionais indígenas encontra-se nos chamados rituais de cura, momentos em que os provedores tradicionais de saúde – pajés, rezadeiras, curandeiros – utilizam conhecimento anterior, manipulando plantas, animais e instrumentos que os ajudam no processo de restabelecimento do bem-estar do paciente e que transforma a experiência traumatizante da doença em algo compreensível e, portanto manipulável pelo doente.  Ao compreender o “espírito da doença” segundo postulados antigos, a pessoa percebe a cura também da mesma forma, sem, necessariamente deixar de optar pela chamada cura moderna.

Em pesquisa recente, entre os Kariri-Xocó de Alagoas e os Xocó de Sergipe, levantei dados sobre 152 espécies de plantas consideradas terapêuticas usadas por estes dois grupos. Várias destas espécies são de amplo conhecimento pela sociedade nacional e largamente usadas pelas comunidades sertanejas dos dois estados.  Destas, pelo menos 12 foram estudadas cientificamente e consideradas como tendo propriedades terapêuticas.  Portanto, saem da categoria de plantas mágicas para a de medicamentos. Há algumas plantas chamadas de “poder” por caírem na categoria de plantas cujo preparo e uso, além de ser tradicional e secreto, induz estados alterados de consciência.  A principal beberagem é conhecida como “jurema”, é preparada das cascas e raízes do arbusto também conhecido como jurema preta (Mimosa hostilis ou tenuiflora), assim como da jurema branca (Mimosa verrucosa).
 
 Vários trabalhos acadêmicos foram  publicados sobre a discussão que os usos da jurema, ou das juremas, fomenta/m (Grünewald, da Mota, Reesink, etc.). Mas esta é uma discussão que não cabe abarcar aqui, devido à extensão da mesma.  È importante destacá-la, pois se trata de um uso que envolve várias outras sociedades, além da indígena, dentro e fora das fronteiras nacionais, apontando a importância que o saber indígena tem em geral para o mundo.  Há outras plantas que não são consideradas “mágicas” e que foram amplamente apropriadas pelo mundo ocidental, principalmente os “curares (bloqueadores neuromusculares, causando, inicialmente, debilidade muscular e, em seguida, flacidez dos músculos)”, anestésico poderoso que saiu das lanças dos indígenas amazônicos para as seringas de anestesia dos principais hospitais do mundo.  

A medicina indígena, portanto, não pode ser descartada como mera superstição, ou “crendices populares”, sem nenhum valor.  Pelo contrário, há muito que se aprender nas comunidades tradicionais, aquelas que não estão restritas a uma visão utilitarista e mercantilista do tempo, mas que se abriram, há séculos, para uma compreensão mais profunda e humanizante do que é capaz a mente humana e o valor da natureza, em toda sua riqueza, para a vida e sobrevivência dos seres humanos.
 
 
 
 
BIBLIOGRAFIA
 
da Mota, C.N. e de Albuquerque, U.P. As muitas faces da jurema: de espécie botânica à divindade afro-indígena. Recife: Bagaço, 2002.
Dias, B.F.S. A implementação da convenção sobre diversidade biológica no Brasil: desafios e oportunidades. Campinas: André Tosello, 1996
 
Duniau, M-C M., Plantas medicinais, da Magia à Ciência. Rio de Janeiro: Brasport, 2003: XIV
 
Grünewald, R.A. ‘Sujeitos da jurema e o resgate da ciência do índio`” IN Labate, B.C. e Goulart, S.L. (orgs.) O uso ritual das plantas de poder, Campinas, SP: Mercado de Letras, 2005.
 
Lévi-Strauss, “A eficácia simbólica”, IN Lévi-Strauss, Antropologia Estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003:228)
 
 
Reesink, E. “Raízes históricas: a Jurema, enteógeno e ritual na história dos povos indígenas no Nordeste” IN da Mota, C.N. e de Albuquerque, U.P. As muitas faces da jurema: de espécie botânica à divindade afro-indígena. Recife: Bagaço, 2002.
 
Simões, C.M. O. et alli, Farmacognosia: da planta ao medicamento, 2ª edição. Porto Alegre/Florianópolis: Ed. Universidade/UFRGS/ Ed. Da UFSC, 2000.
 
Página da internet: Medicina Indígena: da Magia à Cura, 23 de outubro, 2008 (http:/ boasaude.com.br)

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