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quinta-feira, 26 de setembro de 2019

A história vinda de baixo: o folheto de feira e a seca (I)



Pequena explicação sobre um texto provisório
Luiz Sávio de Almeida

Drought and popular literature
Este texto é uma nota escrita para ser colocada em texto sobre a seca em Alagoas no século XIX, em continuidade ao que fizemos com o cólera, trabalhando uma história sociológica, campo que ligamos em grande parte à discussão encaminhada por Lucien Goldman. No fundo da questão, existe uma relação forte entre o cólera e a seca no decorrer do século XIX: em ambos se vive os tremores e pavores e horrores em uma sociedade fragilizada sem possibilidade efetiva de libertar-se. O cólera fazia parte do grande universo das epidemias, que tanto marcaram a nossa formação histórica. Foi um inesperado para um conjunto da população que, de uma hora para outra, viu-se em face de um poderoso inimigo, uma doença que aparecia, varejava a morte e era diferente do que se tinha no comum das mortes.

          O cólera era uma surpresa e a seca nunca poderia ser considerada como tal, pois nunca poderia deixar de existir, de ser atual e inerente ao modo da organização da sociedade; o cólera  foi o que se poderia chamar de exótico, mas ambos passaram pelo mesmo caminho de dores. Existiria uma história sociológica destas dores? A resposta é afirmativa na medida em que se resguarde o modo como a sociedade está, recebe, vive este horror.
A escrita não seria suficiente para representar a crônica destes momentos; ela é insuficiente e, então, para que se comunique este horror, em nosso modo de ver, ela tem que aliciar quem estará lendo convidando para soltar a imaginação e seria com ela que se completaria a leitura e não apenas na análise que ela estaria propondo.
Sempre fiquei me perguntando, o que havia sido produzido pela seca; a curiosidade sobre ela se instalou, ainda menino, com a convivência com um  professor: Oto de Brito Guerra,  em Natal, no Rio Grande do Norte. Era, junto com Cascudo, um antigo integralista que repassou a posição, ficando ligado à chamada Doutrina Social da Igreja. Foi uma pessoa de altíssima influência em minha vida  e eu estudava na biblioteca dele, pois era amigo íntimo e colega de classe do filho dele: Marcos de Brito Guerra.
O professor especializava parte de sua biblioteca em livros sobre seca   e, vez em quando, eu pegava um e folheava. Isto foi chamando minha atenção e, também a curiosidade que me dava a coleção de Vingt-Un Rosado  que saía publicada em Mossoró, também no Rio Grande do Norte.  Isto junto às músicas do Luiz Gonzaga foram fazendo a seca crescer em minha cabeça e sempre estive pensando em escrever algo sobre ela.
Daí, foram anos e anos tomando notas e sempre achei que poderia ser um pachorrento trabalho: seria feito sem pressa e englobando alguns assuntos sincronizados, mas, sobretudo, deveria dar prosseguimento ao que havia sido ensaiado no texto que escrevi sobre o acontecimento cólera, com o horror fazendo a ponte entre dois séculos: o XIX e o XX.
O livro seria Breve notícia sobre a seca nas Alagoas e aos poucos foi tomando forma, mas ainda passará um bom tempo em elaboração, quem sabe uns dois anos. Havia, contudo, um capítulo que pouco sofreria alteração e tratava de uma rápda passagem sobre a chamada literatura de cordel ou sobre os chamados folhetos de feira. Sempre tratei um folheto de feira com o máximo respeito e sempre considerei seus autores, pessoas que mereciam ser consultadas, especialmente, em nosso caso, por montarem uma fala constante sobre a seca,  dando evidência e ressaltando alguns de seus elementos essenciais.
Considero que são uma fala que vem de baixo, numa forma aproximadíssima ao que fala Thompson sobre uma history from bellow. O que eles teriam dito sobre a seca? Uma pergunta que satisfazia outra curiosidade. Os dois primeiros textos que publiquei na minha vida, eram folhetos de feira; um deles para a Campanha da Fraternidade da CNBB e se chamava Voto não se vende e consciência não se compra. Este ainda se localiza um exemplar. O segundo foi escrito com um Compadre meu, infelizmente falecido, chamado Chico Traíra, famoso cantador no Rio Grande do Norte: As dores do gigante ou a fachada do Brasil. Deste nada mais tenho, nem mesmo sei o texto, embora de tanto ler vendendo na feira, a primeira estrofe ficou gravada.  O primeiro era ligado à Arquidiocese de Natal e o segundo era para tomar cachaça, mas eram folhetos de feira:

Desperta Brasil desperta,
Oh gigante adormecido
Verás que teu povo sofre
Escravizado e ferido
Em cada alma um soluço
Em cada peito um gemido!

Jamais procurei estruturar um livro e sempre deixei que corresse livre, uma espécie de metodologia trabalhada pelo folheto que sabe aonde quer chegar e chega; depois de passar por Ceca e Meca, estaremos, sem dúvida no semiárido das Alagoas. Não esqueço da implicação de Nietsche com os livros que são escritos para serem livros e que, aliás, Mariategui terminou por adotar.  Os desvios aparentes acentuam o sentido da direção e tudo se encaminha em espécie de carpintaria também aparentemente caótica à objetividade de um fim que sempre pede continuidade.
  O fato é que estamos diante de anotações em torno do que falam os folhetos de feira e não serão exatamente sistematizadas desta forma que entrarão no texto maior, mas julgamos que elas teriam suficiente condição de fecharem como um artigo que não seria propriamente sobre os folhetos, mas como teriam posição na cultura nordestina, muitos dizendo que expressam uma visão conservadora e o artigo defendendo que a crônica e a narrativa parecem encontrar na ordem estratégica da denúncia, o espaço possível.
Faz sentido? É sem dúvida, um filão a seguir mas o trato da questão em profundidade, teria de ser em outro trabalho; neste cabe apenas a enunciação da possibilidade. Por outro lado, a defesa de alguns princípios de honra pode ser metafórica, referindo-se, a partir dela e com facilidade estratégica, a uma demonstração cabal de relação dominadora e ai muito além do que aparentemente significa. Não se trata apenas de uma velha noção de honra, mas a demonstração de que ela pode ser pisada e, em grande parte, no que lemos, o folheto a ela se refere quando trata dos desníveis entre senhor e, no caso, flagelado que simboliza o desfavorecido. Isto pode ser colocado em evidência em diversos casos; sempre a honra é atingida pela prepotência que é narrada.
Na medida em que falamos de narrativa, admitimos que a arte enuncia a vida de uma forma, de uma determinada maneira e, ao narrar, se pode introduzir a análise e incorporar um ensaio que está, sobremaneira nas entrelinhas. Talvez este seja o melhor caminho para ler-se o folheto: andar pelo que não está implícito, pelas grandes sinalizações escondidas.  Não se pode, simplesmente, acentuar o folheto de feira como catalizador de uma ideologia conservadora, sem antes perguntar e discutir o espaço que tem para falar e como falar.    É impossível deslocar o folheto do contexto a que pertence e ele vai ter de encontrar maneiras de estar presente em um universo que não é por ele acompanhado.
O que está anotado aqui, deve ser considerado como um primeiro esboço do que poderia estar sendo considerado como pronto para a publicação. Então, poderia ser considerado como apressado. Talvez na continuidade do trabalho vá crescendo, mas o texto nos parece guardar uma unidade e é isto que nos anima a publicar.



A história vinda de  baixo: o folheto de feira e a seca (I)
Luiz Sávio de Almeida
A permanente ressurgência
A tarefa de listar as secas que aconteceram é interminável pois, na realidade, ela existe todos os anos, desde que  tem o atributo da perenalidade. Neste sentido, deve  ser entendida como algo que não acaba pois, dentre outros fatores,  é  inerente ao semiárido, um conjunto físico. Apesar de parecer contraditório, mesmo nas melhores chuvas ela existe em sua ancoragem e significado cultural e político, vivendo uma dupla condição: a de estar latente e a de estar manifesta. É claro, no entanto, que ela não se repete e, assim, cada seca tem a sua particularidade e, portanto, cada uma se define por ser diferente na sua forma de ser e de acontecer.
O ideal, por consequência  seria sempre expressá-la no plural, salvo quando estiver particularizada e atribuída a determinado tempo. É isto que fundamenta a  historicidade: ela é uma relação política,  ligada ao semiárido. O que muda nele, muda na seca. Neste sentido, a que ocorre no século XVI jamais poderia ser considerada  igual à que se desenvolve nesta etapa do século XXI. É a contingência do tempo e do movimento inerente à formação histórica.
Claro que estamos diante de algo chamado água e sua contradição que seria a “nãoágua”;  este é o dado fundante das secas que são, por um lado, resultado e, por outro, construção. Em última análise, ela decorre de determinado tipo de resposta em determinada condição histórica e está ligada à construção do espaço. É no conjunto de semiárido que se fundam os sertões e, com eles, um sentimento de pertença e de possibilidade de individualização: existem os daqui e os dali como se vê no sertão do Cariri, sertão do Moxotó, do Piancó, Bodocó, Caicó; a literatura fabrica o alto sertão, o de fora e o de dentro e, por aí,  identificações são produzidas dentro do semiárido onde ocorrem os sertões do sertão.
Neste mesmo entendimento,  se pode indicar o sertão das Alagoas,  de Minas e tudo anda por onde andar o semiárido que cobre, também, o agreste. Em um conjunto entendido como sertão tem-se diversos, mas, nesta diversidade, ocorre  a universalidade do: o sertanejo, elemento chave para a construção de uma cultura que, entre outros fatores, ocupa-se da seca com entendimentos, comportamentos.
  Bem se pode dizer, como imagem, que a seca vive o processo de ressurgência;  se encontra no profundo do cotidiano e interliga o semiárido, sendo, inclusive, o primeiro grande pressuposto a informar sobre a constituição do que atualmente se chama de nordeste. O que vamos chamar de ressurgência é simples: este  componente do profundo, desesconder-se e dar-se claro no dia a dia do sertanejo.

O presságio e a vida

Nestas terras sertanejas, buscar sinais de como estará o tempo, e, portanto, a vida,  é tarefa que se aprende desde criança, ao se ver o olhar para o sol, as novenas, as conversas e modos de prever, atitudes que entram e rompem ano.  A seca é eterna antecipação; além do drama humano que se desenvolve,  está ligada a frágil funcionamento do setor primário da economia. É quando, nesta fragilidade, o sagrado assume a posição central das promessas e das procissões, a seca tornando-se um ritual religioso.
A religião e a ciência estarão nesta seca; a primeira em busca de proteção e milagre e a segunda em busca do conhecimento gerado no dia a dia da vida, na procura de sinais que indicavam o rumo que o tempo correria e, isto, para uma sociedade  organizada em produção montada sob o risco na pecuária e na agricultura. Tratava-se de  uma sociedade vulnerável onde a seca não era e nem poderia ser considerada perigo ou, mesmo, ameaça episódica a vir aleatoriamente pelo azar. Ela jamais deixava de desesconder-se.  Seca, jamais seria uma surpresa.
 Ela se anuncia de muita forma e de diversas maneiras como nos pássaros, nos astros, no mundo sempre ao nosso derredor e não é preciso muita ciência para vê-la, basta ter aprendido, saber observar, ter olhos para ver e ouvidos para ouvir. O anum preto esta ali pousado, debaixo da árvore verde e frondosa por mais de três dias, o que digamos é muito difícil: então, o ano será bom, conforme Cascudo registrou[i]. Dizem que também o maribondi-enxum com sua casa imensa, indica sobre a chuva; se a casa dele é no baixo, então vem seca[ii]

Uma pequena derivação para o Lunário

Ciência e religião na circularidade que a cultura pressupõe deva existir, sempre souberam, por exemplo, de São João, São Pedro, pucumã, o sal, o circulo na lua. E antigamente no corpo das grandes leituras, entre os 12 Pares de França e a Missão Abreviada tinha-se o senso erudito do  Lunário Perpétuo.  O Lunário foi uma das grandes leituras na colônia, pontificando, inclusive, pelos anos de Império, quem sabe derivado de textos que vinham se arrastando pela Idade Média; existe Lunário publicado na Itália em 1535, Espanha em 1606 e já estava em terceira edição com texto revisto e aumentado pelo seu criador que era Jerônimo Cortes, nascido em Valência. Como se pode notar, a ideia de Lunário e de Perpétuo é antiga, inclusive fora da Península Ibérica. O título que praticamente se repete em português, espanhol e “italiano”; daí, se pode notar a importância da lua no universo cultural que se forma no Brasil e tudo deve convergir para um tronco que não está claro para estas anotações. É dito que em 1703 aparecera publicação em Lisboa e, sem sombra de dúvida nesta oportunidade  ou antes,  virá plantar-se em nossas leituras.
Sempre se teve a necessidade destas indicações e sempre se desejou um instrumento perpétuo  sobre as fases e vizinhanças da lua , o que alcançou uma boa estirada pelo século XX, com os marca mês e folhinhas pregadas nas paredes das casas. A lua sempre nos foi vital, não somente para os grandes fenômenos, mas, inclusive, para os menores de nosso dia a dia o que está, claramente, presente  no termo aluado, na expressão em que se diz que depende da lua e mesmo no mágico da lua beber a água de coco e não poder bater no pescado salpesado, sob pena de se arruinar a carne, da mesma forma que detiora a água do côco que foi por ela bebida.
Há, por exemplo, um lunário publicado por Gaspar Cardoso de Sequeira, matemático nascido em Murça e oferecido ao Senhor de Almada[iii]. Isto em 1626 e sendo uma nova edição. Havia consumo, havia utilidade e popularidade.  A lua era mercadoria, tinha agregação de valor. Pensar como seria o tempo era e sempre foi básico; imagine-se o que não estaria significando para um contexto agrário, mormente onde o sofrimento coletivo estaria à espera de começar. Parece, então, existir um tempo sempre assuntado e se viveria a carga da busca pelos sinais, como se a leitura da natureza tivesse sido aprendida pela tarefa de pensar a possibilidade de sofrimento.
É onde aparece a ciência da pedra de sal a procurar a umidade, a queda da pucumã, o voo das formigas que terminam por perderem as asas. Bem antes de chegar as novas chuvas, São João,  São Pedro são acionados, como se da festa dos santos saíssem, também, as águas, numa espécie de continuidade desta comunhão no sagrado; fisicamente, acabou o sertão distante, as distâncias foram refeitas pela velocidade, mas ainda existe e existia no XIX um sertão recôntido, um, sertão no profundo de sua construção cultural que precisava saber da e sobre a seca.

O antigo coração

Paulatinamente foi acabando o desconhecido, remontando-se o senso do espaço e o sertão deixando de ser “o interior, o coração das terras” e não muito pode-se dizer que é “mato longe da costa” conforme grifava Antônio Moraes Silva[iv], natural do Rio de Janeiro, que atualizou e reformou o diccionário do Padre D. Rafael Bluteau. O sertão aproximou-se, apresentou-se, mas continuou a ter as suas marcas profundas e  a seca é uma delas no que as incertezas do tempo indicam e indicavam o caminho ou os caminhos a serem seguidos, até mesmo quando se tentava persistir em ficar; seria aquele que sairia por último, o que era verdadeiramente expulso, o descrito por Luiz Gonzaga em o Último Pau de Arara e que somente largaria a terra no fim do que não poderia terminar. Era um pouco diferente do adeus à Rosinha de Asa Branca – do Gonzaga e do letrista fantástico que foi Humberto Texeira – que ficou e tornou-se lembrança e depois resultado de retorno quando o trovão redondo ou de chicote reboa em A volta da Asa Branca.
 O lírico da Rosinha sempre será sinal de volta  para quem foi de um mundo de  seca para tentar a vida; ela ficou em Propriá, na beira do São Francisco, no confronte do Porto Real do Colégio e olhando São Braz. Asa Branca surge como marca sertaneja, a poética nordestina a fez símbolo; existia de monte por aqui e um dos sinas dos tempos aponta que sumiram; elas ajudam a demonstrar como a história fica na arte.


[i] CASCUDO,  Luiz da Câmara. Aves e pássaros no folclore brasileiro. Revista do Livro, Ano V, Nº 19, 1960.
[ii] NOMURA, Hitoschi. Superstições e crenças sobre abelhas, vespas e formigas. O Estado de São Paulo. São Paulo, 14 jul. 1982, p. 5.
[iii] SEQUEIRA, Gaspar Cardoso de. Tesouro de prudentes novamente tirado  a luz, por Gaspar Cardoso de Sequeira, matemático,  natural da Vila de Murça. 2ª ed. Lisboa: Nicolau Carvalho Impressor: 1626.
[iv] SILVA, Antônio de Moraes. Dicionário da língua portuguesa recopilado dos vocabulários até agora impressos, e nesta segunda edição novamente emendado, e mui acrescentado, por Antônio Moraes da Silva natural do Rio de Janeiro. Oferecido ao mui alto, e mui poderoso Príncipe Regente Nosso Senhor. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.



terça-feira, 24 de setembro de 2019

Escravidão em Alagoas



Gian Carlo de Melo Silva é doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE e professor da Universidade Federal de Alagoas-UFAL. Ainda é docente nos cursos de pós-graduação em História da Universidade Federal de Alagoas-UFAL e da Universidade Federal Rural de Pernambuco-UFRPE. Organizador de coletâneas como: Cultura e Sociabilidades no Mundo Atlântico (2102), Políticas e Estratégias Administrativas no Mundo Atlântico (2012), ambas pela Editora Universitária da UFPE; Os Crimes e a História do Brasil (2015) publicada pela Edufal e premiada pela VII Bienal do Livro de Alagoas; História da Escravidão em Alagoas (2017) lançada pela Edufal e Imprensa Oficial, com premiação nos 200 anos de emancipação política de Alagoas. Além disso, publicou Um só Corpo, Uma só Carne (2010, EDUFPE e 2014, Edufal) e sua tese de doutoramento com o título Na cor da Pele, o Negro (2018, Edufal). Em 2018 também organizou e publicou com Wilma Nóbrega a obra Olhares de Maceió por Luiz Lavenère, um catálogo com fotos de Maceió no início do século XX (Graciliano Ramos).

Brazilian hisrory: slavery / Histoire brésilienne: l'esclavage / Storia brasiliana: schiavitù / Brasilianische Geschichte: Sklaverei



Uma pequena introdução

Danilo Luiz Marques, Gian Carlo de Melo Silva & Luana Teixeira

             
     O livro História da Escravidão em Alagoas reúne uma nova geração de historiadores que vem pesquisando e inovando a historiografia alagoana sobre escravidão. Propomos presentar ao público leitor, estudos sobre a escravidão em Alagoas que privilegiam as experiências de vida de sujeitos históricos marginalizados pelo poder e que resistiram à instituição escravista. Também faz parte desta coletânea, reflexões acerca da historiografia alagoana sobre o tema e o local da população afrodescendente nessas narrativas. Esta produção vem, desde o século XIX, privilegiando uma história de homens brancos, escravocratas e católicos.
               Nas primeiras décadas do século XX, os estudos sobre o negro na historiografia alagoana se concentraram no folclore e na negação de suas resistências durante a escravidão. Em 1934, durante o 1º Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Recife, Alfredo Brandão, ao apresentar sua pesquisa intitulada Os Negros na História de Alagoas, expôs que estes eram “conformados com a sorte” e, apesar de serem obcecados com a ideia de liberdade: “nos tempos posteriores ao quilombo (Palmares) a obsessão não o levava a revoltas e a reações a mão armada” (BRANDÃO, 1988, p. 45). Nesta concepção, nega-se todo um histórico de lutas e resistências protagonizados por povos da Diáspora africana e seus descentes na região, algo que se tornou bastante característico entre os pesquisadores da temática em Alagoas. Alfredo Brandão desenvolveu seus estudos influenciado pelo pensamento de Gilberto Freyre, assim como Manuel Diégues Junior, que pertencia ao grupo de pesquisadores liderados pelo sociólogo pernambucano na década de 1930, na cidade do Recife. A obra de destaque do autor é O Banguê das Alagoas (1949), onde analisa a vida social alagoana tendo como eixo norteador o sistema açucareiro, uma escrita que mescla factualismo com folclorismo.
Abelardo Duarte, outro pesquisador alagoano que se debruçou nas chamadas “culturas negras”, se concentrou em documentar a presença africana em Alagoas, publicando livros de referência, como: Episódios do contrabando de africanos nas Alagoas (1966), Os negros muçulmanos nas Alagoas: os Malês (1958) e o Folclore negro das Alagoas (1974). O autor integrava um grupo de folcloristas conhecido como Escola de Maceió, que se caracterizou pela retomada do modelo culturalista de Arthur Ramos, alinhavada à Escola Nina Rodrigues. Felix Lima Junior também foi dessa geração e escreveu o livro A escravidão em Alagoas (1975), o qual nos oferece informações sobre os costumes da sociedade alagoana e os processos de alforrias ao longo do século XIX.
               Nos anos de 1960, o renomado historiador alagoano, Moacir Medeiros de Sant’Ana começou a publicar suas pesquisas, onde muitas delas, trataram diretamente da temática da escravidão. Este autor foi diretor do Arquivo Público de Alagoas durante décadas, conhecendo como poucos o acervo da instituição. Desta maneira, seus trabalhos possuem um denso arcabouço documental. Em Uma Associação Centenária (1966), uma obra feita por encomenda para celebrar o centenário da Associação Comercial de Maceió, o autor fez uma breve análise histórica da capital alagoana em 1866, descrevendo ruas e bairros. Também expôs alguns aspectos da escravidão, sobremaneira acerca das fugas e anúncios em periódicos locais e leilões de escravizados. Ao fazer uma história econômica da produção do açúcar na região alagoana, Sant’Ana em seu Contribuição à História do Açúcar em Alagoas (1970) dedicou algumas páginas aos trabalhadores escravizados, trazendo dados estatísticos importantes. No final dos anos 1980, em virtude do centenário da abolição da escravatura no Brasil, publicou três livros sobre a temática. O primeiro deles: A Queima de Documentos da Escravidão (1988) tratou da portaria de Rui Barbosa de 14 de dezembro de 1890 para queimar todos os papéis, livros e documentos do Ministério da Fazendo acerca do “elemento servil”. Em 1989, Sant’Ana lançou um levantamento bibliográfico sobre escravidão em Bibliografia Sobre o Negro. No mesmo ano, publicou o Mitos da Escravidão (1989), onde questionou as ideias do senhor bondoso e do negro submisso e intelectualmente inferior.
               Um dos principais problemas enfrentados pelos historiadores que decidem dedicar seu trabalho a pesquisar escravidão em Alagoas diz respeito ao acesso e às condições dos arquivos existentes no Estado. Fontes existem, bem como uma sólida legislação que prevê sua preservação por parte dos órgãos competentes e garante o acesso à comunidade científica e ao público geral. No entanto, quando se trata de instituições que detêm acervos relacionados ao período de vigência da escravidão no Brasil, apenas o Arquivo Público de Alagoas, que vem se modernizando e aperfeiçoando na gestão de seu valioso acervo, e o Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, histórica instituição de coleção e guarda de documentos e lócus de pesquisa de gerações, cumprem adequadamente o papel de proteger e fomentar o patrimônio histórico e cultural representados pelas fontes documentais. Muitos outros acervos serão citados ao longo desta coletânea, mas nenhum deles possui uma política arquivística adequada de preservação e guarda dos documentos, sendo que o acesso aos mesmos precisa sempre contar com uma boa dose de paciência, negociação e até mesmo encaminhamento de processos administrativos demorados, que nem sempre correspondem aos cronogramas exigidos pelas agências de fomento. Espera-se que a divulgação das pesquisas atuais possa sensibilizar um maior número de gestores públicos para a importância de preservação e organização de seus acervos institucionais, viabilizando cada vez mais a ampliação da pesquisa histórica em Alagoas e a valorização do profissional de história no Estado.



Escravidão e Possibilidades de Alforrias no Período Colonial: Capitania de Pernambuco – Comarca das Alagoas

Gian Carlo de Melo Silva


A presença dos primeiros africanos em território Pernambucano data do século XVI. Em tese só foram desembarcados a partir do alvará de D. João III de 1549 autoriza a entrada de cativos vindos da Guiné e São Tomé, limitados a 120 peças para cada engenho montado e com capacidade de produção (SILVA, 1988, p. 107). Antes disso, Duarte Coelho já tentava conseguir o contrato para importação de africanos, algo que não foi concedido pela coroa, porém não é possível saber a quantidade que foi desembarcada antes de 1549. 
Tal período coincide com as informações fornecidas por Diégues Júnior que afirma ser da segunda metade do XVI a introdução do homem negro em Alagoas (2012a, p. 164). Se a lei de D. João III foi realizada à risca, os primeiros africanos chegaram aqui para os engenhos fundados por Cristóvão Lins, seus descendentes e os “colaboradores da obra de colonização”, como foi Rodrigo de Barros Pimentel, que construiu engenhos de açúcar. A expansão dos canaviais se estendeu desde a parte norte de Alagoas e [...] continuou estendendo-se; ocupou a zona das lagoas, marginando os rios Mundaú e Paraíba; atingiu São Miguel. Ao iniciar-se o século XVII, o litoral alagoano estava colonizado; os bueiros de engenhos se espalhavam pelos vales dos rios Manguaba, Camaragibe, Santo Antônio Grande, Paraíba, Mundaú, São Miguel e também pelas duas lagoas: a do Norte, ou Mundaú, e a do Sul, ou Manguaba [...] (DIÉGUES JÚNIOR, 2012b, p.34-35).
Essa expansão da cana em Alagoas necessitava do trabalho do homem e da mulher negra. Como lembra Alfredo Brandão “o primeiro negro apareceu em Alagoas quase com o primeiro branco” (1988, p.19).  Foram os negros um dos atores primordiais para o processo de colonização, sem o seu suor e esforço físico, a cana, o engenho, a moenda, a sociedade não teria se desenvolvido. Como lembra Freyre, algumas das ocupações dos negros no Brasil colonial foram músicos, sangradores, dentistas, barbeiros e “não apenas negros da enxada ou de cozinha” (FREYRE, 2006, pp.499-553). Os africanos e seus descendentes são parte fundamental, um alicerce da sociedade que se formou no Brasil de outrora.
Com o passar dos anos e a presença cada vez maior de escravos surgem às primeiras libertações, que vão dar origem a um elemento novo, com uma condição diferenciada entre os negros, são os homens e mulheres forros. O registro mais antigo de alforrias na Capitania de Pernambuco que temos conhecimento é o da “negra Anna”, que ocorreu no ano de 1656. O seu senhor Pero Barrozo disse em testamento que deixava “Anna forra, livre, e isenta, por ser velha, e me ter feito muito serviço, com muito cuidado de minha fazenda”. 
O ato de alforriar algum escravo, talvez viesse preencher a vontade descrita por Azurara na epígrafe deste artigo, porém tinha um significado que mudava a ordenação social, cirando uma geração de novos homens e mulheres que viviam em uma condição jurídica e social diferente. Afinal, eram negros, pardos, crioulos, cabras, angolas, minas e tantas outras designações que passaram a existir nos registros acompanhados do termo forro após o seu nome.
Sobre a situação do forro, ele passou a ter um status diferenciado na sociedade colonial, seja em Alagoas ou no resto do Brasil. Conforme Russel-Wood, os “escravos negros nascidos no Brasil tinham vantagens visíveis , quando libertados, sobre os negros nascidos na África” (2005, p. 86). Essa diferenciação ocorria, por exemplo, por ser mais fácil aos escravos nascidos no Brasil conseguirem alforria do que os que vieram da África. (SILVA, 2014b & LARA, 2007, p. 128).
Ampliando nossas observações vale lembrar que no mundo colonial os forros tinham um papel significativo, seja simbólico para os demais cativos que poderiam ter esperanças de alcançar a liberdade, ou como uma massa que legitimava o poder, como lembra Mathias ao afirmar que “para obter sua legitimação social, a elite necessariamente deveria interagir com todos os segmentos da sociedade” (MATHIAS, 2012, p. 299). Neste processo de interação é que podemos vislumbrar as negociações dentro da escravidão, que favoreceu os cativos e seus descendentes a participarem mais ativamente da formação social do Brasil.
Em sua definição do termo alforria, Sheila Farias (In: VAINFAS, 2001, p. 30) apresenta a existências de três maneiras para o ex-escravo asseverar sua condição de forro na sociedade. São elas: a carta ou o “papel de liberdade” devidamente estruturada com assinatura do senhor ou de alguém por ele outorgado e que poderia ser registrada em cartório; A outra maneira era o registro nos testamentos, em que ocorriam as divisões dos bens e algumas alforrias podiam ser concedidas como reconhecimento da companhia e trabalho exercido pelo cativo. Por fim a pia batismal, local em que no momento do batismo o senhor anunciava que forrava a criança.
Assim, a alforria foi uma prática social corrente no período colonial e era um mecanismo inserido dentro de contextos próprios e que poderia ser concedida,
[...] solenemente ou não, direta ou indiretamente, expressamente, tacitamente ou de maneira presumida, por ato entre vivos ou como última vontade, em ato particular ou na presença de um notário, com ou sem documento escrito [...] (MATTOSO, 2003, p.177).
Tal prática social foi vivenciada em Alagoas e, nos servem de exemplo, para observarmos como os senhores e, alguns escravos, foram atores do cotidiano vivenciado nas terras ao sul da Capitania de Pernambuco.
Nossas fontes percorrem parte do período colonial nas localidades de Penedo e Santa Maria Magdalena de Alagoas do Sul. Cada localidade nos fornece fontes que apresentam alforrias de homens e mulheres, sejam em cartas de alforrias, testamentos ou registro de batismo.
No início do século XVIII já encontramos uma prática de alforria que ficou conhecida como coartação , nela, o escravo alforriado tinha parte fundamental para alcançar sua nova condição jurídica. A coartação exigia dele um algo mais, que poderia significar alguns anos de trabalho para completar o pecúlio exigido ou ainda, exercer algumas funções até a morte do seu senhor. Só após tal exigência é que ele teria de fato sua carta de liberdade.
Na Vila do Penedo, no ano de 1713 o padre Manoel Pereira usou de tal artificio em seu testamento. Escreveu que deixava o meu mulatinho Francisco filho de Izabel coartado em quarenta mil réis que dando-os será, o valor não seria pago pelo mulatinho, e o cotidiano urbano de Penedo é que iria possibilitar o acumulo de tal quantia através do trabalho de sua mãe Izabel ou outro parente da criança. 
O mesmo padre ainda era possuidor de alguns escravos, e trabalhando dentro das lógicas de gratidão e bons serviços prestados declarou que entre
os escravos que nosso senhor por sua infinita piedade e misericórdia me tem emprestado e conservado até o presente , há Ambrozio Luiz, que foi do Goes o qual na perda do barco que tive, pós bastante cuidado em me aproveitar a fabrica dele, e há bastantes anos me tem ganhado com que me ajudou a viver, e assim o deixo forro, livre, e isento de toda a servidão e cativeiro: e lhe mando viva bem com sua mulher e como verdadeiro cristão. E Declaro que outro escravo que tenho é Miguel Gomes que foi do Hermitão de S. Gonçalo, o qual desde que o comprei me serviu, e servio assistindo-me sempre de noite, e de dia com bastante diligencia, e zelo, e assim o deixo forro, livre, e isento de toda a servidão e cativeiro: e lhe mando que nos primeiros três anos depois do meu falecimento me mande em cada um deles dizer duas missas por mim segundo a disposição da irmandade de Nossa Senhora do Socorro, em que há muitos anos estou assentado por irmão. 
O exercício da piedade cristã ao alforriar dois escravos seguiu um contexto maior e que acompanhava durante alguns anos o cotidiano dos escravos e de seu senhor. O primeiro dos forros foi Ambrozio, que era um escravo casado - obedecendo à lógica de inserção nos preceitos do catolicismo tridentino , estava ao lado do Padre desde a perda de um barco e graças ao fato de ter “ganhado”, num possível trabalho de escravo de ganho nas ruas da Vila de Penedo “ajudou a viver” o seu senhor.
Com sua dedicação cotidiana, Ambrozio conquistou o reconhecimento do Padre Manoel e foi alforriado em seu testamento, mas não sem antes prestar a atenção na ultima ordem de seu senhor que era viver “bem com sua mulher e como verdadeiro cristão”.
Depois foi a vez de Miguel, que tinha nome de anjo, mas era mais um escravo do Padre e tinha certa vivência no mundo religioso, pois seu antigo proprietário era um ermitão de São Gonçalo Garcia, uma das irmandades com maior influência na região (ALVES, 2016). Miguel acompanhou desde a sua compra o seu senhor com bastante “diligencia e zelo” e por isso conquistou sua alforria em testamento.
Os detalhes da vida destes dois escravos podem ser compreendidos ao analisarmos o discurso do seu senhor no momento em que os deixava forros. Vemos que uma vida de dedicação e obediência ao seu dono era algo primordial e bastante valorizado, talvez, observando isso tais escravos conquistaram inserção através da fé católica, seguindo suas regras, diferenciando-se dos demais e agradando ao Padre Manoel. Por fim, e aqui mais um momento de realização de ordem, os alforriados ficavam encarregados de “nos primeiros três anos depois do meu falecimento me mande em cada um deles dizer duas missas”. Nada mais “justo” para demonstrar a gratidão que esses homens tinham com seu antigo senhor.
Já em Santa Maria Magdalena de Alagoas do Sul encontramos a alforria de Maria, que foi libertada pela sua senhora Maria Joaquina no ano de 1788. Um ato que ficou registrado em cartório, como deveria ser feito em todos os casos para garantir a segurança do ex-escravo. Consta na carta de alforria que
Eu Maria Joaquina, que entre os mais bens que possuo de herança e pacífica posse, e bem assim huma mulatinha de peito por nome Maria, a qual a forro, e como com efeito forrado a tenho de hoje para todo o sempre, para que se utilize de sua liberdade de hoje em diante, como se fora de nascimento, cuja alforria me obriga a fazer boa, firme e valiosa, a custa da minha fazenda, pois a faço de minha livre vontade e sem constrangimento algum [...]. 
Como é possível ver, a mulatinha não foi alforriada na pia batismal, sua senhora concedeu a liberdade posteriormente e fez questão de ratificar que sua vontade estava sendo realizada de forma “espontânea” por sua “livre vontade”. Ressaltam os termos usados por Maria Joaquina para com Maria, o desejo de “que se utilize de sua liberdade de hoje em diante, como se fora de nascimento”, podem significar uma relação que extrapolou os limites entre senhora e escrava. Fazia, no momento da morte, o reconhecimento de que a mulatinha tinha o direito de ser liberta e viver sua liberdade como se fosse desde o nascimento.
Outras possibilidades de alforria ocorreram na pia batismal, em Santa Maria Magdalena de Alagoas do Sul encontramos dois exemplos de crianças com poucos dias de nascimento que tiveram sua liberdade registrada. A existência de registros dessa natureza,
as fontes eclesiásticas podem nos ser extremamente úteis, pois a sociedade construída na conquista americana foi montada em meio à chamada Contra-reforma Romana, o que significa afirmar que aquelas gentes, da nobreza da terra aos escravos da Guiné, produziram registros dando conta a Deus de seus compromissos e atos” (FRAGOSO, 2014, p. 27).
Para dar conta a Deus de seus atos, temos o primeiro exemplo de batismo com alforria que ocorreu no domingo, dia 14 de outubro de 1810, quando na Igreja Matriz Joaquim de Oliveira Barros “pôs os santos óleos” em Marcos, que era filho de Manoel e Joaquina, todos eram escravos de Maria Francisca e moradores da freguesia. Os padrinhos eram Jozé Barboza e Antonia Maria, ambos solteiros e juntamente com os demais disseram que o “dito batizado o havia por forro de hoje por diante”. 
Já no ano de 1811 foi à vez de Januária conseguir ser alforriada. Na quarta-feira, dia 31 de julho do referido ano ela esteve presente com sua mãe Maria, o seu senhor Joaquim de Santa Anna, seus padrinhos Jozé Ignacio e Francisca Rodrigues na Igreja Matriz. Lá o padre José Ignacio do Rego a batizou, inserindo-a no mundo cristão, e logo após o senhor Joaquim “disse que a dava por forra liberta de hoje para sempre” tirando o cativeiro do destino da pequena Januária. 
Ser alforriado no momento do batismo, como ocorreu com Marcos e Januária, tem um significado maior para os seus pais, pois é o fruto do esforço deles que será recompensado com a alforria do rebento. A próxima geração familiar não teria mais o cativeiro como morada. Alcançavam através do filho forro, algo que talvez não fossem concretizar tão rapidamente. Além disso, os pais e os filhos ampliavam os laços existentes na sociedade, os padrinhos agora eram parte da família e tinham a obrigação de proteger e zelar pelos seus afilhados. Eles eram uma extensão da base familiar (SILVA, 2014b).

Considerações Finais





A observância das práticas de alforria na Alagoas do século XVIII mostra um pouco da vivência cotidiana de homens e mulheres que conseguiram mudar sua condição ou a de seus filhos. Estavam sendo inseridos numa nova perspectiva social, saindo da escravidão para uma liberdade, conquistada muitas vezes a partir da dissimulação.
Os casos aqui apresentados são apenas possibilidades para entendermos o desenrolar de um processo que começou no século XVI em Alagoas e que perdurou até finais dos Oitocentos. Marcando a construção de uma sociedade patriarcal, com o lastro na grande lavoura canavieira e na exploração da mão de obra escrava. Mão essa que não existiu voltada só para o trabalho pesado, viveu e contribuiu para formação social, para cultura, para economia e que hodiernamente precisa ser cada vez mais valorizada em sua existência e sua história.

domingo, 22 de setembro de 2019

Culto afro-brasileiro: Tia Marcelina e o pintor Zumba (I)_


 Chamada
 Afro-Brazialian religion: history, memory and emotions
 Religione afro-brasiliana: storia, memoria, emozioni
 Religion afro-brésilienne: histoire, mémoire, émotions
 Religión afrobrasileña: historia, memoria, emociones
 Painter
Afro, Historia, Cultos, Artes, Memória, Pintor Zumba 

Jeamerson Santos



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Mestrando em Culturas Populares na UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE- UFS Especialista em Arte, Educação e Sociedade no CESMAC. 2014/2015. Graduado em Ciências Sociais- antropologia pela Universidade Federal de Alagoas UFAL 2013. Cenotécnico da Escola Técnica de Artes ETA / UFAL Área de pesquisa :Antropologia,Culturas Populares, Identidade,Educação, Preconceito Racial. Área de atuação : Cenografias,Ambientação cênica,Pintura artística,Direção de artes, Esculturas,movimento sociais. Coordenador Geral do Sindicato dos Trabalhadores Técnicos da Universidade Federal de Alagoas- SINTUFAL- gestão 2013/2015. Membro da Câmara Acadêmica da Universidade Federal de Alagoas- UFAL (2013/2015). Membro do Conselho Universitário da Universidade Federal de Alagoas-CONSUNI ( 2013/2015). Membro do Projeto de Extensão da UFAL: Fórum Mestre Zumba: Pensamento em Artes Afro Ameríndias desde 2013. Suplente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial de Alagoas 2013-2015. Membro do Conselho Universitário da Universidade Federal de Alagoas-CONSUNI ( 2016/2018). Membro da Câmara Adâmica da Universidade Federal de Alagoas-CONSUNI ( 2016/ 2018). Diretor da Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores técnico-administrativo em Instituição de Ensino Superior Publicas do Brasil- FASUBRA gestão 2012/2014.

 História, memória e emoção

Luiz Sávio de Almeida


Não gosto de dar entrevista; ela é sempre traidora e , até mesmo, o entrevistado se obriga a falar dentro do recorte realizado pelo entrevistador,  bastando isto para surgir uma série de problemas. Então, quando me pedem algo, por exemplo, ds parte da imprensa,  eu digo para me mandarem as perguntas e com calma tento responde-las, at´pe mesmo para colaborar com o próprio jornalista. Gravar entrevista, é muito raro. E entrevista longa, mais raro ainda, pois quanto mais tempo você fala, mais besteira você sai dizendo: é melhor ser burro no mais curto espaço de tempo.  No entanto, quando é um trabalho acadêmico, eu sempre falo livremente.

Foi surpresa quando fui procurado pelo Jeamerson para falar sobre uma tela do Zumba: a da  Tia Marcelina. Eu jamais pensei, quando fazia e faço as coisas, que aquilo tem alguma importância: eu vou mais pelo impulso– e preparado para aguentar as consequências –, do que estudado. Tenho me dado mal e tenho me dado bem, da mesma forma que aconteceria se eu andasse com uma fita métrica, a tomar medida sobre minhas falas. Eu não sei se  já havia dito, que a famosa pintura do Zumba havia passado por mim. Os cuidados do de pesquisador do Jeamerson,  havia dito a ele para ver as raízes da foto.

E, sem dúvida, eu podia narrar muita coisa do que havia acontecido, por ela ter emergido quando eu estava imerso no povo da macumba – adoro esta expressão –, procurando, dentre outras coisas, se eu teria condições de propor um projeto de pós-graduação sobre ele. Foi quando conheci pessoas maravilhosas e que se atrelaram á minha vida: antes como amizade e hoje como saudade.

Navegar no passado foi aprazível e ao mesmo tempo saudoso. Julguei que era necessário passar pelo sentimento, dar a entrevista e situar a participação de muitas pessoas, mormente a de Celestino, Joca e Luiz Marinho; nisto incluo o próprio Belarmino,  no caso da imagem pintada de Tia Marcelina, o Zumba. Celestino, Joca e Luiz Marinho são fundamentos da obra do Zumba.

Tia Marcelina bem, poderia ser aquela senhora com o balaio na cabeça, parada na calçada e em frente a uma casa pobre, nem sei mesmo se de Maceió. Importa que ela foi reconhecida assim e daquela exata maneira se impôs e resgata a memória de uma história que jamais poderia ter sido letrada. Esta é a beleza de Tia Marcelina: ser única e tantas ao mesmo tempo e, deste modo, responde simbolicamente pela história do próprio povo: o povo da macumba.

Vou contar uma história que não disse na entrevista. Uma vez, a janela estava aberta e da calçada dava para ver o quadro da Tia Marcelina. Um homem ia passando e aí parou; olhou para mim e perguntou: É esta mulher que parava o trem? Eu ia dizer que não? Ele sorriu, e saiu alegremente.  Tia Marcelina integra, alegra e representa.


REGISTRAR, CELEBRAR E AGRADECER :  O  cotidiano negro em  Maceió.


Prof. Sávio: Eu só queria que o Celestino, que o Joca e o Luís Marinho tivessem ouvindo essa conversa. Eu acho que deve ‘tá’ por aqui. [Jeamerson - Deve ‘tá’ por aqui sim.]

É com esse trecho da entrevista que realizei  com professor Sávio  para minha pesquisa  do Mestrado em Culturas Populares, que compartilho com a mesma  disposição e gentileza com a qual foi concedida, suas memórias e historias que  são de importância para quem quer estudar, conhecer  e celebrar a presença negra pelo olhar da força e da resistência.
Em minhas pesquisas sobre o artista plástico José Zumba, vou encontrando novos caminhos que nos leva para o reconhecimento e registro de grandes momentos da historia dos negros alagoanos, e um desses caminhos nos leva para  aqueles  encontros de encruzilhadas:  foi assim a entrevista com o professor e pesquisador Savio de Almeida, relatos de uma vivencia compartilhada,  de experiência de enfrentamentos,  e de risos sobre a  Salva de Exu.
Um momento de pesquisa mágico, ouvindo mais que perguntando, chegamos onde a memoria  vai   a realidade resultante das ações do passado, ao iniciar nosso encontro com a curiosidade de como chegou ate ao artista  plástico José Zumba, a ideia de pintar o quadro Tia Marcelina e encontramos bem mais do que buscávamos: encontramos os “anônimos”, que são os homens negros religiosos organizados  e  corajosos.
Registrar parte  da historia contemporânea  das  lutas travadas em Maceió, por liberdade   religiosa e perceber essa dinâmica pela perspectiva negra é muito significante, o espaço para os homens  negros e sua cultura e  religião  eram absolutamente perseguidos  marginalizados, invisibilizados; compreender  a força do enfrentamento  de tudo isso  é o posso afirma como fundamental.
Por isso a importância  da  entrevista  do professor Sávio, parte  dessa possibilidade  de cruzar  nosso caminhar com outros que como  lamenta o professor  não estão aqui para ver o resultado  de  suas lutas, uma Maceió negra  que não  se cala mais, que sai as ruas não pra celebrar  o Quebra, mas para exaltar  a resistência de Tia Marcelina, sai as rua pra afirmar que não somos o que sobrou do Quebra, somos o que resistiu ao Quebra  e resiste ate hoje pela vida da juventude negra e  liberdade  religiosa.
Espero que o leitor, possa sentir o mesmo, que senti ao ler essas memórias registrada nessa entrevista, emoção de ter a oportunidade de agradecer e reconhecer  a contribuição do professor Sávio, Celestino, Joca e Luiz Marinho. E em nome deles   agradecer  a todos os que lutaram  e continuam lutando.



O povo da macumba e Tia Marcelina: uma entrevista a  Jeamerson Santos (I)

Uma proibição policial

É preciso retomar um pouco o clima, para chegarmos à Tia Marcelina. Houve uma época, aqui em Alagoas, que a Polícia vigiou os ensaios de folguedo, como, por exemplo, o Guerreiro e isto sob o argumento de ser motivo de cachaçada, confusão e de violência...  Então eles passaram por período de pressão policial muito grande. Aí houve um acordo – eu acho que costurado pelo Théo Brandão: se o Departamento de Cultura liberasse o local para  ensaios, a Polícia não chegaria perto. Conversando comigo ele disse:  - Se eu não fizesse isso, ia ser um problema muito sério!
Passou muito tempo desta forma. Eu tinha muita ligação com a Federação dos Cultos Afro-brasileiros, por conta de amizade com um cidadão chamado Celestino, que vivia na Igreja de São Sebastião... Vivia ali na Igreja. E era contínuo da Secretaria de Educação. A gente fez amizade pessoal. E ele era Ijexá. Eu acho que era o único que existia em Alagoas;  era no Jacintinho daquela época, radicalmente diferente do que vemos hoje. Eu procuro por ele e não consigo saber onde ficava. Eu acho que é a hora dos cultos começarem a reclamar a colocação dos Terreiros no patrimônio histórico. Falta pressão em cima disso.
O caminho do Traçado
Pelo Celestino, fiz amizade com o pessoal da Federação dos Cultos Afro-brasileiros;  amizade que terminou sendo íntima no sentido do companheirismo, de viver conversando.  E, naquela época, eu motivado pelo Théo Brandão, que era uma espécie de tutor meu... Bom, Theo e eu e conversávamos  praticamente todos os  dias, umas duas horas por aí assim... E tínhamos ligações pessoais.  E o Théo me levou a começar ter interesse em estudar isso. Naquele tempo eu andava pensando em estudar antropologia. E eu comecei a me aproximar dos Terreiros especialmente andando com mais três pessoas: uma delas era  o Luiz Marinho, Pai de Santo, era Nagô Traçado, como chamavam. Não sei como é que chamam hoje:  Nagô Traçado.  Bom, eu acharia interessante que se fizesse um trabalho sobre o léxico dos Terreiros, as mudanças... Eu acho que seria interessantíssimo;  mas chamavam Traçado.
E eram ali, a Federação e o Terreiro do Luiz Marinho, lá no lado da Ponta Grossa, que era um centro de concentração dos Terreiros. Existe um livro, que foi publicado nessa época, e que tem um título fantástico. Chama-se: Os Tambores na Ponta Grossa. Luís Marinho,  profissionalmente era pedreiro e  tinha uma lojinha de vender calçados, uma barraquinha na área do mercado, ali nos lados da feira do Passarinho, perto da banca do Arthur que era meu fornecedor de folheto de feira.
Sobre esse Luís Marinho, eu publico talvez o primeiro trabalho que aparece na imprensa de Alagoas, absolutamente simpático aos cultos. Eram duas páginas inteiras no jornal, parece-me que O Correio de Maceió, coisa assim. Ele fala do Terreiro sem qualquer  acusação. Eu encontrei o artigo no site da FUNARTE. E aí eu fiz amizade com Luís Marinho, que começou a achar que era meu Pai de Santo e eu não ia dizer que não, ‘né’? E fui privando da amizade deles e com isso eu fui tendo uma grande intimidade com os cultos aqui em Alagoas, principalmente Maceió. Mas eu não me considerava capaz de fazer uma pesquisa sobre isso. Eu achava que era uma complexidade muito grande, e que eu não tinha formação. E foi por isso que eu desisti; foi mais por covardia intelectual do que por qualquer outra coisa.  Eu teria de sair daqui para estudar, me preparar e não podia por razões de família. O resultado é que não me senti preparado,  mas eu me sentia tão bem que não largava. Para objeto de estudo não dava, eu sabia que não dava, mas andar com eles, dava.

As amizades

Então, eu terminei tendo amizade com eles e com muitas Casas de Terreiro de Xangô, aqui em Maceió. Eu acho que eu devo ter conhecido muitas e muitas e muitas Casas aqui. Eu não perdia saída de Iaô. Acontecia uma, eu ‘tava’ lá, com esse pessoal. Era o Luís Marinho, era o Celestino. Esses dois eram dirigentes da Federação dos Cultos Afro-brasileiros,  uma entidade que merece um belo estudo, até por conta das negociações que se faziam com o sistema.           Apois bem. E eu gostava, inclusive esteticamente, e ainda hoje de uma beleza fantástica e isto quer seja de Terreiro rico, quer em pobre. Eu acho que os pobres, às vezes, têm muito mais beleza. Faz tempo que eu não vou. O último foi na Mãe Vera a quem adoro.
 Apois, ficamos o Luís Marinho, eu, o Celestino, e aí havia uma pessoa que eu acredito que estava interessada em fazer política lá dentro, mas que terminou se ligando na gente. Chamava-se Coronel Belarmino. Morreu faz um tempão. Era uma pessoa muito boa, mas eu acho que ele era muito ligado a um Coronel do Exército que queria ser Deputado. Mas ele nunca, junto com a gente, conseguiu fazer a política partidária, porque a gente não deixava.  Ele andava mais com a gente como amigo. Ele era muito agradável. E era daqueles coronéis antigos, da Polícia antiga, velha, que tinha muita história ‘pra’ contar.
Então, eu gostava muito dele. Mas ele tinha essa tentativa de fazer um movimento político de candidatura lá desse Coronel, que depois mataram: acho que Adauto. O da polícia que andava com a gente era o Belarmino que o Bráulio brincava comigo, chamando de Coronel da Macumba, mas só quem falava isto era o Bráulio e eu. Nunca se usou esta expressão. Falo do Bráulio Leite Júnior. E aí, fiz também amizade com um camarada chamado Joca. Joca morava lá na Ponta Grossa e trabalhava pelas canhotas, como a gente chamava. Não sei como é que chama hoje: pelas canhotas, pela esquerda... sangue... Era o que chamavam. Ou seja, tinha umas certas ligações e não seria muito interessante fazer brincadeira com ele. E ficamos amigos. Isso é importante eu dizer, porque são essas quatro pessoas, comigo cinco, que fazem, em grande parte,  aparecer a história da Tia Marcelina em alto curso da memória da Seita – como também chamavam. 
A Salva de Exu
Então a Polícia continuava botando pressão em cima dos cultos, especialmente por conta de um negócio que eu não sei se existe hoje ainda, chamada a Salva de Exu.  A Salva de Exu, já ‘tá’ dito, ‘né’. Eu já fui ‘pra’ Salva de Exu e era barra pesada, porque a cachaça rolava mesmo. Então a Polícia, especialmente a partir daí, e o pessoal a reclamar do barulho, dava no que dava,  Maceió já não tinha mais espaço ‘pra’ você ter os Centros isolados. Os Centros já estavam, por mais pobres que fossem, em contexto de relação urbana. Você não tinha condições de ter um Terreiro afastado. O Terreiro ‘tava’ geminado ali com a pobreza que inclusive ia  aumentando por conta da migração que vinha ‘pra’ Maceió.
É entre 60 e 70, onde você começa a ter a violência da chegada da marcha migrante ‘pra’ Maceió. E é onde você vai começar a ver  crescer as ruas pobres da cidade, mas numa expansão alta! As grotas e tudo vão nascer um pouco depois daí. Mas na hora que essa pobreza chega, ela chega num lugar onde poderia ter sido considerado afastado, mas agora mais não. O Centro ‘tava’ ali, parede com parede.  Se bem que esses cultos, só eram relizados uma vez na semana, duas... Assim era a vida do culto, da época que conheci. Era muito ‘pra’ dentro do culto e muito pouco ‘pra’ fora, porque ele não podia ‘tá’ saindo ainda. Então era uma espécie de contido, revertido para si mesmo.
Nunca deixou de existir perseguição; ela não acabou com o Quebra;  e o que vem depois precisa ser estudado. Eu até escrevi isso em alguma coisa. Na década de 30, por exemplo, a perseguição foi grande! Eu tenho um livro raríssimo! Não sei nem como eu consegui; foi escrito por  jornalista que passa por Maceió nessa época e acompanha a polícia perseguindo alguns Terreiros: década de 30.
A ligação se estreita
Apois, começa haver essa empatia minha. Agora pronto, eu cheguei no termo que eu queria. Essa grande empatia que ainda hoje eu tenho manifesta, com relação aos cultos, mas eu já tinha visto que eu não podia estudar. Era preciso que eu fizesse uma remontagem da minha formação, porque ela era em Direito, e o Théo, acho que sentindo em mim alguma espécie assim de  não sei se talento ou da possibilidade de interesse por essa área cultural, me fustigava e aí me disse: ‘Vá estudar os Terreiros! Estudar os Terreiros... Depois que Arthur Ramos ninguém vê  isso”.   Então eu por brincadeira respondi: “ E por que é que o você não estuda?”
A temática negra não penetrava na inteligência de Alagoas da época. Então, você veja que isso que eu ‘tô’ lhe dizendo dá um pouco da magnitude do problema geral do negro desse momento que nós vivíamos. Você transformar o negro, objeto de plena perseguição, num sujeito que tinha história e num sujeito que tinha a sua cultura e não era a excrescência que se dizia... Isso era um afrontamento ‘pra’ muita coisa. Era preciso ter peito.
Eu nunca pensei, naquela época,  que era importante o que a gente  fazia. Eu ‘tô’ vendo os caras que ‘tavam’ comigo e vendo a importância deles e não a minha, agora que voce me faz olhar a importância do que vivemos. Aí você tinha uma temática negra perseguida em sincronia com a perseguição que viviam. Ela não aflorava. Ela no máximo chegava ao Abelardo Duarte, mas ligada à ideia de folclore. O Abelardo Duarte tem uma grande importância, não é porque ele rompa, mas ele tem coragem de ser diferente.
Ele não tinha uma antropologia capaz de romper com o que, tradicionalmente, se montava com relação ao conhecimento da cultura de Alagoas. Havia uma cabeça ibérica, de formação ibérica. A África quando chegava aos estudos, não chegava visível, porque o negro não era visível. Não era que houvesse maldade, era como se a cortina que existisse, fosse de tal forma fechada na vida política e social normal, que ela impedia o campo acadêmico de existir.  
Um rompimento
E veja os rompimentos. De uma hora ‘pra’ outra, você vai ter uma estrutura intelectual se vinculando aos cultos e você ‘tá’ num momento em que era eles eram negados pela polícia. Macumba não era  tema. Macumba era negócio de macumbeiro! E não seria apenas por ser de negro. Eu acho que era também pelos interditos religiosos, alicerçados pela Igreja Católica e pelo kardecismo, que considerava isso coisa de segunda linha, de terceira linha, negócio assim da periferia: espírito vindo a  frequentar os Terreiros, não poderia ser boa bisca.
Aí o que é que acontece? Eu passo a frequentar isso e a ter interesse.  Alguma coisa eu teria condições de fazer do ponto de vista intelectual: era estudar a distribuição geográfica dos Terreiros. Quem faz o primeiro estudo deles aqui neste sentido, somos nós. A verificar a distribuição geográfica dos Terreiros em Alagoas... Agora, imagine a importância desse troço lá naquele tempo.  Hoje tudo é graça.
E como é importante registrar, porque se você não registrar  ‘tá’ perdido... E é por isso que eu ‘tô’ lhe dando esse depoimento. Eu não me dei conta, nunca me dei conta de que vivia um momento importante... Só depois, é que comecei a perceber:  quando me falaram. Começamos a trabalhar com os fichários da Federação. Eu lhe disse que eu perdi esse material todo, já, ‘né’? Ficaram poucas coisas. A complexidade, por exemplo, desse negócio de ser Nagô, de ser Jeje, na minha cabeça, eu não tinha condição, eu não tinha formação, eu não sabia o que era isso e demoraria para saber se fosse me meter.
Um lugar a trabalhar
Mas saber onde ‘tava’ o ‘lugar’, eu sabia. E comecei a mapear uma série de elementos e a descobrir um troço que ‘pra’ mim foi muito importante, tendo descoberto isto com o Théo Brandão. O Théo me disse uma vez o seguinte: “Olha, Sávio, o segredo ‘pra’ você matar o que é que é o Terreiro em Alagoas,  em Maceió, é entender o que é que é isso que é chamado de Traçado”.  Aí minha cabeça ficou todo o tempo pensando o que seria esse Traçado. Traçado, sentindo que ele tinha história; apenas sentindo.
 Fui fazendo pequenas coisas que eu podia fazer sem me assustar com a responsabilidade: sobre a nomenclatura dos Terreiros etc. e tal. Tudo isso perdeu-se! Nomenclatura dos Terreiros, eu comecei a anotar isso.  Bom, e decidi tomar uma atitude que eu achei que era séria: ‘desfolclorizar’ esse negócio e ter coragem de ir ‘pra’ imprensa defender. E jamais ‘folclorizando’, porque meu medo era esse. Meu medo era que ‘folclorizasse’ a questão e deixasse de estar com o negro.
Então fica essa vida de ida e vinda... De tal forma que eu achava que eu já era macumbeiro também. Era macumbeiro. E onde tinha... Saía ‘pras’ festas etc. e tal, vivia na Federação... Eu gostava deles. Eu nunca frequentei o lado do Maciel. Isso eu nunca frequentei não. Mas engraçado, eu acho que eu tenho tudo que saiu na imprensa, sobre quando Maciel quis ser o rei do Candomblé. Eu acho que eu tenho tudo guardado, mas onde ‘tá’, não sei.  Dá outro grande trabalho, mas isto foi bem depois: merece também um estudo: a nobilitação do Pai de Santo.
O povo da macumba e Tia Marcelina: uma entrevista a  Jeamerson Santos (II)
 
Quadro de Zumba
Aí um dia, eu ficava assim pensando onde é que estava a história disso tudo: onde estava registrada. Eu não tinha ainda a formação suficiente ‘pra’ poder entender a questão de memória, ‘pra’ entender a questão de identidade. Digamos assim: eu teria muito mais uma base filosófica do que prontamente uma discussão de uma temática antropológica ou histórica.  
.           E vai essa integração todinha e é sempre esse sentido que não existia a história registrada e teria de estar na memória. Por isso é que eu volto muito depois ‘pra’ poder tentar trabalhar essa história, mas eu nunca escrevi; é material mais recente, embora com uns 20 anos e isto já faz diferença. Eu tenho todo o material, mas nunca escrevi.. São horas de entrevista sobre a história de cada Centro que visitei.    
O que me impressionava era no que divergiam, no que os Centros eram diferentes. É muito fácil você ver o que é igual e é muito difícil você perceber porque que o diferente é construído em detalhes. Eu tenho todas essas gravações feitas e estão no IPHAN, pois dei ‘pra’ eles talvez o mais importante acervo de registro oral sobre os Centros que deve ter sido feito pelos 80 ou noventa. Importantíssimo.
Nós fomos a muitos Terreiros, inclusive no interior e isto é essencialmente importante no acervo. Essas gravações, que eu acho que devem ser recuperadas, trabalhadas, estão no IPHAN, em disco e em fita. Isto dá uma bela tese, um belo livro. Embora que ela se perder é um troço muito triste. O Clébio andou nesses Terreiros comigo nessa segunda etapa. Há muito tempo depois. Isso aí vai ser, acho, na década de 80, por aí assim.  É um tesouro: dá dissertação, tese, livro. Talvez valesse a pena, alguém apresentar um, projeto para transcrição das fitas. Está também no IPHAN um importantíssimo acervo sobre a história indígena,  um raro acervo de falas indígenas.
E vamos para o Zumba
O Zumba é um exótico negro ‘pra’ burguesia. O Zumba era um artista que tinha que ser camelô de si mesmo, mas era reconhecido pelo povo da Macumba. E foi esse pessoal da Macumba que fez minha aproximação com ele. Eu não tive essa convivência de intimidade. A minha relação com o Zumba,  acontece em torno da Tia Marcelina. Então veja: eu sempre comecei a achar que faltava a... Hoje em dia eu falo em memória registrada. Foi quando eu tomo conhecimento do Quebra. E aquilo ficou na minha cabeça
Você ‘tá’ vendo como o Théo foi importante na minha vida, ‘né’?.  A minha cabeça não chegava lá, mas pressentia essa questão da história. Como é que foi a história desse povo e como é que é possível escrevê-la? Mas como eu digo: eu me julgava incapaz de mexer. Se eu fosse mexer, eu não iria pelo viés antropológico. Eu ia pela recuperação dessa história.  Você pode ver que quase todos os trabalhos que passam pelo Quebra, tratam muito mais da estrutura branca do que da referente ao negro. E a documentação que pegam é só branca, porque não tem negra! A documentação negra é auricular, no ouvido, a comunicação era essa.
Então você tinha um marco que depois virou ficção, no sentido de que extrapolou a condição. O Quebra aparece muito por conta da política branca. É extremamente difícil ter plantada uma ótica negra, porque você teria que ”imaginá-la”. Em grande parte do que se fala sobre o Quebra é estruturado de três, quatro ou cinco reportagens vagabundas do Jornal de Alagoas. E, quando na verdade, o que está por trás é a grande estrutura de perseguição, que aflorava religiosamente, à população negra. Você veja que se você for tratar bem a questão... Estava em jogo a destruição do negro com sua cultura na condição urbana.  Não, é porque diziam que o governador era lebá...  Nem um lado e nem o outro estaria com o negro.
Ele era chamado de Léba, porque você estava com a contradição do negro aflorando ali e não pelo fato de Euclides Malta ser macumbeiro. Agora, por que é que um negro representava esse perigo? Por que era negro? Por que era pobre? Ou ser pobre era ser negro? Então você tem um problema aí, que é imenso ‘pra’ você se situar, porque o Quebra nem sequer foi arranhado ainda, eu acho, sabe. Apesar de magníficos trabalhos. O trabalho do Rafael ´´ é  um belo texto, ‘né’. Outros trabalhos que têm por aí, são trabalhos interessantíssimos! Mas eles não conseguem o que era o momento negro embora aflorem muito do que seria este cotidiano onde o religioso era apenas um detalhe.
Eu acho que você verá parte do momento negro do Quebra, muito mais pelo que estava consignado nas estruturas de fora da alta elite da disputa política. Eu acho que é muito mais importante você estudar, por exemplo, a presença do Quebra... Vá estudar a Liga dos Republicanos Combatentes, porque ali você começa a verificar que ela passa por baixo, trabalhando as contradições que existiram no fundo dessa cultura onde o negro também estava em contradição. Ou seja, o fato de você ter uma determinada caracterização física não implica. Eu por exemplo, aprendi com Joel Rufino,   um grande amigo meu. Aprendi que a gente se escolhe, muitas vezes. Se você me perguntar:  “ Você sabe se é negro?”. Aí eu digo: Não sei, mas sou. Sou como?
Quando estou na plataforma da igualdade, de todos aqueles que querem uma condição justa, então eu sou negro.  Eu escrevo ‘pra’ caramba sobre negro, mas  nunca escrevi me considerando negro, nem com procuração negra, nem negro nunca me pediu que fizesse. Eu escrevi com a minha mão. Não sei se dá ‘pra’ me entender. [Sim, sim, fala do entrevistador].  Eu escrevi com a minha mão, e ali eu sou negro, ali. Negro, naquele espaço que a gente criou, que é um espaço da igualdade, que é um espaço de somar diferenças. Mas eu não tenho um histórico de vida negra. Eu nunca vivi na periferia, não sei nem que porra é! Apesar de que você vai ter um espanto do caçamba, agora: meu pai pediu esmola. Mas eu nunca vivi a esmola de meu pai. Eu já vivi meu pai funcionário do Banco do Brasil. Era outra coisa. 
Quadro do Zumba

É tudo difícil
Você percebeu o que eu quis dizer, né? [Sim, sim, fala do entrevistador]. Então eu não vivi o momento negro. O momento da exploração não chegou realmente em mim. Eu aprendia isso em casa. Eu não aprendi isso na rua. Eu não aprendi em Universidade. Eu aprendi que sou igual com minha mãe falando, com meu pai falando... Bem por aí... Eu me lembro de uma vez, meu pai era gerente do Banco do Brasil, em Palmares, de Pernambuco. Isso significa que ele estava entre as autoridades, talvez, da cidade. Eu ‘tava’ sentado, procurei por mamãe, não achei.
Aí fui ‘pra’ rua. Quando eu vi,  a mamãe tava com uma senhora magrinha, coitada! Ainda me lembro como hoje. Tão magrinha... E a minha mãe com o feixe de lenha da velinha na cabeça, andando no meio da rua. E meu pai Gerente do Banco do Brasil! Quando ela chegou, eu disse:  “O que a senhora ‘tava’ fazendo?” Ela: “Carregando lenha. Você ‘tá’ com vergonha de mim, é? Você tinha que sentir vergonha de mim se eu não tivesse carregado a lenha, que ela precisava daquilo ‘pra’ viver e não tinha condições de carregar!”. Só faltou remendar como sempre fazia no fim do carão: Seu cabrito! Ms eu não estava com vergonha mas orgulhosamente surpreso.
Voltando ao início e sobre a história da macumba nas Alagoas... Eu sabia naquele tempo que ‘tava’ faltando alguma coisa. Na minha cabeça tudo isso existia, tinha um sentido e era preciso algo que transformasse esse sentido em uma evidência para escrita. Aquela história negra  ‘tava’ muito ‘pra’ dentro, ela não tinha representatividade pública. Agora foi que cheguei onde queria: a publicidade.
Faltava uma representatividade pública, porque a própria pobreza não conseguia; não era o fato de ser a religião em si, mas era aquela própria pobreza que não conseguia se expressar. Existem momentos de expressão magnífica na pobreza, mas naquele momento não se tinha a visão dele. Uma vez pensando em hip-hop, escrevi sobre uma grande libertação urbana em Maceió, da explosão negra em Alagoas quando garotos vão dançar o hip hop na frente do Cine São Luís.
Voltando ao Quebra
 Aí essa coisa ficou na minha cabeça. Estava a ligação pessoal, estava o caminho ‘pra’ trabalhar com o que eu podia, que foi esse da Geografia da fé e de verificar as titulações dos Centros etc. e tal, de me preocupar com essa questão do Traçado, que o Théo levantou e ele tinha razão e com essa falta de representatividade pública da história que eu estava pressentindo. Por isso é quem vem o texto sobre o Luís Marinho publicado no jornal. Ele não deve ser bom. Eu tinha o quê? Vinte e poucos anos de idade, por aí assim. Quando eu leio com a idade que tinha, eu acho um puta e corajoso texto, sabe? [Sei]. Mas quando eu leio com a minha cabeça de hoje:   P. que pariu! [Risos de Jeamerson].
A TIA MARCELINA

A significação política dele independe de prestar ou de não prestar. Um jornal estava dando uma página ou duas páginas inteiras  em cima de algo que era considerado um tabu em Alagoas e o texto era absolutamente simpático a ele. Eu não podia dizer ‘eu sou macumbeiro’, mas ‘tava’ na entrelinha de que, se insistisse eu era [risos de ambos].
Aí eles, os amigos macumbeiros,  me procuram. Quando eles me procuram já havia uma história minha com eles. Não me procuram por acaso. Procuram ‘pra’ conversar sobre a perseguição que a Polícia ‘tava’ fazendo, segundo diziam e era mais do que possível. Especialmente eles diziam que quando era a temporada da Salva de Exu, como eu falei. Não sei se existe hoje ainda esse negócio de Salva de Exu. Existe? [Salva de Exu?][i]. Salva de Exu é um toque onde só baixa Exu. Aí você conhece tudo quanto é Exu. [Risos do Professor Sávio].
Eu tenho umas amizades assim estranhas [Risos do pesquisador], porque eu sei que se existirem eles estão aqui sentados agora. Os Exus! Os Exus ‘tão’ aqui. Eu só ando com quem não presta. Tá tudo aqui. [Risos de Jeamerson]. [Mas Exu presta][ii]. [Risos de ambos]. Eu falo que não presta no sentido da moral tradicional. [Sim, isso][iii]. [Risos de ambos]. Então deve ‘tá’ aqui assim ó! [Gesticula com a mão]. [Então, eles te abrem os caminhos, é?][iv] [Risos de ambos]. Eu tive uma briga com o Tranca Rua. Esse foi um negócio sério na Salva de Exu. O peste queria que eu tomasse uma cachaça. - Eu não tomo essa porra! Foi na Casa do Júlio, no Terreiro do Júlio.
Aí eles vieram conversar sobre a perseguição da Polícia. Aí me perguntam o que é que eu achava. Eu digo: - Nós precisamos buscar um representante. [Professor Sávio imposta a voz]. Eu não iria dizer isso, mas a chave era essa. Aí vão surgindo umas coisas: Tia Marcelina surge daí. Ia surgindo umas coisas.
Era qualquer coisa assim: ou sai da catacumba ou não existe vivo. Eu disse a você que a vida da religião era muito ‘pra’ dentro, porque não tinha meio de dar um passo desse. Isso contraria qualquer princípio de uma cabeça que não seja absolutamente maluca. Porque seria se levantar contra toda a organização de poder da sociedade, pegar isso, lançar-se na busca do público.
- O que é que você acha, professor? Foi a pergunta.
Aí eu disse:  - Tem que ter um troço aí que sacuda.
Queria dizer, que não dava mais tempo ‘pra’ ir lentamente na construção dessa representatividade. Ou papoca ou não papoca. E como é que papoca? Aí deu aquele negócio: se papoca a gente faz.
O sentido é que era esse. [Sim][v]. A gente tem que dar uma tacada que aflore isso daí e que fique a Polícia de mãos atadas, porque agora você não é mais marginal. Você tem que arranjar uma forma de você penetrar de tal modo que a ideia de que você era marginal e vagabundo não possa mais permanecer. E aí não pode ter a violência policial em cima. Eu era doido, eu acho, sabe? [Risos de Jeamerson]. Eu faria a mesma coisa hoje, eu faria. Só que hoje eu não tenho mais a coragem de enfrentar. ‘Tô’ mais cansado... Me chamaram:
 [Jeamersom: Mas sua memória já é uma ação corajosa. [Risos de ambos]
- “E o que é que o senhor quer fazer?”
- “Se vocês toparem, eu queria dar uma porrada do caramba. A  coisa que tem mais importante aqui em Maceió ‘pra’ gente atacar é o Teatro Deodoro.”
Por que o Teatro Deodoro? Porque o Teatro Deodoro era símbolo e representativo da cabeça da burguesia de Alagoas, embora ele fosse muito mais do que isso.
- “Vamos fazer o seguinte, se vocês toparem. Vamos fazer uns toques...’
Repare a proposta. Pense onde pesa a proposta. Mas eu não falei isso como de fora não. Falei de dentro, porque eu era de dentro. [Sim.][vi]. Aí o cara diz:  você era um intelectual! Não é não. Eu era de dentro. Eu não falei de fora. Eu falei de dentro. E eles vieram conversar comigo porque eu era de dentro.
Catedral você não ia entrar. Eu não ia fazer um negócio desse na Catedral. [Risos de ambos]. Assassinavam a gente. Era maluquice. Então eu tenho que ter um troço do estado, que pertence a todos.
- O que é que a gente vai fazer?
- Vamos...


[i] Fala de Jeamersom.
[ii] Fala de Jeamersom.
[iii] Fala de Jeamersom.
[iv] Fala de Jeamersom.
[v] Fala de Jeamersom.
[vi] Fala de Jeamersom.