Translation

domingo, 3 de março de 2019

Vila de Pescadores de Jaraguá: tradicionalidade e resistência urbana (I)







Parmênides Justino Pereira. Natural de Recife-PE, vivente das Alagoas dedes 1978.  Graduado em Psicologia e Mestre em Sociologia pela UFAL. Doutor em Educação pela UNICAMP. Professor da UFAL/Palmeira dos Índios, leciona as cadeiras de Introdução à Sociologia, Pesquisa em Ciências Sociais, e Psicologia Política. Coordenador do Grupo de Pesquisa (CNPq) Psicologia Política, Movimentos Sociais e Políticas Públicas. Defendeu pesquisa sobre remoção forçada de populações vulneráveis, onde acompanhou o caso da Vila de Jaraguá desde 2005, e atualmente estuda diversas comunidades em Arapiraca, como os pescadores do Lago da Perucaba, os removidos da comunidade Caboge (atual Bosque), e conjunto Frei Damião (ameaçado de remoção). Também desenvolve pesquisa sobre a visibilidade da Jurema Sagrada em Alagoas, com ênfase na autoafirmação indenitária da religiosidade afroindígena, momentaneamente concentrada nos desdobramentos da Jurema no agreste alagoano. 





Vila de Pescadores de   Jaraguá: tradicionalidade e resistência urbana (I)

Parmênides Justino Pereira


Quando, em meados de 2015, a sociedade alagoana se deparou com os desdobramentos finais relativos à expulsão dos moradores da Vila de Pescadores do Jaraguá pela Prefeitura de Maceió, a partir da prolatação da sentença de despejo, a maioria dos seus habitantes não entendia o que levava moradores de uma favela suja e degradada a recusar a benevolência da gestão municipal, que oferecia apartamentos na praia do Sobral e um parque público, chamado centro pesqueiro. Outros maceioenses, que conheciam superficialmente a história, estranhavam a reação da sociedade civil organizada (Movimento Abrace a Vila), e criticavam profissionais e estudantes que perdiam seu tempo defendendo uma favela. O que as pessoas - mal informadas pela imprensa local[1] - não sabiam, era que se tratava de um fenômeno que Paulo Freire conceituou como “falsa generosidade”, mediante um processo de expropriação urbana que vinha se desenrolando muito antes da proposta de substituir a Vila por um centro pesqueiro. Vinha, na verdade, desde meados dos anos 90, através de atos administrativos questionáveis, contraditórios e omissos em relação à melhoria da qualidade de vida da população, além de um conjunto de agressões e violência simbólica pautada pela desqualificação social da comunidade e o desejo quase compulsivo de expulsar os pescadores e marisqueiras de seu território tradicional.
Durante o processo de remoção, houve uma polêmica, desnecessária, sobre a real historicidade da vila. A Prefeitura de Maceió não concordava com a tese de que a história da cidade teria surgido de uma vila de pescadores, sustentando sua tese em um mapa de 1973, em que esta não aparecia. Achar que um mapa seria capaz de dar conta dos aspectos  dinâmicos da geografia foi mais uma estratégia política de desqualificação da comunidade do que propriamente um interesse lógico pelo conhecimento real da história da cidade. A importância de Maceió no cenário regional decorre bastante do ancoradouro, e todo o litoral era cheio de pescadores, desde a época colonial. As evidências culturais da importância dos pescadores na formação social de Maceió são antigas. [...] Todavia, é em Craveiro Costa (1981) que se encontra uma referência mais próxima, fazendo alusão ao povoamento a partir do riacho Salgadinho e estabelecendo relações com o início do bairro.
   
  Assim, considera-se que a importância social dos pescadores na formação da cidade é um fato inconteste, baseado em referências historicamente consistentes, embora o mapa de 1957, apresentado pela Prefeitura como argumento para afirmar a não importância da Vila para a história da cidade de Maceió, não dê conta dessa realidade, possivelmente devido a limitações cartográficas. Para compreender a importância da Vila é preciso, antes, entender como sua trajetória se funde à do próprio bairro. No início do século XIX, o bairro de Jaraguá começa a se destacar como zona portuária que movimentava o comércio, a cultura e a vida de Maceió, que chamava a atenção por ser uma aldeia de pescadores. Em 1818, com a chegada do primeiro governador de Alagoas, Sebastião Francisco de Melo e Póvoas, o lugar passou a viver um crescimento vertiginoso, com a instalação de pontos comerciais, belos sobrados, ponto de encontro de empresários, intelectuais e políticos. Tudo isso levou o governador a trocar a capital de Alagoas do Sul (povoado do Francês) por Maceió, devido, sobretudo, ao movimento do porto de Jaraguá.
[...] A geografia presenteara o local com a capacidade de servir como barreira de proteção das embarcações contra as correntes marinhas. É esta característica que faz do lugar a passagem e estada de variados visitantes. E é quando o Porto de Jaraguá supera o Porto do Francês, que se desenvolve o comércio no povoado, atraindo cada vez mais pessoas.
Outra questão que alimentou os debates entre comunidade e Prefeitura foi a tese de que pescador não precisa viver em frente ao mar, porque em outros pontos da cidade existem
pescadores que não moram na praia, a exemplo dos bairros de Pajuçara, Jatiúca e Ponta Verde. Esse argumento esbarra não apenas na impossibilidade de compreender uma comunidade tradicional importando o contexto de outras realidades históricas, como também na omissão de fatos históricos que explicam como tais pescadores foram afastados da praia, por meio de reestruturações urbanas higienistas e avanços do mercado imobiliário voltado para o consumo da elite. É neste sentido que se explica, por exemplo, o surgimento dos bairros de Pajuçara e Ponta Verde, atual área nobre da cidade, mas que já foi reduto de muitos dos pescadores, e que, como relata Sarmento (2002), recebeu grande parte de seu povoamento de pescadores que foram expulsos de seu lugar de origem para dar lugar às moradias das classes privilegiadas.
A Vila de Jaraguá, neste sentido, é apenas mais um exemplo de continuidade dessa higienização da orla maceioense. Desde a sua localização até sua expulsão, tudo é um reflexo deste movimento geopolítico de empurra daqui, tira dali, de submissão das populações pobres aos ditames do poder público e sua política de remoção, e inclusive de certos processos de grilagem  relatados pelos moradores antigos, quando a área era abandonada e utilizada por criadores de gado [...] Eles descrevem como as cercas foram se fincando e redefinindo o esquema de propriedade do local. [...] A despeito de ter aglomerado no seu interior pescadores oriundos de diversos estados, como Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, e de toda a costa do Estado de Alagoas, de Maragogi a Piaçabuçu, muitas famílias pesqueiras eram oriundas das ondas migratórias dentro da própria cidade ao longo de anos. Assim, vinham de bairros como Ponta da Terra, Levada, Trapiche, dentre outros. Há relatos de que a antiga balança teria sido onde hoje se encontra as Lojas Americanas, embora se observe que a aglomeração mais recente - remontando aos anos oitenta - inicia-se onde hoje se encontra o Memorial da República, em frente ao coreto, de onde se podia atravessar, no tempo dos banhos dominicais na praia da Avenida em direção à Pajuçara.
Essa configuração da comunidade de pescadores começa a sofrer investidas da Prefeitura, por meio de várias remoções, na gestão do então prefeito Fernando Collor (1979–1982), que retira grande quantidade de moradores e os realoca na zona de expansão da cidade, próximo ao posto da  Polícia Federal, cruzamento da BR 104 com 316, aglomeração que ficou conhecida como favela do DER. Outra grande remoção é feita pelo prefeito Ronaldo Lessa, para a construção do memorial acima citado e do estacionamento de Jaraguá, espaço urbano só utilizado em períodos de festas.
           Após estas remoções forçadas, a comunidade do Jaraguá se caracterizava como assentamento urbano subnormal, onde se acomodavam, em condições subumanas, cerca de 700 famílias, das quais de trezentas a quatrocentas eram de pescadores. A pesca era atividade mais antiga do bairro. A vila proliferou na medida em que as pessoas foram tendo filhos, os filhos foram crescendo, casando, tendo filhos, os filhos cresceram, casaram, os netos foram aparecendo,  a família crescendo, e os pais tiveram que construir novos barcos e novas casas para alojar os filhos crescidos e casados que se multiplicavam.
             Em 2001, época da remoção das 350 famílias para o Conjunto Carminha pela então prefeita Kátia Born, a  comunidade de Jaraguá era uma comunidade heterogênea. Lá  habitavam diferentes grupos populacionais, que ao longo do tempo foram ali se fixando, através dos processos de migração natural da atividade pesqueira e do processo social que impulsiona o  crescimento urbano. A favelização começara a partir dos anos oitenta, quando além dos atrativos  naturais do lugar e sua localização privilegiada no tecido urbano, alguns eventos de natureza política contribuíram para o crescimento desordenado e densidade populacional. O mais crítico deles foi a remoção de famílias sem-teto que viviam dispersas pela cidade, associado a famílias de desabrigados das chuvas torrenciais. Todos eles foram colocados na comunidade do Jaraguá pela  então secretária Lucíola Toledo, amontoados no armazém da antiga Cibrazen. Essas famílias  viviam de outros empregos e subempregos na região, como catadores de lixo, empregadas domésticas, guardadores de carro, ambulantes, atividades portuárias, atividades auxiliares da pesca, dentre outras.
No entanto, o armazém estourou, pois os barracos foram aparecendo em seu entorno, crescendo exponencialmente e adentrando a Vila de Pescadores. A comunidade passa então a
conviver com uma heterogeneidade cultural oriunda dessa migração forçada. Após a fixação dessas famílias, outros barracos com famílias estranhas à cultura da pesca foram se aglomerando próximo ao galpão da antiga fábrica.
A comunidade possuía arquitetura marcada por espaços de múltiplas funções, que ao mesmo  tempo serviam de oficina de trabalho (tratamento do peixe), lazer, varal para estender roupas, e ponto de encontro (bate-papo com as amigas e presença das crianças). O terraço poderia ser a  própria rua, e a frente da casa geralmente tinha várias utilidades e muitos jovens reunidos. Ali trabalhavam, se divertiam, conversavam, perambulavam, havia toda uma sociabilidade que  engendrava diversas atividades, muito embora a principal delas fosse a pesca.
               Essa, no entanto, era uma realidade desconhecida da maioria dos maceioenses, pois o bairro estava quase abandonado, e só voltou a ser o foco das atenções quando a prefeitura o incluiu no projeto de revitalização de centros históricos. Tal iniciativa começou a surgir nas principais capitais brasileiras, no sentido de resgate das atividades locais, mas também atividades artísticas, como foram os casos de empreendimentos na mesma ordem em centros históricos como  Recife, João Pessoa, Salvador, Porto Seguro, e São Luiz.
Então, nos arredores do cais do porto de Maceió, a cidade efervesceu como espaço de construção de bens materiais e vida comunitária. Mas até meados dos anos 1990, o que restava do bairro era velhos armazéns de exportação abandonados, ferrovias desativadas, praças depredadas e descaracterizadas, a vila dos pescadores favelizada, e apenas lembranças de um lugar que deu vida à cidade.
Como alternativa ao turismo de sol e mar, que cai na baixa temporada, a Prefeitura Municipal se empenhou no planejamento e execução do projeto de revitalização, como tentativa de diversificação da oferta turística, através do turismo cultural centrado no lazer, entretenimento e conservação do patrimônio histórico. Este projeto é lançado em 11/08/1995, no coreto da Avenida da Paz, pelo então prefeito Ronaldo Lessa, que será sucedido pela prefeita Kátia Born, esta última dando total impulso à continuidade do projeto no percurso de dois mandatos.
Antes disso, o jornal Gazeta de Alagoas de 08/06/1997 lançara um caderno especial em conjunto com a Prefeitura, no qual se anunciava o empreendimento como o mais importante  investimento público da época, que transformaria o bairro em um belo atrativo para a cultura, o lazer, o turismo, o comércio de serviços. Nessa publicação, a prefeitura destaca que o projeto acarretará uma grande demanda turística, atraindo o visitante de “renda mais elevada” e promovendo o aumento de sua permanência na cidade. Coincidentemente, trata-se de uma época de grande crise econômica no Estado e no setor sucroalcooleiro, e os usineiros são proprietários de grande parte dos armazéns e casarões de Jaraguá, além de investidores locais no setor turístico.
Consequentemente, são os principais beneficiados com a revitalização. Um dos primeiros passos do projeto foi a elaboração de leis que dividiram a cidade em Zonas Especiais de Preservação (ZEP), mais especificamente a Lei Municipal 4.545 de 22/11/1996. Com ela, Jaraguá ficou definida como ZEP-1. O Decreto Municipal 5.569, por sua vez, estabeleceu normas que garantiram a caracterização do bairro dentro dos padrões esperados, como a manutenção da tipologia construtiva e a volta do alinhamento das fachadas. Esse mesmo Decreto estabelece a Vila de Pescadores como Zona Especial de Preservação [...]
A linguagem do decreto não deixa dúvidas quanto à importância da Vila tanto do ponto vista  turístico, quanto do ponto de vista ambiental. Para gerenciar o projeto, é criada a Unidade  Executora Municipal/PRODETUR (UEM), através da Lei Municipal 4.487 de 27/03/1996. No relatório de atividades de março a dezembro/96, a UEM destaca o que chamou de “problema ambiental”, na antiga Vila dos Pescadores, localizada às margens do Jaraguá e caracterizada como favela.
Os objetivos básicos do PRODETUR/NE[10] eram: a criação de áreas turísticas, promovendo o incremento desta atividade no município; resgatar o patrimônio histórico/arquitetônico local, através de sua correta recuperação e revitalização; melhorar as condições de vida da população, através da provisão de serviços de saneamento; preservar os ecossistemas terrestres e marinhos do bairro; e melhorar as condições de acessibilidade à área de intervenção. Para tanto, a Prefeitura promoveu um amplo investimento de infraestrutura básica e serviços públicos (abastecimento d’água, esgoto sanitário, tratamento e controle de resíduos sólidos, vias de acesso) que potencializaram as atividades turísticas, com recursos da ordem de US$ 80 milhões, sendo metade financiada pelo BID, por meio do BNB. A outra metade seria a contrapartida dos poderes público federal, estadual ou municipal. Com novos investimentos e aumento da permanência dos turistas, a consequência esperada seria o aumento na geração de emprego e renda. Com isso, os poderes locais integravam a cidade na reprodução do capital através da atividade turística, como afirmou Vasconcelos [...]
O projeto de revitalização foi fragmentado em subprojetos, quais sejam: a revitalização de obras  físico-arquitetônicas, que incluíam a restauração do prédio da Associação Comercial de Maceió e  o Museu da Imagem e do Som; a despoluição do tradicionalmente poluído Riacho Salgadinho.  Acrescenta-se também a reestruturação do sistema viário da área interna do bairro, como o alargamento de pontes na Avenida da Paz, drenagem e pavimentação para evitar as tradicionais inundações na Avenida Cícero Toledo, parte da Rua Comendador Leão, Avenida Maceió, e as ruas Graciliano Ramos e Mato Grosso, além das margens do riacho Salgadinho. A Rua Sá e Albuquerque, via arterial do bairro, teve o asfalto negro quebrado até aparecerem as antigas pedras (os trilhos do antigo bonde que circulava não estavam no local). Postes de cimento foram retirados e substituídos; as fiações da luz elétrica e da telefonia ficaram subterrâneas. Houve a construção de um grande estacionamento na Avenida Cícero Toledo e a construção do Centro de Convenções, além da promessa da construção de uma marina e incentivo ao esporte e comércio náutico. O nono subprojeto desta mega intervenção seria a urbanização da Vila de Pescadores, conhecida como favela de Jaraguá.
O direcionamento do programa de desenvolvimento do turismo acabaria por não atingir as metas a que se propôs, mas não sem deixar as sequelas tradicionais do caráter excludente deste  tipo de intervenção gentrificadora, que, onde ocorre, ocasiona conflitos e exclusão das comunidades locais. [...] A revitalização do bairro de Jaraguá se deu no contexto da globalização do turismo, caracterizado por capitais transnacionais, projetos de grande porte e exclusão social da comunidade local. Assim, um dos principais problemas da revitalização do bairro de Jaraguá como potencialidade turística pode estar associado a um dado importante citado por Vasconcelos (2004) que é a capacidade de reordenamento do território para sua realização. Este autor explica que este reordenamento apresentou uma falha crucial, qual seja o esquecimento da potencialização de uma melhoria de vida para a comunidade local, fato observado não apenas pela remoção de 350 famílias da comunidade de Jaraguá em 2002, mas também no descaso frente às condições suburbanas da Vila dos Pescadores, até sua total remoção.
A condição de pobreza conviveu simultaneamente com a área revitalizada, em um flagrante contraste social, apesar de a Vila dos Pescadores ter sido considerada como Setor de Preservação  Ambiental (SPA) pelo Decreto Municipal no 5.569, de 22 de novembro de 1996. Com que ética se pode falar em leis, no âmbito do posterior processo jurídico da remoção, se o próprio abandono da  Vila, em condições degradantes, foi uma clara violação da própria lei municipal criada para fins da referida revitalização?

Na verdade, o próprio projeto de revitalização já focalizava em seu conteúdo as ações que deveriam ser executadas como parte do processo de turistificação do lugar. No projeto apresentado para aquisição das verbas do PRODETUR, estava incluída a urbanização da vila (no mesmo espaço onde as famílias viviam), que era o nono subprojeto, através da implantação do sistema de saneamento básico, coleta seletiva do lixo, energia elétrica, abastecimento d’água, pavimentação, drenagem, construção de residências térreas de sobrados, orçadas em R$ 7.919.000,00.  O projeto arquitetônico elaborado para isso em 1996/1997 incluía também a construção de um mercado modelo, estacionamentos, centro de convivência, cais, seca de pescado, escola de pesca, estaleiro, cooperativa de pesca, correios/telefone, praça, primeiros socorros, pontos comerciais, área de lazer e esporte, casa cercada por área verde, como coqueiros e árvores frutíferas, afirmando o princípio de autossustentação da comunidade.

Nenhum comentário:

Postar um comentário