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sábado, 30 de janeiro de 2016

Karina Cavalcante Dâmaso. O engenho da vovó. Memória e cotidiano. Viventes de Alagoas. Engenho Gurganema





O ENGENHO DA VOVÓ

Karina Cavalcante Dâmaso  


            Embora tenha passado a maior parte da minha infância na Fazenda Cariri, do meu avô paterno, no município de Boca da Mata, o Engenho Gurganema – em Marechal Deodoro, de propriedade da minha avó materna era um sonho, como raramente aparecia por lá, tudo era novo e cheio de mistérios. A fazenda era enorme, com mais de 3000 hectares de terra, dividida em canaviais, matas, coqueirais, pastos e a encantadora casa grande e seus extensos pomares.


            Lugar lindo e bucólico, tranquilo, perfeito para o descanso; extenso, bom para exploração e trilhas, lembro que para chegar à sede da fazenda passava por um longo caminho de jaqueiras, era jaqueira para todos os lados, de todos os tipos, um oásis aos apreciadores da fruta. Após esse caminho avistava as casas dos moradores, a igrejinha, em frente à casa grande – o curral, as ruinas do engenho, a ponte do riacho e os pastos. Havia um pomar com muitas mangueiras variadas, uma delas a preferida da mainha, a manga jasmim, pouco comum, amarela, redondinha, cabeluda, doce e de sabor inigualável, além de cajueiros, sapotizeiros, pitangueiras, pitombeiras, bananeiras, limoeiros, laranjeiras, abacateiros, coqueiros, goiabeiras, jenipapeiros, pés de fruta-pão e os mais variados tipos regionais de fruteiras. Porém, as jaqueiras e mangueiras predominavam e faziam fama na região por seu sabor, aquela terra abençoada dava frutos sem igual. Painho até plantou em nossa propriedade as raridades da fazenda, o pé de jaca mateu e manga jasmim e rosa, porém o sabor diferiu um pouco devido ao solo, mas independente do sabor ainda faz mainha se lambuzar de prazer como na época do engenho.


           
A casa era linda, alta, com uma comprida escadaria arredondada, grandes janelas azuis, o alpendre era estreito, com bancos de madeira e cadeiras de balanço, que cercava a casa; ao entrar tinha uma saleta e uma biblioteca, seguindo o corredor, quartos dos dois lados até chegar numa grande sala de canto a canto, subdividida em sala de jantar e estar; tinha um banheiro e uma extensão onde continha à cozinha com dispensa, também tinha um banheiro do lado de fora, no jardim. Saindo pela cozinha, caminhando escadaria a baixo descobria numa casinha, nela um delicioso banho com bica, na verdade um grande tanque coberto com um telhado contendo uma bica de água corrente, que banho bom, a meninada se acabava de brincar, uma diversão inesquecível. 


            Lá era muito rústico, o chão da casa era de tijolos feitos na própria fazenda, uma típica casa de engenho. Não lembro nem se tinha televisão, só recordo das brincadeiras, passeios, almoços, conversas, paz e tranquilidade; por ser isolada, não se ouvia barulho na rodagem ou carro de som alto, barulho só das conversas e gargalhadas dos membros da família Pimentel Cavalcante, muito eloquentes, ou quando não estavam reunidos, apenas os ruídos dos pássaros, vento nas árvores, gado no curral. 



            Esse local maravilhoso e inesquecível que inspirou muitas vezes, meus quadros, escritos, sonhos..., infelizmente só existe agora na lembrança, pois o atual proprietário, uma usina local, que ficou de conservar pelo menos a igreja – onde meus antepassados foram enterrados, destruiu quase tudo, pomares, a bica e as edificações. Triste fim de uma majestosa fazenda de engenho que findava na lagoa Manguaba, e que tantas alegrias me deu, deixa imensa saudade e doces recordações da minha época de criança.


História, memória e cotidiano.Índios Kariri Xocó. Viventes das Alagoas







Atualmente esta cursando história pela Universidade Estadual de Alagoas – UNEAL campus III Palmeira dos índios – AL, é membro do Grupo de Pesquisas em História Indígena de Alagoas GPHI-AL, onde desenvolve pesquisas com o grupo étnico a que pertence os Xucurus-Kariri da aldeia Fazenda Canto. 





OS RICARDO: relatos de dona Maria do Amparo sobre os primeiros anos na Aldeia Indígena Fazenda Canto


Cássio Ferreira da Silva



O texto  diz respeito à família Ricardo, uma das primeiras a se estabelecerem no que hoje é conhecido por Aldeia Indígena Fazenda Canto, demarcada no município de Palmeira dos Índios em 1952.  Como membro de tal grupo familiar buscarei, em um primeiro momento, compreender em que circunstâncias se encontravam os primeiros habitantes da aldeia nos anos iniciais de sua povoação.


A cidade de Belém

Expulso de suas terras meu povo se dispersou e as famílias buscaram abrigo nas regiões circunvizinhas de Palmeira dos Índios; a família Ricardo passou a viver em Canudos, região que hoje é ocupada pelo município de Belém, mais especificamente em área localizada às margens do rio Lunga, denominada Passagem do Vigário. Segundo as recordações de moradores mais velhos do atual município de Belém, os índios da família Ricardo tinham apenas suas ‘casinhas’ e como não tinham terra para plantar, trabalhavam nas fazendas das famílias mais ricas da região.  


Esse contexto só começou a mudar em 1952, quando foi comprada a Fazenda Canto, com dinheiro arrecadado por índios do Paraná com a venda de madeira. Entendendo essa conjuntura, resolvi pedir para minha avó – Maria do Amparo da Conceição – contar suas lembranças sobre o cotidiano nos anos inicias na aldeia Fazenda Canto, e ela disse o seguinte:


Naquela época não tinha energia, a gente usava querosene na lamparina, e quando faltava o gás – querosene – a gente pisava a mamona com o algodão e fazia aqueles pavio e arrodeiava num prato e tocava fogo e queimava a noite toda[...]

 A energia posso dizer que é coisa recente; foi um padre chamado padre Ludugero que convivia aqui com os índio e eu não sei como ele conseguiu a energia, mas primeiro era quatro poste lá naquela igreja lá em cima; ai começou lá. Aqui não tinha água encanada, a gente usava água do poço, barreiro e água do riacho; era a água que a gente utilizava. 


Perguntei ainda sobre como era à subsistência, como trabalhavam e conseguiam dinheiro:


Na época era muito difícil, porque não existia trabalho; muitos viviam da agricultura, plantava mandioca, plantava a lavoura e quando dava pra vender vendia uma alguma parte; outros trabalhava nos vizinho,  no alugado,  nos branco lá fora  e era assim pra sobreviver, em sítios e cercados arrancando toco e limpando bananeira.

As casa era tudo de taipa, não era de alvenaria né, eram casas feitas de barro e pau né, pau-a-pique, fazia aquelas casas cavava barreiro e tapava com barro, muitas coberta de palha e outras tinha gente que fazia telha aqui na beira do riacho e cobria, mas muitas era coberta de palha.


Ao ouvir os relatos de minha avó sou tomado por dois sentimentos;  o primeiro de felicidade por saber que mesmo existindo um longo caminho a ser trilhado, as condições de moradia e subsistência de meu povo melhoraram muito em relação aos primeiros anos na aldeia, atualmente com exceção das moradias na área de retomada, todas as casas são de alvenaria e contam com energia elétrica e água encanada; quanto à subsistência houve uma diminuição drástica na necessidade de busca-la fora da aldeia – trabalhando para fazendeiros, na monocultura da cana ou viajando para São Paulo em busca de trabalho como era comum até pouco tempo atrás – isso porque algumas políticas públicas estão sendo desenvolvidas na aldeia como, por exemplo, o programa de aquisição de alimentos (PAA), que permite as famílias produzirem e venderem produtos agrícolas a um preço justo.



Por outro lado fico triste por saber que perdemos um patrimônio cultural enorme; sei que não vou ver mais os pavios de mamona e algodão feitos para clarear a noite, também não poderá ser visto um grupo familiar às margens do riacho cavando barro e modelando telhas de forma artesanal para cobrir sua moradia. Ficamos apenas com a dúvida: será que a perda cultural paga pela melhora na qualidade de vida vale a pena?  


Igreja da Fazenda Canto
         
Como podemos observar uma única entrevista nos mostrou uma imensa e rica carga de memória, que nos permite pensar como era o cotidiano de uma etnia que passou 80 anos dispersa e que a partir de 1952 pode voltar a se agrupar e se unificar como um povo e permite ainda fazer comparações entre os anos inicias e o cotidiano hoje. Para finalizar quero dizer que a coleta de memória é fundamental para não deixar se perder a história de meu povo, para tanto será realizada entrevistas com outros membros da família Ricardo e de outras famílias formadoras do povo Xukuru-Kariri. 
 



Hístórias da vovó. Memória e cotidiano. Viventes das Alagoas




 Histórias da Vovó: a mulher mais gorda do mundo

Luan Moraes dos Santos

Discorde quem quiser, mas a mulher mais gorda do mundo, assim contam os mais velhos, esteve em Palmeira dos Índios, cidadezinha pacata do interior de Alagoas que, diferente do litoral, não tem os ares exalando maresia e muito menos a beleza das praias. Embora lindo, o mar não faz falta a um lugar tão bem situado como a terra de Tilixí e Txiliá e de mestre Graça.
Imagine, caro leitor, um grande vale encravado no meio das serras e gentilmente gotejado por açudes, nascentes e riachos. Mentalize ainda, nesse ambiente interiorano, uma cidade com ruas irregulares, um modesto comércio, aldeias indígenas, fazendas grandes e pequenas e a boa e velha política dos currais. É nesse ambiente que encontramos diversos personagens, que se possível fosse gastarias linhas e mais linhas até esgotar o assunto.
Pois bem! Vamos à nossa história.
Particularmente, me sinto curioso com as conversas de porta que as senhorinhas travam no fim das tardes. Isso mesmo, falo daquele costume de contar mexericos, fofocas, causos e, por que não falar, das histórias reais que se tornam causos a cada ponto acrescentado. Necessário dizer, que mais curiosa ainda é a forma que essas histórias são contadas.
Dessas histórias de porta e calçada, destacarei uma em especial. Como mencionei antes, a mulher mais gorda do mundo viveu em Palmeira dos índios e discorde quem quiser, eu acredito. Seu nome era Inocência Colatino e tive a oportunidade de ver uma fotografia sua durante uma visita no Museu Xucurus, que reúne diversas peças e entre elas objetos de personagens curiosos que já passaram por aqui.
Certo dia, ao voltar do museu, passei na casa da minha avó e decidi lhe perguntar sobre a existência de Dona Inocência Colatino e também saber mais sobre a interessante figura que, de acordo com os jornais, comia nada mais, nada menos, que seis quilos de carne de uma única vez!
Como esperado, as informações não bateram e minha avó me falou o seguinte:
Um quilo de charque! Eu quem ia comprar mais uma moça véia que trabaiava na casa dela. Ela passava lá em casa:
— Ou dona Emília! – que era o nome da minha mãe
— A   senhora deixa Terezinha ir mais eu?
Pra Rainha, que era distante de Rainha Isabel.
Aí eu ia pra Rainha, de pé, mas não é longe não donde a gente morava, no sítio pilãozinho pra Rainha. Aí todo dia era um quilo de charque, ela se sentava era em três cadera, era três! Aquela, um corpão assim... bem assim! Aí ela se sentava ali, e um dia eu cheguei lá – Beta era deste tamanhinho – Aí eu fui, da igreja eu passei por lá: E aí dona Inocência ?  Inocência o nome dela.  Como é que a sinhora tá?
— Tô aqui, Terezinha, vou levando devagarinho.
Ainda tá nessa vida?
— Tô, minha fia, comendo muito e me acabando! E tem que comer, porque a fome me chama.
A necessidade lá por dentro, ela dizia assim, me chama! Ela sentava, botava o fio dela, que já morreu também, botava um panelão, assim, de leite num banco, uma concha e uma xícra deste tamanho! Ela tomava a base de umas três xícra de leite, que dava uns três litro.
Aí ficou, aí eles ficaram acabado. Acabou-se tudo... tudo, tudo, tudo! Aí acabou-se tudo que eles tinha, aí o governo comprou uma casa aqui, passou pra eles e botou ela aqui. Eu ia visitar ela, fazia dó!  A cama, de solteiro, era assim que chamava, era dessa largura aqui, daqui praqui! Pra poder dá espaço pro povo virar ela, entendeu?
Mas tinha um pratinho lá. Eles botava um pratinho alí, pra todo mundo que chegasse ajudar. Quando era dia de domingo, todo mundo que ia visitar ela deixava dinheiro.

Como você pode perceber, a história, colhida durante entrevista e aqui transcrita é um resultado da combinação de história, realidade e toda a imaginação que foi possível aos 68 anos de minha avó, dona Terezinha.  Vale lembrar que durante sua adolescência, nos anos 60 e 70 era comum andar a pés para outras vilas e povoados próximos à Palmeira dos Índios.
Dona Inocência, existiu de fato, mas as histórias que permeiam essa existência fazem parte do imaginário local e mostram que as memórias dos mais velhos são, para os jovens que mostram interesse e respeito, como baús que guardam preciosos tesouros, a saber, moedas de sabedoria.
Para finalizar, é importante dizer que as histórias e os personagens não terminam por aqui. “A mulher mais gorda do mundo” é apenas uma de muitas histórias interessantes e que não podem ser esquecidas, pois o que seria da nossa infância sem as visitas na casa da vó e sem os fins de tardes largados nas varandas e alpendres exercitando a imaginação enquanto de sua cadeira de balaço ouvíamos, em tom simples e sincero as mais curiosas histórias. Até a próxima.