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sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

História do Teatro em Alagoas - Homenagem a Bráulio Leite Júnior II



Esta é a segunda parte da homenagem prestada ao Bráulio, com a ajuda de sua filha Duce,





Uma nota de Duce Leite

Já era para ter feito isso mas, a emoção não nos permitiu... mas agora vamos lá... 



A vida foi muito boa comigo. Boníssima. Sempre.




Hoje acordei com um lindo sol na cara, e tinha certeza que uma coisa muito especial havia acontecido. Ele veio até mim, meu pai, através das palavras do professor Savio Almeida. Aplausos. Bravos é o que nós da família damos, pois conseguiu de uma forma natural colocar no papel o que foi o nosso Braulio Leite amigo, marido, pai, avô, sogro e todas as outras linhagens. Poucos conseguiram mostrar realmente o que foi esse homem grande e de um coração maior do que todo seu peso.




Foram dias de conversas, trocas de informações, cobranças disso e daquilo mas, que ao final deu-se essa matéria rica, simples e de um sabor inesperado...Única e exclusivamente uma homenagem ao amigo.


.

Nós agradecemos pela sua amizade e carinho por nós todos dedicados, e saiba que a recíproca é verdadeira.


 Beijo Grande.


Foi exatamente nesta época que nossa amizade começou. Andamos muito nesta Rural ; está estacionada ao lado do oitão da Igreja de Santa Luzia.

Se podermos perfilar, numa linha de frente, os homens que fazem a grandeza de nosso Estado, pelo trabalho honesto, criterioso e até desprendido no campo de suas atividades, naturalmente que Bráulio Leite Júnior formaria nos primeiros lugares, tal a operosidade de seus misteres, muitas vezes mais criativos do que técnicos, mas inteligentes do que esquematizadores. Homem de agilidade mental surpreendente, não dispensa o calor humano aos seus empreendimentos, empolgando, contagiando e cativando a todos nós pelo poder de convencimento, pela mobilização que faz em favor de suas iniciativas, pela persistência com que sabe lutar pelos seus ideais. 
Coluna Opinião. Jornal de Hoje.

Edna: a esposa

Dois dedos de prosa

Sem dúvida, Bráulio Leite Júnior foi um dos mais importantes alagoanos durante o correr de todo o século XX. Homem simples, honesto, inteligente teve uma vida digna ao lado de sua família.  Fomos íntimos amigos. Certo ou errado (também, como qualquer um, ele  errava) jamais deixou de ter coragem para defender suas posições e sempre na vida jogou limpo, jogou de frente.
Ele não precisa de homenagem, mas o reconhecimento permanente, sem dúvida, nós devemos dar.
Este suplemento foi realizado pela diligência de sua filha Duce Pontes e através dela quero abraçar a Edna.
As crônicas reproduzidas foram retiradas do seu livro Algumas crônicas escolhidas, publicado em Maceió no ano de 2005.
Vamos ler.
Sávio
Gustavo: filho


Bráulio, uma grande figura e um grande amigo
Luiz Sávio de Almeida

         Bráulio Leite Júnior foi um dos meus grandes amigos; não éramos de viver encangados, mas era daquela amizade em  que o espaço e o tempo não incomodavam e quando nos víamos, tudo fluía como se nada tivesse mudado. Sabíamos do outro o que bem desejássemos e nos abríamos sem qualquer escondido, quando desejávamos desabafar a vida. Não foram poucas as vezes em que ficamos os dois, três, quatro horas falando.
         Tivemos algumas aventuras juntos e lembraria de muitas, mas no momento, bateu uma na cabeça.  O Teatro Deodoro tinha uma divisão diferente: o gabinete dele, ficava do lado esquerdo, onde hoje fica a bilheteria, Ele mandou me chamar e pediu para não sair do lado dele no gabinete.  Iria passar no palco, a famosa Liberdade, Liberdade dirigida pelo Flávio Rangel. O presidente do DCE da UFAL era Radjalma Cavalcante e o DCE havia intermediado a vinda do espetáculo.  E eles tiveram papel essencial; eu somente estou falando da parte do Bráulio, com a qual convivi dentro daquele gabinete simples mas limpo e preservado..
         Pauta reservada, anunciado e de repente chega a ordem: o espetáculo não poderia ser apresentado.  É quando Bráulio manda me chamar e nos trancamos e vi a firmeza como, depois de telefonemas sucessivos, aquela figura humana imensa, dizia que jamais faria isto, que a pauta havia sido dada e era sagrada. Foram cinco a dez telefonemas e a expectativa era grande. No silêncio que ficamos depois de um período mais conturbado, talvez pelo nervoso do quadro, começamos a rir e a hora do espetáculo chegando. O que poderia acontecer? Jamais a ordem para cancelar o espetáculo partiria do Teatro Deodoro.
         A quebra de braço continuava; em nenhum momento Bráulio abriu  mão. E foi e foi e o Deodoro ficou aberto. Tudo resolvido. Ele me pergunta para onde eu iria. Disse que ver o espetáculo. E  ele me pediu: quando terminar passe aqui. Pois bem, vi o espetáculo e passei no Gabinete. Saímos para jantar: o Flávio, o Bráulio e eu. Acho que ainda era o tempo da Churrascaria Galo de Campina. O papo não parava e lá pelas três da manhã o garçom dormiu. Flávio Rangel foi lá e deixou um bilhete: “Jacaré que dorme no ponto, quando acorda é carteirinha!”.
O do Bráulio dizia para não se preocupar: iríamos pagar no outro dia e de safadeza deixou meu telefone. Fomos pagar e com isto, demos por fim o dossiê Liberdade, Liberdade no Teatro Deodoro.  Um homem profundamente emocional teve uma paciência imensa e não arredou o pé do lugar.
Esta é uma das que vivi com Bráulio Leite Júnior, vi e partilhei inúmeros sonhos do Bráulio. Ele queria sempre uma Alagoas boa,  e, embora pareça exagerado, não fosse ele, o Teatro Deodoro talvez não existisse.  Foi ele quem construiu o Teatro de Arena, quem estruturou a Fundação Teatro Deodoro, quem inventou de  fazer e fez o Museu da Imagem e do Som. Foi ele quem deu vida a Os Dyionisios. Criou muita coisa.
Pois este homem, aos 81 anos de idade, sem pedir permissão à cidade e aos amigos, faleceu e com toda a certeza, deixou-me com uma permanente saudade. Sei que levou muitas aventuras e muitos passos de vida comigo. Era turrão e não escolhia palavra. Nunca brigamos, nunca discutimos, nunca aconteceu a mínima farpa.
Tem dia Bráulio  que lembro de você e começo a sorrir. Lembra de quando a gernte vendia máquina de lavar roupa, que se telefonava para hotéis e restaurantes oferecendo uma máquina já esqueci a marca inventada?  Era Brascheta... E se explicava as maravilhas que ela fazia? Tou morrendo de rir agora. Pois é: os grandes heróis como você foi, não esquecem do menino que foram. Muitos hotéis ficaram sem a miraculosa Beascheta.
Eu escrevi estas linhas com o coração. Poderia ter escrito de outra maneira, algo formal e intelectualizado. No entanto, jamais conseguiria, pois o grande apelo do Bráulio para mim, é a recordação da amizade que sustentamos e ela foi isso: alegria, cumplicidade e extrema confiança pessoal. E isto para mim é um orgulho, pois considero Bráulio a grande figura do teatro de Alagoas no século passado. É mentira que Bráulio esteja esquecido; isto jamais acontecerá, o tempo e as evidências sempre estarão lembrando o seu nome.
Prefeitura de Maceió! Que tal um bronze do Bráulio, olhando para o porto como gostava de ficar ou da Praça Deodoro olhando os dois teatros: um que ele construiu e outro que perseverou em manter e conservar? Claro que outros fizeram isto: conservar. Mas Bráulio foi uma vida inteira. Marechal Deodoro precisa de companhia naquela praça, que é uma das  desditas urbanas de Maceió.
Que tal uma placa na entrada da rua onde ele morou, Prefeitura? Coisa assim:
Como esta rua é minha
Mandei ladrilhar
Com pedrinha de brilhantes
Para o Bráulio Leite Júnior passar!
Cidade de Maceió.



Dr. Biu

           
 Eu o conheci lá pros meados dos anos 50. Enfatiotado num terno de linho branco, cujo preço “quem dava era o vento” ou um “sirocco pele de ovo”, dançava todas as noites na “Pensão da Dina”, meretrício de Jaraguá, caçado em sapatos “Polar” bicolor e coberto por um chapéu de feltro “Ramenzoni”. Mulato ainda moço, bigode aparado e barba escanhoada, dançava tango para uma plateia que, quase sempre, o incentivava com risos e aplausos. Perguntei, quando o conheci: - Quem lhe ensinou a dançar tango? E ele, num muxoxo, com voz anasalada e gemida na última sílaba, respondeu: - Foi no cinema. Assisti o filme quatro veiz e aprendi as “queda”... Aquele dançarino (era Fred Astaire) pra mim é pinto...
            Desde aquela época até agora centenas de estórias, piadas, chistes foram inventadas ou realmente vivenciadas por uma das mais singulares figuras da nossa Maceió. Pintor de paredes e contratante de serviços por profissão, o vivente Benedito Alves terminou por largar as tintas e embrenhar-se, por vocação, no mundo do lenocínio, tornando-se no mais famoso proxeneta das noites alagoanas. Seu nome de guerra – Mossoró – tornou-se referência no submundo da cidade, como aconteceu com certa cervejaria ou com um dicionário da nossa língua. Como se pede uma “Brahma” ou um “Aurélio”, se diz em Maceió, “vou ao Mossoró”, querendo dizer que se “vai à zona do meretrício”...
            Personalidade multifacetada, o cidadão Benedito Alves tinha heterônimos que o distinguia em cada setor de atividades. Como já dissemos, Mossoró era sinônimo de cabaré. “Biu” era tratamento dos seus auxiliares e empregados, e “pai véio” era o chamamento respeitoso, feito pelas quengas, ao seu hospedeiro, guia e empregador, do mundo. Embora fosse “duro” no cobrar as diárias de suas “hóspedes”, dizia-se que sustentava dezenas de prostitutas decaídas e doentes, dando-lhes tudo que necessitassem, até o funeral.
            Suas estórias, e linguajar de arrepiar gramáticos, percorreram o Brasil inteiro, sendo contadas nos salões, barbearias, bares, boates e até mesmo na Academia Brasileira de Letras. Conhecia segredos de alcova de muitos políticos, empresários e autoridades importantes e os guardava com avareza e um discreto sorriso acumpliciador e matreiro. Durante muitos anos foi personagem e foi autor, povoando as noites maceioenses de sons, alegria, sexo, tilintar de taças e esvaziar de garrafas madrugadas a fora. Quem não o conhecia pessoalmente, já ouvira falar no seu nome e na sua decantada “Areia Branca”. Eu mesmo, durante os meses que titulei uma coluna no saudoso “Jornal das Alagoas”, reservava, dia sim dia não, um tópico para as proezas do meu simpático e humano “dr. Biu”. Relembro com nostálgica saudade seus meneios, seu riso largo, seu arquear de sobrancelhas, seus gestos acolhedores, quando numa noite de boemia errávamos o caminho de casa, ele pressuroso nos recebia, em se reservado, puxando cadeiras e chamando o garçom: - Vem cá menino... tá chegando Dr. Bralis, Dr. Jambris, professor Dinô , seu Druvá, e o Dr. Emis Vasconselvas... E acrescentava: - Tem umas francesa, umas americana e umas russa... Tudo da Bahia.
            Era assim o velho Mossoró. O homem que, perguntado pó uma incauta missionária, porque deixara de ser pintor para se dedicar à exploração de mulheres, respondeu: - “A gente tem que escolhê o mió negoço”... E batendo no baixo-ventre de uma prostituta mais próxima arrematou: - “Isso que dá dinheiro, irmã, porque lavou tá novo”... A religiosa, horrorizada, escafedeu-se e nunca mais tentou salvar aquela alma...
            Queira Deus que ele ao chegar lá no céu, não aperreie São Pedro atrás de um banheiro com paredes cobertas por “branculeijos” e “vermeleijos”, pois “azulejos” ele não queria de jeito nenhum. Afinal de contas, o nosso Mossoró, até morrer na semana que passou, era torcedor fanático do Clube de Regatas Brasil...
            A nossa Maceió ficou mais triste sem você, dr. Biu. Descanse em paz.

                                                                                              23/12/1994 – O J



 O Risadinha

           
Toda gente de teatro o conhecia. De norte ao sul do país – viajante que era de importante empresa paulista – ele frequentava os teatros, pavilhões, circos, salas improvisadas, fosse aonde fosse que se exibisse um grupo de artistas teatrais ele estivesse na cidade, lá estava aquela figura simpática, bem vestida, educada, unhas polidas e barba escanhoada, colônia inglesa e cabelos gomalisados. Média estatura, não era feio nem bonito, era distinto, afável, comunicativo. Só sua voz destoava de todo. Era desafinada, casquilhada, estridente, espremida por entre os dentes. Esquisita e horrorosa. Foi batizado como Agnelo, mas ninguém do meio artístico o conhecia como tal. Para todos era o Risadinha, terror dos melhores e mais afamados elencos, indesejado pelos produtores e referência urgente dos bilheteiros que, ao saberem de sua presença, corriam esbaforidos para avisar que ele estava na plateia...
            Fazia questão de comprar ingresso, embora fosse amigo de todos os diretores e artistas, mas sua reação espontânea, sem premeditação ou desejo de perturbar, com voz de riso inconfundível, transformavam os dramas mais pungentes em ações burlescas, provocando a plateia mais atenta e séria, em participante do verdadeiro pandemônio de risadas abafadas e dobradas gargalhadas que aconteciam depois do seu:
            -  Eh, eh, eh, miseráve... Eh, eh, eh, miseráve… Cuja entonação ia aumentando de volume à proporção que ele se emocionava ou ria com a cena representada...
            A princípio, era um susto. Depois um contágio incontrolável que atingia a todos, inclusive aos artistas, no palco, parados, mudos, desorientados, tentando conter o riso e, muitas vezes, sem conseguirem continuar representando, rindo, rindo, todos, plateia e artistas... Um inferno hilariante!...
            Ele, o autor da risadinha, sério, atônito, olhando para um lado e para o outro, depois encolhido na poltrona, cabeça baixa, envergonhado, quase sempre abandonado a sala depois de recomeçado o espetáculo... Um doidera...
            Contam que certa feita, no Recife, durante a Semana Santa, assistindo a cena do enforcamento de Judas, feita pelo ator Clênio Wanderley (que também fazia o Judas da Paixão de Cristo, em Fazenda Nova), Agnelo me pleno apogeu cênico, largou a sua casquinada e o seu miseráve bem alto, enquanto o Clênio se debatia pendurado pelo pescoço. E quanto mais se debatia o personagem, mais gritava Agnelo e ressoava mais alto sua risada de aprovação e emoção... O povo ria às bandeiras despregadas, até que o ator desesperado, soltou-se da corda, pulou do palco para a plateia e esmurrou furiosamente o pobre Risadinha, quebrando-lhe a dentadura e pisoteando os seus óculos que caíra pelo inópino da agressão... Acho que não é preciso dizer que nessa noite o espetáculo terminou ai...
            Em Maceió, que eu saiba, o meu bom Agnelo só esteve por duas vezes. Graças a Deus, naquelas noites exibiram-se artistas da musica erudita, gênero pelo qual ele não tinha maiores ou menores predileções. Fomos jantar no Bar das Ostras, quando falou-me do seu constrangimento e do ocorrido no Teatro Santa Isabel. Depois não o avistei mais...
            Por onde andará, o hoje lembrado e impagável Risadinha?...

                                                                                              24/04/1995 – O J
Os alados artistas do Teatro Deodoro

            Muito pouca gente, sabe disso. Somente alguns velhos criadores de pássaros ou os mais antigos frequentadores da Praça Deodoro.
            Quando assumi a direção do Teatro em 1957, o tema já servia para motivar os encontros, todas as tardes, dos funcionários aposentados e moradores das adjacências. Todos sabiam que naquela praça viviam os melhores sanhaços canoros de Maceió. Era um bando de mais ou menos uma dezena, entre o cinza, verde e o azul, encanto dos fiéis ouvintes que os protegiam contra os moleques e os inúmeros pegadores, aparecidos com gaiolas, armadilhas e alçapões.        
            “Seo” Morais, o antigo mordomo do Tetro, era uma espécie de coordenador do grupo de amigos, reunidos todas as tardes para jogar gamão, dama e firo, no saguão da velha casa d espetáculos seus porões transformados em sede de um “clube de caça e pesca”. O magnífico prédio construído no Governo Euclides Malta em 1910, era um casarão em ruínas, praticamente sem cumprir suas finalidades especificas. E o saudoso João Siqueira de Morais, que li residia, era o guardião de sues móveis e material cênico, composto de 4 varas de gambiarras, 3 refletores quebrados e sem lentes, além de 2 ou 3 telões e rompimentos pintados por Eurico Maciel e Alfredo Dacal. No meio dessa precariedade e semidestruição trabalhavam o Morais e o Zé Cabral, este, até hoje graças a Deus vivo e o mais fiel servidor daquela casa. Para mim o melhor servidor público que conheci e que depois de quase 50 anos ali trabalhando, nunca foi escolhido o Funcionário Padrão do Estado, como sempre mereceu.
            Um dia, lembro que o Morais, após receber ordem para mandar limpar o forro do salão de espetáculos, procurou-me para dizer, reticente, que ali moravam os sanhaços mais admirados da cidade. E ajuntou: Não queria espantá-los, pois já faziam parte da casa sendo os seus moradores mais apreciados. E dizia com os olhos brilhando, quase molhados:
            - E os bichinhos, diretor, já moram ali há muito tempo... Os velhos morrem e os pelancos continuam morando, pois nos oitizeiros da praça os meninos sacodem pedras.
            Fiquei sem saber como decidir. Na minha frente o antigo funcionário de cabelos brancos, olhos aflitos, velho caçador de tantos animais de grande porte a pedir pelos pássaros; na contramão a  necessidade de limpar o entulho, a sujeira. Pedi tempo para pensar. Fui para casa maturando o assunto. No outro dia mandei chamar o Morais.
            Limpe até onde for possível... Fiz um silêncio e acrescentei: E vigie para que nada aconteça aos nossos hospedes... . E que ninguém saiba do nosso trato, ouviu? – adverti convincente.
            O Morais, dentes alvos e certos à mostra, sorria satisfeito. Quando foi saindo, lembrei-me do seu gato:
            - E o gato?...
O morais tornou:
- Deixe comigo diretor, ele não mexe não...
Recomendei ainda:
- Cuidado, e quando puder, bote pra eles frutas e água...
E o Morais falando mais baixo:
- Isso, eu já faço há muito tempo...
Durante alguns anos ainda, o segredo permaneceu entre nós. Os sanhaços cantavam na praça, nos jardins laterais e moravam e procriavam no forro do Teatro Deodoro.
Depois que o Morais foi aposentado e morreu, deixando grande lacuna na administração do Teatro, os passarinhos desapareceram, sumiram, sem que eu nunca mais ouvisse falar deles.
E hoje quando lembro os inquilinos, artistas voadores do Deodoro, recordo também os versos do poeta Raul Machado que, num poema imortal, na primeira e terceira estrofes, de Pássaro Morto, diz assim:
            Eras, talvez, com tua alma cristalina,
            Nas manhãs em que a terra andava em festa.
            E nas tardes ensolaradas de verão,
            O mais sonoro poema da campina.
            O Caruso emplumado da floresta.
            O Bethoven boêmio da amplidão.
            Desdenhoso de glórias e de reclamos.
            Amavas a arte com pureza d’alma.
            E prescindindo de estímulos alheios.
            Cantavas só nas cúpulas dos ramos.
            Para o seu gênio não pedias palmas
            Nem auditório para teus gorjeios...

Eram assim, os alados cantores do Teatro Deodoro.

                                                                                              06/07/1992                
  
Os natais de outrora

           
Quando em conversa sobre Maceió de alguns anos atrás, nos referimos aos festejos do Natal, notamos espanto e até certa incredulidade entre os nossos ouvintes mais novos. Eles não podem imaginar uma Maceió, naqueles tempos, iluminada, colorida, festiva e alegre como era a nossa cidade. Não podem sentir o ambiente descontraído e impregnado da magia natalina, que fazia os maceioenses saírem para o passeio público praças e largos de cada bairro, a fim de assistirem os folguedos populares ensaiados pelos mestres de reisado, pastoril, baianas, chegança, guerreiros e outros festejos que encantavam a multidão enfatiotada em roupa nova e sapatos bem engraxados, rostos iluminados por sorrisos largos de contentamento.
            O barulho das “rodas-gigantes”, “carrosséis”, “sombrinhas”, “polvos” e “ondas” misturavam-se às vozes e danças das pastorinhas e baianas que gingavam em palanques enfeitados, reunindo, em derredor, torcedores entusiasmados que tudo faziam pelos “cordões” azul ou encarnado...
            As barracas de prendas e de jogos com seus prêmios expostos, ouvindo-se as falas dos banqueiros determinando começo e fim das apostas, seguidos dos ruídos das palhetas batendo entre as traves da roleta, e estalar de tiros secos das espingardas de setas coloridas, espetando os círculos do “tiro ao alvo”...
            As vozes masculinas das cheganças anunciavam “terra à vista”, enquanto os guerreiros duelavam e cantavam sob a “proteção de Nossa Senhora”, e os reisados sapateavam e entoavam versos sobre um “buquê de boninas” e uma “menina, linda flor da madrugada”...
            Passeando em torno da praça, moças de braços dados olhavam de esguelha para os rapazes que se postavam à beira das calçadas, dizendo galanteios ou cravando olhares demorados sobre as suas escolhidas. No alto falante, os “telegramas” anunciavam mensagens de elogio ou marcavam encontros em locais discretos, início, talvez, de uma amizade que iria perdurar por toda vida... No ar, o cheiro convidativo do cachorro quente, peixe frito, rolete de cana, algodão doce, farinha de milho, amendoins cozinhando ou torrado e do caruru e vatapá do velho “baiano”, de pele muito negra, roupa branca e óculos de lentes bem limpas, refletindo as gambiarras iluminadas.
            E acima de tudo, um cheiro bom de mulher, de moça-virgem que recendia a leite, pó de arroz e colônia, e das outras, casadas ou não, que traziam entranhado nos corpos o odor do perfume caro ou do “óleo de mutamba” misturado com pecado, suor de coito, visão imaginativa de lençóis e camisolas amarfanhadas num só espaço de prazer e paixão...
            Os bondes, nesses tempos usando sempre “reboques”, passavam apinhados; com trabalho dobrado para os cobradores que não conseguiam receber todas as passagens. De hora em hora, o apito dos trens especiais acautelavam a todos, trazendo no comboio centenas de usuários que a “great Western” transportava da estação central até Bebedouro – “a república da alegria” do Major Bonifácio da Silveira – com breve parada no parque Rio Branco (onde construíram o antigo mercado público e hoje se instala o “Mercado do Artesanato” cheio de pés de eucaliptos, e onde foram realizadas concorridas festas natalinas).
            Nas igrejas iluminadas, abertas durante toda á noite, os sinos dobravam alertando os muitos fiéis para a “missa do galo”, rezada impreterivelmente à meia noite. Nas fraldas do morro do farol podíamos ouvir os ecos das festas distantes, vindos de todos os bairros como da Pça. Da Liberdade na Pajuçara, da Pça. Raiol em Jaraguá, da Pça do bomfim, no Poço, da Pça. Bom Conselho, na levada, da Pça. Dos Martírios, no Centro, dos Largos Stª. Terezinha e Stª. Rita no Farol, e outras muito distantes que não conseguíamos distinguir, como da Pça. Dos Pobres, no Vergel do Lago, da Pça. Mané Caixão, na Ponta Grossa, e da Pça. Santo Antônio em Bebedouro, onde se reunia a melhor sociedade de Maceió, para participar da festa organizada pelo homem que tanta falta faz a esta cidade inquieta, escura, despoliciada, crescendo desorganizadamente, que não pode bem comemorar a data maior de toda cristandade.
            Ao relembrar tudo isso nos enchendo de saudade e de gratidão por todos aqueles que fizeram os Natais de Outrora, pleno de luzes, cânticos e cores, costumes e tradições, gestos e falas que se perderam no tempo, quando a nossa querida cidade cantava hinos e se perfumava de incenso para anunciar o nascimento do Menino-Deus.
            Bons tempos aqueles...

                                                                                                          24/12/1995 – OD

  
  
Tipos inesquecíveis

Maceió, como acontece em outras capitais e cidades antigas do Brasil, possui uma galeria interessantíssima de tipos populares que marcaram época e registraram aspectos da paisagem humana e social do nosso burgo.
            Quando falamos em cônica anterior do cidadão Benedito Alves – o Mossoró – não pensávamos que houvesse tanta repercussão e interesse pelo tema. Recebemos mensagens que nos incentivavam e sugeriam fazermos uma possível retrospectiva dos tipos populares que viveram em Maceió. De fato, não conhecemos nenhum trabalho de fôlego sobre tão singular assunto, ao contrario do que ocorre em vários municípios brasileiros. A história de cada cidade exibe sempre referências pitorescas ou tristes desses viventes que fazem parte, quase sempre, do universo brincalhão da garotada ou servem de chacota para outros tantos, disfarçados, semelhantes.
            Claro que não se pode numa crônica detalhar ou descrever tão originais e especiais criaturas. Mas para rememorar, podemos dizer que Maceió teve entre muitos tipos populares um a quem chamavam “Guabiraba” que foi uma espécie de “bobo da corte” do Governo Costa Rego. Todos riam dele, mas o temiam pela simpatia que despertava no jornalista-governador, homem austero e contrário a intimidades, que não admitia que o aborrecessem ou criticassem. Só o “Guabiraba” lhe fazia os reparos e recomendações que quisesse, obtendo como respostas sonoras gargalhadas e, quase sempre, atendimento. Outro tipo interessante foi um tal de “Dominguinhos”, frequentador diário das igrejas e solenidades de casamentos, batizados, funerais, missas de 7 dia, com os bolsos do paletó enfeitado com medalhas e santinhos que ia recolhendo e distribuindo de acordo com o acontecimento; o “Habitante da Lua”, que ficava sentado no batente lateral da Delegacia Fiscal, com uma serie de pauzinhos entrançados em curiosos desenhos, pelos quais ele dizia se comunicar com os extraterrestres; outro mais, o “Ariston”, o negro bom e serviçal que ao tomar uma carraspana saía com o braço dobrada à altura da boca, o polegar e o indicador apertando o nariz, tocando fanfarra e imitando o ruído de bumbos atrás das pessoas que ele desejava homenagear; nesta galeria, incluí-se também “seu Fortes”, pequeno proprietário de um sítio na antiga Buarque de Macedo, que andava ligeiro, um cacete na mão, acompanhado de um cão a quem chamava constantemente com assovios e apitos. Ficava “brabo” quando a molecada o alcunhava de “comunista” ou “assassino de Getúlio Vargas”; “Augusto Doidinho” que dizia-se parente de uma autoridade local, se constituía no terror de seus desafetos e contrários políticos, pois a todos chamava de “cornos, veados e ladrões” em altos brados e em plena Rua do Comércio; recordo também um a quem chamavam “Piupiu”, portador de frondoso bigode branco que por ter criticado Costa Rego, teve o seu bigodão arrancado, fio a fio, por policiais munidos de alicates, em pleno Relógio Oficial; outro autointitulado “Dr.. Freitas” tomava porres para contestar políticos, pastores evangélicos e propagandistas comerciais, negando e desmentindo tudo quando os oradores diziam, provocando anarquia e confusão nos comícios e assembleias religiosas; vindo do sertão, apareceu um tipo curioso: trajava farda caqui, capacete “canoa” riunas e óculos de vidro comum, além de fitas coloridas presas à roupa como se fossem “condecorações”; falava devagar e guturalmente, dizendo-se chamar “Catrevagem”. Um dia, levado para se confessar, ao ouvir do padre: - Diga os seus pecados, meu filho... deu um muxoxo e respondeu: - Diga os do sinhô primeiro; lembro ainda o mulato pintor de parede, cabelo empastado de brilhantina, dentes separados e anéis de latão nos dedos, que gostava de cortejar políticos... Contava-se que um dia perguntaram-lhe como se soletrava “pincel” e ele com ares de “filósofo” foi dizendo: P-I-N/pin-c-h-e-l/cel, por isso como “chexeléu” ficou conhecido até morrer. E tantos outros como o “Espinhaço de Gato”, magríssimo cidadão que nos morros do Farol ficava chorando olhando para os navios no porto e gritando que haviam lhe roubado a fortuna e as embarcações... “Otília Cascavel”, doida-mansa que só saía acompanhada de sete ou oito cachorros amarrados à cintura... “Nega Elefante”, gorda e de beições deformados que corria atrás da meninada ao ouvir o apelido... “Zarcan”, funileiro no beco da marabá, que corria atrás dos moleques, com um espeto na mão ameaçando e falando nas santas mães daqueles endiabrados... “Moleque Namorador”, jornaleiro viciado em maconha, considerado um dos maiores passistas do Nordeste, que morreu tuberculoso aos vinte e poucos anos de idade... E muitos outros benditos tipos populares, que se perderam no passado, mas que serviam para enriquecer o nosso acervo folclórico, de tradições e costumes, lições de vidas humildes e mosaicos vivos das nossas deficiências e intolerâncias.
            Além do escritor e saudoso cronista da cidade, Feliz Lima Júnior, poucos literatos se ocuparam do assunto. Seria o caso de pesquisadores de dedicarem a esse trabalho tão necessário à historiografia da nossa Maceió, já tão desfigurada e com seus monumentos e logradouros públicos tão abandonados. Sem dúvida, esse é um assunto que fascina e merece melhor atenção e maiores cuidados.
            Quem se habilita?...

                                                                                                          11/02/1995 – J O



                



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