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sábado, 23 de abril de 2016

Banco de Imagem. Ana Carolyne Maria da Silva. Índios Geripankó e Katokin. Alagoas.





ESTAS FOTOGRAFIAS SÃO DE AUTORIA DE ANA CAROLYNE, ESTUDANTE DE HISTÓRIA, TURMA 2016 DO CESMAC

 











Geripanko indians, Alagoas, Brasil.  
FESTA CEREMONIAL DE  UMBU  CÉRÉMONIE DE UMBU FEAST   


 

 
CEREMONIAL OF UMBU FEAST
 
 
 
 
 
Inscrições rupestres no sertão de Alagoas 

 
 
 
 
 
Lançamento de site katokin em Pariconha 

 
 
 
 



obv. os cortes foram realizados pelo administrador do blog 

sábado, 16 de abril de 2016

Memória e cotidiano. Eliana Cavalcanti. Entre o céu e a terra


Meu pai


Entre o céu e a terra
                                                                              

                                                                Eliana Cavalcanti

                                                       

      Entrei às pressas no Teatro de Santa Isabel. Logo no saguão, fui recebida por um dos organizadores do festival, que me anunciou que tinha convites para mim, na bilheteria. E me perguntou: “Onde estão os outros?”. Ao que lhe respondi: “Estão chegando. É que eles foram para um hotel, enquanto que eu estou hospedada na casa de meu irmão, que fica mais perto daqui”. Esclarecendo: eu estava no Recife, vinda de Fortaleza com alguns dos nossos alunos que tinham se apresentado no palco do Teatro José de Alencar, numa seletiva para o “Passo de Arte”, concurso de dança que acontece todos os anos em São Paulo, na cidade de Indaiatuba.
         Estávamos eufóricos, pois, dos cinco alunos do Ballet Eliana Cavalcanti que se submeteram ao concurso, quatro haviam sido selecionados para a final do “Passo de Arte”, o segundo maior festival de dança do país, só perdendo para o de Joinville. Na bilheteria, uma moça muito simpática sugeriu-me não esperar pelos meus bailarinos, pois já ia ser dado o terceiro sinal. Ao me dirigir para a escadaria que dá acesso à plateia, um dos lanterninhas me informou que meu assento era mais em cima. Subi as escadas quase correndo, e outro lanterninha me acompanhou até um camarote localizado frontalmente ao palco, abriu a porta e, para surpresa minha, já havia um senhor bem instalado. Cumprimentamo-nos com as luzes já se apagando. E o espetáculo começou. Após uns dez minutos de coreografia, o meu pessoal chegou e se instalou, silenciosamente, no camarote do lado esquerdo. Comentei baixinho: Ué, ficamos separados!
        
Teatro Santa Isabel, Recife
Finda a primeira coreografia, eu ainda estava extasiada, quando o senhor me perguntou: “Você quer ler o programa?”. Agradeci e expliquei que já o tinha, pois havia assistido ao mesmo espetáculo, no dia anterior, em Fortaleza.  Do camarote da direita, um rapaz perguntou em tom de brincadeira: “Você está nos perseguindo?”. Em seguida, apresentou-se como cinegrafista responsável pelo material documental da Companhia. Começamos a conversar e lhe disse estar muito feliz com o nível da Companhia do Estado de São Paulo e que havia, em Fortaleza, trocado umas ideias com Iracity Cardoso, sua diretora, que eu já conhecia desde 1973, quando fizemos aulas juntas no Ballet Stagium. E o senhor, que até então se mantinha calado, interferiu na conversa, dizendo: “Interessante, pois em 1973 hospedei na minha casa, em São Paulo, a filha de um grande amigo meu daqui do Recife, e outra moça, também bailarina, que foram fazer um curso de férias no Stagium. Você conhece Helena Assunção Cavalcanti?”. E eu: “Conheço muito. O senhor sabe que a outra moça era eu?”. O homem ficou perplexo. “Você? Eu mal posso acreditar!”. Nisso, apagaram-se as luzes e nos endireitamos nas cadeiras para assistir a mais um trabalho.
          Quando eu ia saindo da casa do meu irmão, antes de fechar a porta do quarto, olhei pra trás para ver se havia deixado alguma coisa fora do lugar. Foi quando avistei um exemplar do meu livro 50 anos de plié – memórias de uma alabucana, na mala entreaberta, deixada em cima da cama. Fiquei na dúvida se o levava comigo ou não. Depois, pensei: “Vou levar, sim. Vai que encontro um amigo que ainda não tem o meu livro...”. Naquele momento, ali no teatro, lembrei que no capítulo desse meu livro em que falo no Stagium, faço uma menção àquele gentil anfitrião que tão bem nos recebeu no seu elegante e confortável apartamento, no bairro de Higienópolis, em 1973. Fiquei esperando que o espetáculo terminasse. Ao lhe mostrar e ler para ele a página do livro, este homem ficou estupefato. Disse-me que não tinha o que fazer naquela noite, e que não sabia por que tinha resolvido assistir a um espetáculo de balé. Aquilo não lhe era comum. Dei-lhe o livro de presente, dedicado, naturalmente. E ele, gentilmente, me disse: “Fique à vontade, pois sei que você deve ter muitos colegas e amigos para cumprimentar, mas ligue para o seu irmão dizendo que não precisa vir lhe buscar, pois faço questão de lhe levar em casa”.
         
Santa Isabel
Lá fora, no saguão, revi, realmente, amigos de longas datas. Depois de alguns minutos, aproximei-me do senhor Alexandre, e um amigo seu, já sabendo da história (ele já havia contado sobre esse encontro “casual”, numa roda de amigos recifenses), comentou: “Alguém que muito frequentou este teatro fez com que vocês hoje se encontrassem”. E eu respondi para aquele estranho: “Se existe essa possibilidade, certamente deve-se a meu pai, que, como crítico de teatro, vivia aqui quase que diariamente (Recife, por vários anos, foi considerada a terceira cidade do país e, por isso mesmo, tinha uma efervescência cultural muito grande) e amava estar nesta casa de espetáculos.
         Meu pai, à época, ficou muito agradecido com a hospitalidade do senhor Alexandre. Fez uma visita ao seu irmão, Fernando Leal, na sua loja em Recife, pedindo- lhe que fizesse chegar às mãos do irmão uma lembrança da nossa gratidão. Ambos eram proprietários da Casa Viana Leal (uma das melhores lojas do Recife, se não a melhor). Um irmão gerenciava a loja de Recife e o outro, a de São Paulo.
          Fico com a frase do personagem Hamlet, obra do dramaturgo inglês William Shakespeare: “Há mais mistérios entre o céu e a terra do que sonha a nossa vã filosofia”.

                                                                          


Leila Morais. O município de Carneiros – um pouso em meio aos Juron (III)

Este material foi publicado em Campus/O Dia, Maceió, Alagoas

Este número de Campus é uma homenagem ao amigo Francisco Ferraz, cigano recentemente falecido no rancho de Carneiros.


Calon.  Gitanos a Alagoas, Brasil.  Gypsies in Alagoas, Brazil.  Tsiganes en Alagoas, Brésil. Zingari in Alagoas , Brasile. Zigeuner in Alagoas, Brasilien. Țiganii din Alagoas, Brazilia


Os ciganos Calon em Carneiros nas Alagoas (iii)


 




Leila Samila Portela de Morais é formada em Ciências Sociais, Licenciatura pela Universidade Federal de Alagoas, especialista em Antropologia e mestranda pela mesma instituição. Como especialista defendeu a monografia intitulada “Veio a ordem de andar”: espaço e família entre os ciganos Calon no município de Carneiros/AL”. Aproximou-se dos estudos sobre ciganos ao integrar, como bailarina, o grupo de música e dança cigana LeshjaeKumpanja. É professora de Sociologia no Ensino Médio na rede estadual de educação de Alagoas. Tem se dedicado aos estudos sobre etnicidade, processos identitários e desenvolvimento turístico.
Este trabalho de Leila é um resumo de texto que escreveu e defendeu para título de especialista na área de Antropologia. É inédito e trata de assunto virgem em Alagoas: nossos ciganos, aqueles que estão aqui conosco. No caso, Leila estuda e informa sobre os Calon que se encontram na cidade de Carneiros, adentrada no oeste alagoano.
Preferimos que o texto não contivesse um largo trato teórico, sendo bem mais informativo nesta sua versão para nosso suplemento. Pela sua importância, por trabalhar a diferenciação de uma etnia, por estar contra uma ordem de preconceitos, publicaremos o trabalho de Leila em quatro números.
Trata-se de uma jovem e pesquisadora e que muito poderá contribuir nas discussões sobre Alagoas.  Foi orientada pela professora (doutoranda) Jordânia Souza.  Fomos com autorização da autora, responsáveis pela preparação do texto para jornal. Havendo erro, a responsabilidade é nossa.
Luiz Sávio de Almeida

 
O município de Carneiros – um pouso em meio aos Juron (III)

Leila Samila Portela de Morais
 
A importância de “parecer cigano” e o comportamento envolto no modo de “Ser Calin”.

Existem códigos de condutas que mostram a maneira de “ser cigano”: “vocês vê de longe um cigano verdadeiro” argumenta Seu Francisco. “Parecer cigano” é muito importante, são constantes as observações: “isso aí não parece cigano”, “e isso é cigano?” Falam algumas Calin ao verem as fotos de outros ciganos mostradas por nós do Grupo Leshjae. Dessa forma, ser e parecer, longe de ser oposição como às vezes pensamos, são coisas complementares. Nesse contexto, se comportar como cigano não se revela só nas ações do indivíduo, mas também no seu corpo. Dessa forma, as roupas; os acessórios; o ouro nos dentes; o uso do chapéu; das botas; dos vestidos longos; coloridos com fitas e rendas; o pente preso no alto da cabeça; os cabelos longos; o tecido de cor azul usado pela Calin que ficou viúva, tudo isto demonstra uma identidade Calon. “Cigano é cigano, se veste de cigano, mostra o que é... eu sou cigana e visto roupa de cigana... que mostra o respeito... a moral...” (Meire Esmeralda).
O uso da roupa pela mulher cigana transcende fatores somente estéticos, demonstrando uma forma de sociabilidade, de se portar no mundo, de ser cigana e ser mulher. As roupas fazem dela o que ela é e seu uso marca a passagem para uma vida de responsabilidades. Como afirma Miller (2010) “as roupas estão entre nossos pertences mais pessoais. Elas constituem o principal intermediário entre nossa percepção de nossos corpos e nossa percepção do mundo exterior”. (p. 38).

O controle sobre as Calin
O controle sobre o corpo da mulher é algo forte entre os Calon. A mulher possui o papel de guardar e zelar pela honra de toda família. Ferrari (2011) argumenta que a noção de vergonha Calon é conceito chave para entender a conceitualização que os ciganos fazem sobre os gadjes. Essa vergonha é ligada ao gênero, ou seja, a vergonha do homem depende da vergonha das mulheres.
[...] diferença entre os calon e os gadjés está intimamente associada aogênero. A vergonha do homem depende da vergonha de “suas mulheres”, a esposa e as filhas, e sua ação foca-se no controle destas. No imaginário calon, a mulher gajin constituiria o extremo da indecência, impureza e da liberdade, enquanto a mulher calin, oextremo da vergonha, pureza e “escravidão”. O controle do corpofeminino aparece como o grande divisor entre as duas moralidades, a gadjé e a calon. É por meio de uma performance corporal feminina adequada que se constrói o ethoscalon. (p. 40).
Devemos lembrar que, conforme salienta Ferrari, a vergonha não só diz respeito às restrições sobre o corpo feminino, mas também à “responsabilidade”, “bom caráter”, “bom procedimento” dos Calon em geral. Ouvi constantemente no rancho em Carneiros os discursos em torno da “nossa honra”, “nossa moral”, “nossa vergonha”.
A “vergonha”, a “moral” varia de acordo com as famílias, isto é, o que pode ser vergonha para uns, pode não ser para outros, usar roupas de alça, por exemplo, é considerado vergonha para os Calon em Carneiros. Ao falar sobre as roupas das Calin, Seu Francisco salienta que “é da nossa tradição... a mulher tem que ser composta... você vê que é uma cigana de longe e deve ser assim... não deve vestir igual à brasileira...”. As Calin me contam que não usam roupa de alça, short curto “nós temos vergonha”. “Não adianta usar short e roupa de alça se todo mundo sabe que somos ciganas pela nossa fala, nossa moral... a roupa é pra nossa moral... tem que tá composta, bem vestida, entende?” revela Neide. Sua fala mostra a relação íntima entre ser e parecer para os Calon “tudo da cigana é com respeito... respeito pra família, pro marido, pro sogro, pros irmão, pros tio, pros primo, pra tudo... a roupa de cigana é respeito, é composta... tenho vergonha... não usa calça, short... só as menina pequena... depois tem que dá o respeito... é assim, tá entendendo? Tudo da cigana é no respeito” (Vilma)
A “vergonha”, a “moral”, a “honra” Calon se sustenta na forma de “parecer cigano” e também na forma de “se comportar como cigano”, “nosso modo”, “nossa tradição” está em oposição ao modo de ser dos “brasileiros”, dos “juron”, “sem moral”, “prostituído”. Dessa forma, o contato (principalmente das mulheres) com o mundo dos juron deve ser evitado, ir à escola, por exemplo, é alvo de desconfiança e controle. Os irmãos e primos das meninas Calin exercem esse papel dentro da escola, Miranda (16 anos) me conta que tem duas amigas na escola e que elas podem frequentar o rancho, se quiserem, porém pra ela frequentar a casa das amigas, só com a companhia do irmão. A mãe de Miranda, Jane, me fala que muita aproximação com os juron, principalmente nessa idade (se referindo à filha de 16 anos), pode ser perigoso “a gentetem que tá de olho... não pode se engraçar... se não for assim, não vai mais pra escola...”. Ela me conta que “faz gosto” de a filha estudar “não quero a vida dela levando sol e chuva, sem saber ler, escrever... pelo pai dela, ela já tava casada, mas eu vou levando e ela vai terminar os estudos”. Miranda me fala que a “cabeça” de seus pais (Jane e Moisés) é diferente dos outros Calon “pela minha idade já era pra eu ta casada... como eu não quero, eles aceita”.



Casamentos
No rancho de Carneiros, os casamentos de ciganos com não ciganas são comuns. Somente os homens podem se casar com não ciganas. De acordo com eles, a Calin que se casar com um juron “não é mais cigana”. As jurin que decidem casar com ciganos e viver como Calin, passam a pertencer àquele núcleo familiar e encontram na sogra uma figura de grandeimportância na construção dessa nova postura diante do mundo. A sogra é aquela queensina e ajuda, mas, ao mesmo tempo, exerce grande controle e pressão sobre a moça, afinal, ela tem a capacidade de “envergonhar” a família e a sogra torna-se responsável pelo comportamento da nora.
Dentre as brasileiras casadas com Calon que moram no rancho, conheci Fabiana. Ela é baiana, conheceu Gilvan, sobrinho de Nega lá em Feira de Santana. Apaixonaram- se e no modo cigano, que segundo eles é “de repente” “bem apressado... cigano não namora, não tem paciência...”, logo se “juntaram” e Fabiana “tá aprendendo a ser cigana”. Ela me conta que foi criada pela sua mãe para casar, cuidar da casa e do marido, então, não foi problema pra ela largar uma vida de solteira pra “lavar, passar, cozinhar pro marido...” como as Calin fazem. O que Fabiana julga difícil “não é vestir as roupas e morar em barraca... é não poder andar como andava... tudo mudou ligeiro demais... é difícil se acostumar... eu não mando na minha casa... não posso me descuidar de nada... tudo é motivo pra dizer que tenho preguiça.”. Observei que neste processo de inserção no grupo, via casamento, a mulher é alvo de uma maior fiscalização.
Nessa fala, Fabiana se refere à sua sogra, “é ela que manda... pra ela eu não lavo direito, não passo direito...”. As tarefas que Fabiana sempre foi acostumada a fazer como brasileira (lavar, passar, cozinhar, cuidar da casa) agora terão que ser feitas do modo Calon, sua sogra é a responsável a ensiná-la a “ser Calin”. Mesmo ressaltando a dificuldade, Fabiana completa, “mas não me queixo, ela (a sogra) me ajuda, faz companhia... já to mais acostumada... antes foi mais difícil... muito, muito...”. Fabiana me conta que teve que aprender outra forma de se comportar, de se dirigir aos homens, de falar com o sogro, de andar pelo rancho, etc. Tanto Fabiana quanto Sielma me falaram que ela “tá aprendendo a ser cigana”, “tá pegando...”.
Concordo com Ferrari (2010) quando defende a tese de que a calonidade é feita no presente, a pessoa Calon, portanto, é fruto de um longo e contínuo processo de construção e de diferenciação em relação aos gadjes (p. 166). Para a autora, o foco da calonidade está na ação, não no resultado. Da mesma forma, os Calon enxergam os gadjes, ou seja, “um gadje não se define por uma ‘essência’, mas é, antes, um sujeito em relação, passível de transformação. Um gadje que empreende o processo de ‘virar’ calonestá sempre em ‘processo’, um movimento constante que jamais se efetiva totalmente.” (p. 36). O inverso também acontece, um Calon pode virar gadje. Isso acontece quando ele deixa de “parecer cigano” e passa a ser comportar como “juron”, pois isso, o controle, principalmente entre os mais jovens quando começam a frequentar lugares de juron como a escola, por exemplo. Nas falas dos Calon conseguimos enxergar o que é se comportar como um juron: “não ter moral”, viver longe da família, se submeter a um emprego formal, dentre outros elementos. Pensando um pouco sobre este modo de ser, gostaria de destacar que o casamento no rancho é uma das mais importantes festas e reúnem até os parentes mais distantes
O casamento dura dois dias... no primeiro dia tem a matança do boi...a gente pega o boi, mata o boi e faz churrasco, cozinha, assa e vai beber e dançar... aí no outro dia já é o casamento... a noiva se arrumacom outra roupa... nesse dia é o casamento mesmo... feito pelo padre... depois tem outra festa. [...] Tem vestido de noiva, banda e cantor, nós bebe, dança nos 2 dias. (Miranda).
Os casamentos são acertados entre as famílias; os gastos com a festa são divididos, o primeiro dia a responsável é a família do noivo, no segundo dia, a família da noiva. A casa é “montada” pela família que compra fogão, geladeira, cama, tudo que existe na barraca. Os novos casais, de acordo com eles, sempre arrancham junto à família do marido. Embora os casamentos aconteçam logo cedo e sejam frequentes, as separações também o são. Segundo Vanda, “se não dá certo, acaba... melhor que ta sofrendo...”. Entre eles, a violência doméstica é bastante repreendida e, segundo as Calin, já foi motivo de muitas brigas e até mortes nas famílias “o pai não aceita que judia das filhas... se tá judiando a gente vai e pega de volta...”. É muito comum, o pai da Calin ameaçar “pegar de volta” a filha quando briga com o genro ou com sua família. Isso é motivo de muitas brigas, intrigas e fofocas no rancho. Os tratos feitos sobre o casamento dos filhos também são bastante delicados, podendo ser desfeitos a qualquer momento (o que eles chamam de “distrato”), por isso é muito importante que a moça não tenha contato com o noivo, pois “se distratar não arruma mais casamento... nenhum cigano vai querer...”, afirmam.



O cotidiano das Calin
As mulheres dedicam seus dias a cuidar das crianças, da limpeza e manutenção da barraca e na ajuda aos parentes, principalmente da sogra. Elas não podem trabalhar fora, a única atividade que podem exercer é a leitura da sorte. Além da leitura da sorte, realizada pelas mulheres, em Carneiros, existe a venda de patuás, cada patuá é confeccionado de acordo com uma reza específica para cada mal, como: inveja, mal olhado, para abrir os caminhos, saúde etc., elas também costumam pedir mantimentos nas feiras ou de casa em casa. Contudo essas atividades, não são realizadas na feira da cidade “não gostamos que seja aqui... é melhor nas outra feira”; “nós pedimos em Tapera, em Olho D’água, Santana... aqui não pedimosnão...”. Só há atendimento dentro do rancho, ou seja, quando as pessoas da cidade as procuram para ler a sorte, abrir o baralho cigano ou pra pedir algum tipo de reza, banho, trabalho, etc. Acompanhei as Calin nas atividades domésticas, elas trabalham o dia inteiro, lavam roupas e louças, buscam água (na única torneira existente na entrada do rancho) e lenha para cozinhar; mantém a barraca limpa; cuidam das crianças; fazem a comida; cuidam dos maridos etc.
A fala de Lilian mostra um pouco o dia a dia das Calin
“aqui só quem faz as coisa é a mulher...tem que aprender de pequena... pegar água, lenha, cozinhar... o homem não faz nada pra mulher não... nem comida pra eles comer... nem a comida no prato eles botam... não tira a comida da panela não... cigano é assim... não tendo aquela mulher pra fazer a comida, ele passa o dia morrendo de fome, mas não faz... não faz um café... nada... é tudo eu... aqui tudinho é assim.”
A figura da mulher é essencial na visão dos Calon “uma boa mulher acerta a vida do homem, o homem tem que cuidar, proteger, não judia, não maltrata” diz SeuFrancisco. As mulheres demonstram consciência de sua importância no rancho: “os homens não trabalham não... só as mulheres... aqui eles não fazem nada... não pode... se não tem mulher eles não vivem... não sabe, entende? Precisam de ter mulher pra fazer as coisa, pra cuidar... pra fazer o comer” diz Nega. “Se tiver com saúde é nós que faz... se tiver doente é nós que faz... vida de cigana é essa... tudo depende das mulher aqui, tudo” completa Turista.
Elas dizem que sem a mulher não existe família, não existe o “comer”, não existe a limpeza do rancho. As mulheres são vistas como essenciais na organização social cigana e sabem visualizar esse papel, ouvi algumas vezes ameaças de saída das mesmas “vou embora, quero vê como vocês vive”, elas usam essa “dependência” que os homens possuem em relação a elas. E os laços com a família sustentam esse “poder”, uma Calin não pensa duas vezes em avisar pra sua família (pai, mãe, irmãos), caso estiver sendo “judiada” pelo marido e pela família dele. Esse foi um dos motivos da maioria das brigas que ouvi falar no rancho, em minha estada foram contadas histórias de separação de família, de brigas violentas e até de mortes por causa da “judiação” das mulheres.



Os homens e o “rolo”
Os homens trabalham fazendo “rolo” nas diversas feiras localizadas tanto em Carneiros (feira tradicional aos domingos) quanto nas outras existentes nas cidades vizinhas como Senador Rui Palmeira, São José da Tapera, Olho D’água das Flores etc. Os Calon negociam os animais que criam no rancho (galos, galinhas, passarinhos), vendem diversos tipos de aparelhos.Durante a semana (terça-feira) também existe uma feira pequena em Carneiros que os Calon frequentam para negociar.
É no bom desempenho no “rolo” que se demonstra valores importantes na construção do “homem Calon” como força e esperteza. Negociar é algo que o menino aprende por volta dos 13 anos de idade quando começa a frequentar as feiras e fazer as viagens acompanhados do pai, irmãos e tios, dentre outros parentes. É nesse período que a maioria dos meninos deixam de frequentar a escola. O conhecimento escolar não garante ao menino ser um bom negociador, por isso frequentam a escola para “aprender fazer conta... pra não ser enrolado pelo juron...”. Turista me diz: “cigano tem que saber fazer rolo... rolo bom... cigano sabe se virar... só não pode tomar prejuízo”. O homem inábil para o rolo é considerado fraco.
Os Calon fazem grandes viagens para “fazer rolo... pra negociar”, essas viagens duram em média de 1 a 2 meses. Eles sempre viajam em família, ficam na casa de parentes ou em pousadas. Nessas viagens são realizados “rolos grandes”. Já os pequenos rolos são realizados na feira de Carneiros e das cidades vizinhas. Em geral eles vão pra feira negociar aos domingos e nas terças-feiras, durante os outros dias da semana ficam no rancho, resolvendo problemas cotidianos no acampamento ou na cidade, “jogam conversa fora”, ouvem música sertaneja, bebem, jogam dominó, tocam violão “não trabalha todo dia”, “a vida de cigano é mais divertida, mais alegre”. Quando pergunto as Calin se os homens trabalham, elas me respondem que não, “eles viaja!”. Deste modo, me pareceu que a nossa concepção de trabalho com horário fixo, todos os dias e subordinado a alguém é alheia à visão de mundo Calon.
Através das viagens para “fazer negócio”, o homem Calon reforça sua identidade e seus laços familiares, o emprego fixo o qual se submete o juron, é visto como algo negativo, que afasta os Calon da convivência familiar e um calon sem estar envolto aos afetos e relações familiares deixa de ser Calon. Ferrari (2010) analisa otermo “sozinho” falado recorrentemente pelos Calon ao se referirem às relações dos nãociganos. Somos conscientes que o cigano enxerga o mundo externo como perigoso e preconceituoso isso faz com que o coletivo exerça uma função protetora, porém, a análise do “sozinho” pode revelar algo além dessa função mais óbvia, segundo a autora:
“A ideia de “sozinho”, sempre ligada ao gadje, contrasta com a noção de pessoa calon imersa numa rede de relacionalidade. Um calon não é nunca calon sozinho. Sua calonidade depende, como venho mostrando, de um “fazer-se calon”, que envolve por sua vez uma estética “diferenciante”, um modo particular de ser homem e de ser mulher, e um fluxo de afetos que tenciona as relações. Estar fora dessarede de pessoas, coisas e afetos é estar fora da vida calon; é, no limite, ser gadje. A pessoa que assume uma independência, que se vê “livre” da expectativa dos seus, e que é capaz de conduzir sua vida para fora dessa rede, é vista como uma pessoa autônoma, em ultima análise, uma pessoa gadje. Tudo se passa como se nessa equação o gadje“jogasse” com a noção de “individuo”, que é contudo interpretada pelo calon sob o signo negativo do “sozinho”. (p.200-201).

Referencias
FERRARI, Florência. O mundo Passa: Uma etnografia dos Calon e suas relações com os brasileiros. São Paulo, 2010. Tese (Doutoramento em Antropologia Social) – Universidade de São Paulo. 2010.
MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Ed. Zahah – RJ, 2010.
           

segunda-feira, 4 de abril de 2016

Cícero Péricles de Carvalho. Dois dedos de prosa



Resultado de imagem para Cícero Péricles de CarvalhoLuiz Sávio de Almeida é o organizador oficial deste Caderno, mas hoje ele é apenas o tema desta edição. No dia 31, quinta-feira, ele estará aniversariando. Por isso, seus amigos e leitores resolveram prestar-lhe uma homenagem simples, ocupando este espaço, publicando, à sua revelia, mas com a concordância do jornal, artigos sobre aspectos de sua vasta obra intelectual.
Luiz Sávio de Almeida é o que os leitores de O Dia sabem: o professor emérito da Ufal, o sociólogo que trata das questões mais caras da vida regional: índios, quilombolas, cultura e festas populares, população na periferia urbana, reforma agrária, e outros temas vinculados ao cotidiano da maioria dos alagoanos. Ele também é o autor de peças de teatro e de livros de história alagoana. Mas Sávio é, principalmente, um intelectual público comprometido com seu tempo. Foi, por isso, que amigos e leitores resolveram fazer este número especial do Caderno Campus. Boa leitura! Cícero Péricles de Carvalho.