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domingo, 3 de abril de 2016

Otávio Cabral. PELOS BECOS DA MISÉRIA E DA FOME: A DRAMATURGIA DE LUIZ SÁVIO DE ALMEIDA





les ruelles de la misère et de la faim
the alleys of misery and hunger
i vicoli di miseria e di fame
los callejones de la miseria y el hambre 
  
PELOS BECOS DA MISÉRIA E DA FOME: A DRAMATURGIA DE LUIZ SÁVIO DE ALMEIDA

                                                                                          Otávio Cabral

                        Quando me decidi a estudar a dramaturgia alagoana e promovi pela primeira vez uma reflexão crítica sobre essa dramaturgia, direcionei meu olhar para uma peça de Luiz Sávio de Almeida, Comeram Dom Pero Fernão de Sardinha. Essa escolha se deu, primeiro, por considerá-la, além de um texto formalmente bem construído, uma peça que se insere na discussão mais aflorada da modernidade no que diz respeito à construção trágica proveniente da desigualdade social; e segundo, por ter se constituído, quando da sua encenação, num momento de alta relevância para o teatro alagoano e, ademais, era a primeira vez que um texto de sua autoria era encenado.
                        Em nossa análise enveredamos pelos meandros da miséria, rastejando com as personagens, identificando ali as marcas do trágico no torvelinho em que se envolvem, procurando demonstrar que, na modernidade, esta manifestação só se faz possível mediante a relação sempre conflituosa entre os seres humanos e o capital, na construção cotidiana da história.
                        A primeira montagem dessa peça foi feita nos anos 80 do século passado, pela Associação Teatral das Alagoas – ATA e, recentemente, no começo dos anos 2000, com os alunos do CESMAC, que a encenaram e representaram no Teatro de Arena Sergio Cardoso, em Maceió. Estivemos presentes na estreia – eu, o autor e alguns dos atores da primeira montagem– e saímos do espetáculo felizes com a montagem, mas infelizes com a atualidade de um texto escrito trinta anos atrás. É muito triste constatarmos que a sociedade não conseguiu superar praticamente nada daquilo que foi discutido nos anos 80, ou seja: a fome, a desigualdade e a miséria continuam presentes no cotidiano dos seres humanos, fazendo com que a peça permaneça tão atual quanto antes.
                        Essa, sem dúvida, tem sido a marca da dramaturgia de Luiz Sávio de Almeida, inscrita em todas as peças de seu repertório, pelo menos naquelas que foram encenadas: Igreja Verde, que foi detentora do premio FIAT e cumpriu uma excelente temporada nas duas oportunidades em que foi montada. Essa peça é baseada em uma pesquisa antropológica feita pelo folclorista José Maria Tenório Rocha, ex professor da UFAL e atualmente residindo em Sergipe, em uma determinada comunidade do interior de Alagoas, através da qual ele resgatou uma bíblia que teria sido escrita por um beato, líder da comunidade, indivíduo um tanto quanto confuso na organização das ideias, o qual cria algumas palavras inteiramente desconexas, mas que no conjunto nos levam a deduzir o real sentido pretendido. Esse beato, que se diz possuído pelo Espírito Santo, além do ritual religioso propriamente dito, cuja bíblia que escreveu é a base, ainda se relaciona com as mulheres da comunidade, segundo ele para deixá-las igualmente possuídas pelo espírito. É um texto de forte impacto dramático que, embora tenha várias personagens, foi escrito para um só ator, aquele que interpreta o beato, já que tudo o mais gira em torno dessa personagem, constituindo-se assim no centro de toda a ação dramática. A peça revela o poder aliciador da fé, capaz de seduzir, aglutinar e alienar as pessoas desavisadas, e que se encontram à margem da sociedade,em busca de um refúgio.
                        A segunda peça encenada foi Festa das Alagoas, cuja montagem se deu pelos alunos do antigo Curso de Formação do Ator da UFAL, hoje Escola Técnica de Artes – ETA. Nessa época, a UFAL tinha um Circo Cultural, que se encontrava armado na praça Sinimbu, e ali, naquele ambiente circense, foi realizada a temporada, com uma afluência de público bem significativa.
                        A terceira peça foi A Farinhada, cuja montagem foi feita pelo Grupo Teatral Joana Gajurú um grupo especializado em teatro de rua e que, contrariando sua tradição, a levou para o Teatro de Arena, tendo passado bastante tempo em cartaz, viajado por várias partes deste país e obtido grande sucesso de público e crítica durante a temporada e por todos os lugares onde se apresentou.
                        Da quarta peça encenada nada podemos falar a respeito, porque nos encontrávamos residindo fora do estado. Uma noite em Tabaris, escrita em parceria com Macleim Damasceno, gira em torno das prostitutas que povoavam o antigo bairro de Jaraguá.
                        Luiz Sávio de Almeida possui várias outras peças que não mereceram ainda, lamentavelmente, uma montagem. Há algumas de grande valor, escritas durante a ditadura, mas que precisariam de uma releitura para verificar se não ficaram perdidas no túnel do tempo, coladas demais à realidade: Libertad e Angola Janga. Outras, de igual nível artístico, estão aguardando uma montagem para que o público continue a desfrutar do prazer do texto saviano, sempre instigante e com sabor de denúncia social. Cito como exemplo algumas que me vêm à memória: El Tum Tum Tum del Corazón, uma comédia, na verdade uma fina ironia que ele faz consigo próprio, a partir de um episódio hipocondríaco que o levou ao hospital; a outra peça, também uma comédia, é um monólogo e se chama Zé Lodaro como pano pinico veio americano, que é um texto igualmente irônico, com um teor surrealista e que remete a suas origens, na cidade de Capela, em Alagoas e por fim Berratório a São Francisco em Fá de Fava.
                        Na verdade, falar da dramaturgia de Luiz Sávio de Almeida é falar de sua principal característica, seja na vida ou na arte, que é a ironia. Seus textos, de uma forma geral, possuem esse teor, e justamente por isso inserem-se no rol da literatura mais arguta, porque questionadora, que revolve os alicerces da sociedade, demole a hipocrisia da classe dominante e rasteja junto com os miseráveis de seu tempo.
                        Trata-se, portanto, de um dramaturgo da melhor qualidade, cuja produção literária em muito contribui não apenas para o aprimoramento do nível artístico de quem o encena, mas sobretudo para proporcionar ao espectador a possibilidade de deleite com uma obra inteligente, instigante, alegre e emocionante.

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