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domingo, 18 de outubro de 2015

Fátima Maria Lyra Cavalcante. A cidade em tensão

Este material foi publicado em Campus, O Dia, nº 137


Fátima Maria Lyra Cavalcante é advogada especialista em direito público, lecionou as disciplinas de direito administrativo e direito constitucional na Faculdade Raimundo Marinho em Penedo e atualmente é Mestranda em Direito Público na Universidade Federal de Alagoas.


A cidade em tensão 
  
Maceió: desenvolvimento e exclusão social

A cidade de Maceió nasce tímida, em meio a uma Alagoas rural. Nem a doação de terras a Antônio Manuel Duro nem o Engenho Maçayó foram capazes de impulsionar o seu crescimento. O Porto de Jaraguá foi responsável pelo desenvolvimento da cidade, graças a sua posição estratégica para a defesa militar e para o atracamento das embarcações. Com o tempo, as mercadorias produzidas no interior de Alagoas, então escoadas pelo Porto do Francês, passaram a sê-la pelo Porto de Jaraguá, assim como o abastecimento dos produtos que aqui não eram feitos. É com essa posição de entreposto comercial que Maceió incitava a vida urbana.
Com o desenvolvimento enquanto cidade, faziam-se sentir em Maceió necessidades urbanas: ruas precisavam ser alargadas e calçadas, pontes precisavam ser edificadas para facilitar a mobilidade,  praças e passeios públicos precisavam ser construídos para que a sociedade maceioense usufruísse momentos de lazer, as repartições públicas precisavam sediar-se em prédios próprios. A “cidade está em festa”, como o diria Henri Lefebvre – festa nas residências e nos clubes, festas promovidas pela igreja. Teatros, cinemas, grêmios.
Contudo, para que uma parcela da sociedade pudesse viver a “cidade em festa”, outra parte precisou se submeter a alguns desmandos. Assim, para que ruas fossem ampliadas, as casas mais humildes foram demolidas e em seu lugar ruas embelezadas surgiam. Para que as praças e passeios públicos fossem construídos e servissem de lazer à alta sociedade, os socialmente excluídos foram expulsos daquele local. Para que a Pajuçara despontasse como zona residencial da aristocracia maceioense, os pescadores que ali habitavam foram direcionados para a Ponta da Terra. Quer dizer, a urbanização de Maceió promovia-se de forma seletiva, criando espaços privilegiados para uma parte específica da sociedade.
A população maceioense incrementava-se, mas não em razão da indústria, como ocorreu com outras metrópoles. De início, as pessoas eram atraídas pelas oportunidades de trabalho criadas pelo comércio, mas a concentração populacional de Alagoas ainda estava no campo. Somente a partir da década de 60 e seguintes, com uma grande crise sucroalcooleira sofrida no Estado, Maceió recebeu uma grande leva de migrantes, mas sem estar estruturada para acolhê-los.
A base da economia alagoana entra em crise, promovendo desemprego em massa. A legislação trabalhista torna-se mais favorável aos camponeses e, com isso, muitos são expulsos de suas casas pelos patrões, que não queriam cumprir com as conquistas trabalhistas.
Esses camponeses chegam a Maceió precisando de um lugar para morar e de meios que lhes garantissem a subsistência. O lugar que lhes foi destinado não era a parte urbanizada da cidade, dotada de mobilidade e serviços, a “cidade em festa”. Foram-lhes destinadas as grotas e encostas, vazios urbanos impróprios para uma moradia sadia, mas o local encontrado para se estabelecer. Da mesma forma, poucos foram aqueles que conseguiram se inserir no mercado formal de trabalho. É nesse contexto que surgem as favelas de Maceió assim como o incremento da informalidade de emprego.
A partir dessa situação, Maceió passa a se preocupar com políticas habitacionais voltadas à população de baixa renda e a parte alta da cidade foi o espaço escolhido para esse fim. Não a Pajuçara, Ponta Verde ou Garça Torta. Essas regiões já estavam reservadas para a mesma parcela privilegiada da sociedade e para um determinado nicho de mercado.
A própria legislação municipal reconhece o fato e com ele corrobora. Basta analisar o Código de Urbanismo e Edificações de Maceió para identificar as áreas destinadas à habitação de interesse social (e que coincide com a obrigatoriedade de baixa verticalização): Trapiche, Vergel, Chã da Jaqueira, Cidade Universitária, Clima Bom, Santos Dumond, Mutange, Feitosa, Jacintinho, Tabuleiro, Ponta da Terra, Santa Lúcia, só para citar alguns bairros. Em contraposição, a nova área nobre da cidade – Guaxuma, Jacarecica, Garça Torta – não comporta habitação de interesse social (aí há a previsão para verticalização alta, com máximo de 15 e 20 pavimentos). Esses últimos bairros fazem parte da macrozona de estruturação urbana, enquanto a macrozona prioritária para a infraestrutura engloba o Clima Bom, Petrópolis, Santa Lúcia, Tabuleiro, Feitosa, Jacintinho e região lagunar (as mesmas áreas destinadas à habitação de interesse social). Entretanto, um breve passeio pela cidade sorriso é suficiente para perceber onde efetivamente a infraestrutura é prioritária - onde a “cidade está em festa”.
De cidade portuária e comercial à cidade turística, Maceió se desenvolveu de uma maneira excludente, reservando espaços privilegiados para uma determinada parcela da sociedade ao revés de uma população carente. E o que é pior – essa lógica permeia as normas municipais. É um cenário desafiador para as comunidades carentes, movimentos sociais, acadêmicos e para o próprio poder público que se veem, agora, diante da oportunidade de discutir os problemas urbanos de Maceió e incorporar soluções discutidas em conjunto em um novo Plano Diretor.

17 de junho de 2015: a  desocupação da Vila dos Pescadores de Jaraguá

Jaraguá amanhece o dia 17 de junho de 2015 com um aparato militar e policial destinado à desocupação “pacífica” dos moradores da histórica vila dos pescadores. A praça foi tomada pela imprensa, movimentos sociais, acadêmicos, enfim, pela sociedade civil organizada que acompanhou de perto a remoção.
Dentre as famílias removidas, 25 delas tinham assegurado o direito de ter um apartamento no conjunto habitacional no Trapiche, mas havia cerca de 100 famílias sem destino, dentre pescadores que viviam na vila há gerações e outras sem vínculo com a pesca e que há pouco tempo ali estavam.
No dia da desocupação, a Prefeitura ainda procurava uma escola para alojar provisoriamente as pessoas removidas, a equipe de assistência social cadastrava as famílias para que fosse concedido aos seus chefes uma auxílio-moradia (R$ 250,00 mensais por 3 meses). As famílias que foram para os apartamentos reclamavam da falta de estrutura: alguns deles tinham portas e janelas depredadas e em outros não havia fornecimento de água e energia.
Diante desse cenário, nos questionamos: mesmo que se entenda pelo direito do Poder Público em desocupar aquele terreno, é razoável deixar as famílias numa situação tão precária? As normas jurídicas brasileiras permitem a desocupação de uma área sem que haja um planejamento prévio sobre o destino das pessoas que ali residiam?
Este breve artigo não tenciona analisar os motivos que culminaram na decisão judicial autorizadora do ato. Pretende-se refletir sobre o modo como essa decisão se concretizou e se haveria um modo alternativo de cumprir com a determinação judicial de forma menos agressiva.
Bem, somos um país que se orgulha de ter uma Constituição Cidadã, uma das mais avançadas em termos de direitos fundamentais em todo o mundo, dentre os quais podemos apontar a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança, à intimidade e a proibição de ser submetido a tratamento desumano degradante. Mas, de outra banda, temos um direito processual (aquele que disciplina o desenvolvimento do processo judicial) voltado à proteção da propriedade. Não só o direito processual, mas a própria formação dos profissionais do direito é focada no resguardo da propriedade individual. Ainda não se conseguiu incutir nas faculdades de direito um pensamento direcionado à proteção dos bens difusos e coletivos e isso se reflete na nossa legislação e nas tomadas de decisão.
O projeto do novo Código de Processo Civil recebeu emendas para se incorporar nos procedimentos de desocupação (as chamadas ações possessórias) normas do 7º Comentário do Conselho de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, que versa sobre despejos forçados, mas elas não foram aceitas. Prazo suficiente e razoável para a notificação de todas as pessoas que serão desalojadas com todas as informações sobre o despejo e a garantia de que o Estado providenciará uma moradia adequada para elas foram algumas das normas rejeitadas pelos nossos parlamentares, para resguardar as pessoas em vias de ser removidas de suas casas.
A incorporação de normas dessa natureza nos procedimentos das ações que envolvem as desocupações em massa, em muito auxiliaria a construção de decisões que simplesmente determina a remoção das pessoas sem atentar para as condições que elas terão de enfrentar. Mas, apesar de não existirem normas expressas no direito brasileiro que discipline essa situação, como no caso da vila de Jaraguá, nosso ordenamento jurídico é formado por um feixe de princípios que, partindo da dignidade humana, asseguram que essas pessoas tenham um tratamento humanizado.
Assim, já existem raras decisões judiciais que condicionam a remoção a um planejamento prévio de como se dará o reassentamento das famílias. E isso faltou na decisão que autorizou a remoção dos moradores de Jaraguá. Um plano de logística prévio, elaborado pela Prefeitura em conjunto com as famílias, com supervisão do Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União deveria ter sido o mínimo a se fazer antes da desocupação. O quantitativo das famílias, onde elas seriam reassentadas, a continuidade da vida escolar das crianças, do Ponto de Cultura, dos rituais do templo de matriz africana e do trabalho das pessoas poderia ser algumas das questões a ser tratadas no plano de logística prévio.
A partir do caso da vila dos pescadores de Jaraguá, nos questionamos sobre a primazia que a inviolabilidade do direito à segurança, à intimidade, à vida privada, à proibição do tratamento degradante deveria ter em face do direito de propriedade ou, pelo menos, uma tentativa em se equilibrar tais direitos. Parece que é mais cômodo aplicar o regramento de um Código de Processo, cunhado na ditadura militar, do que interpretá-lo com os valores da Constituição Cidadã.
O dia 17 de junho de 2015 reflete bem essa preferência: o poder de propriedade do Estado prevaleceu face aos direitos existenciais daquelas pessoas.
 

Bruna Mayala. “Espaço urbano”: nova moeda de troca do capitalismo

Esta matéria foi publicada em Campus, suplemento do jornal O Dia, editado em Maceió, nº 137, 11 a 17 de outubro de 2015
Urbanism. Capitalism. Urban space.
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Bruna Mayla é graduanda em Direito pela Universidade Federal de Alagoas e pesquisadora vinculada ao Núcleo de Estudos em Direito Internacional e Meio Ambiente (NEDIMA). Atualmente realiza estudos na área ambiental e urbanística.



 “Espaço urbano”: nova moeda de troca do capitalismo



Vivemos em uma sociedade dominada pelo constante e acelerado fluxo de pessoas e de mercadorias, marcada pelo consumismo e inserida no contexto do modo de produção capitalista. Mas o que seria capitalismo e quais seriam os seus impactos no âmbito do espaço urbano? O capitalismo é um processo histórico, intensificado entre os séculos XV e XVIII, geralmente associado a um modo de produção e de exploração do homem pelo homem, ou seja, um sistema em que uma classe social compra a força de trabalho de outra classe social, transformando-lhe em mercadoria, com a finalidade de obter o que chamamos de lucro. Para que este lucro seja aumentado, separa-se então o trabalhador dos meios de produção, recursos naturais e da própria mercadoria produzida.  Desse modo, como afirmam Lessa e Tonet (2011) “a sociedade se converte em um enorme mercado e tudo passa a ser mercadoria”.

Desde os primórdios da humanidade, a terra tem sido utilizada como meio de subsistência do homem, que nela habitava, produzia e dela retirava seu sustento. Entretanto, com o capitalismo ela transforma-se em um bem a ser alienado, ou seja, têm-se a terra como “coisa” a ser comprada ou vendida, e no tocante ao Brasil, desde que foram distribuídas as sesmarias, no século XVI, torna-se perceptível tal possiblidade. Desta maneira, o processo de desenvolvimento capitalista com o passar do tempo sai do campo para também alcançar as cidades, nas quais a terra é substituída pelo “espaço urbano”: lugar de consumo e a ser consumido, como afirma Lefebvre.

É esse “espaço” que integra os circuitos de valorização do capital, seja por sua transformação em mercadoria intercambiável, por seu parcelamento (por loteamento ou por ver­ticalização), ou por sua crescente inclusão nos circuitos de circulação do capital finan­ceiro. É nesse contexto que as cidades estratificam-se, fragmentam-se e dividem-se. Cada vez mais organizadas em função da crescente especulação imobiliária, que as estrutura de modo a atender os anseios das classes que exploram a renda dos espaços urbanos. Como Harvey, acertadamente, afirma: “a qualidade de vida urbana virou uma mercadoria. Há uma aura de liberdade de escolha de serviços, lazer e cultura – desde que se tenha dinheiro para pagar”(2011).

Nesse processo, o “espaço construído” e o solo criado de bens imóveis passam a ser “bens móveis”, que circulam através dos títulos de propriedade que a cada momento podem ser transformados em valor. Valor que aumenta na proporção das melhorias que são realizadas no próprio bem ou no espaço ao seu redor, como no caso da construção de shopping centers, empreendimentos de turismo e la­zer, centros empresariais, grandes condo­mínios, hotéis e flats. Nesse sentido, será o próprio Estado, com fundamento no direito urbanístico e nas políticas urbanas, que visando atender aos interesses das elites, realiza grandes operações de (re)arranjo espacial, (re)criando “novos” espaços que sirvam à lógica da circulação do capital. Nesse intuito não é incomum observar estratégias de “higienização” em certas localidades, são os casos das tentativas de remoção da “Favela do Lixão” e da recente remoção da comunidade tradicional da Vila de Pescadores do Jaraguá, na qual os direitos à cidade e à moradia de uma coletividade foram subvertidos em nome de direitos à paisagem e lazer de futuros ocupantes da orla do Jaraguá. É assim, que se mantem a cíclica produção capitalista do espaço, que de comum há a crescente segregação socioeconômica e cultural da cidade.