Translation

quinta-feira, 11 de junho de 2015

MOTA, Melissa. Memória e retalhos das Alagoas

Este texto foi publicado em Campus, suplemento do jornal O Dia, Maceió, 7 a 13 de junho, 2015, nº 119, p. 3




 
Melissa Mota

Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo (UFAL - 2001) e mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA/UFAL - 2005). Atualmente é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas do Espaço Habitado e integrante do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem (FAU/UFAL).



 Dois dedos de prosa

               Ensino uma disciplina chamada Formação do Espaço Alagoano em programa de Mestrado mantido pela Universidade Federal de Alagoas; os alunos são pessoas diretamente envolvidos nos trabalhos acadêmicos ou que desejam participar de uma pósgraduação.  No primeiro caso, são mestrandos e doutorandos e, no segundo, temos os chamados alunos especiais. Geralmente peço que – a pessoa desejando – me entregue toda semana, observações que fizeram  sobre o cotidiano,  tanto no viés atual, quanto no campo da memória.
               Além de achar curioso o que era apresentado, eu tinha a certeza de que preparava um presente para o futuro. Já pensou,  quando um historiador encontrar um pacote com uns 300 textos deste tipo? Daria um belo escrito.  Agora, decidi  partilhar o acervo,  publicando, vez em quando, alguns dos textos.
Hoje, Campus traz uma doutoranda (Melissa) e uma aluna especial (Myllena), belos textos. Vamos ler! Discutir e ver o jogo entre a memória, o tempo, a observação.
Um abraço
Luiz Sávio de Almeida.




Cortes e recortes: história e memória
Luiz Sávio de Almeida

O óbvio merece, vez em quando, uma visita.  Decorei isto e não sei quem  é o autor e segue uma pérola obviana: inegavalmente,  todos temos o que dizer sobre a vida.  São as experiências, as visões, as explicações que vão sendo construídas ao longo de anos. E, engraçado, pensam que somente velhos podem falar em memória. Qualquer que tenha vivido, mesmo que amortecido, tem condições de olhar para si mesmo e pinçar do tempo sus recuerdos. Interessante, é que se pode tomar a envergadura da sociedade e reduzi-la em escala,  dando-se posse do andamento da história ao especificá-lo quando se diz: no meu tempo era assim.  É um pouco o que faz a Melissa olhando para o passado, é um pouco o que faz Myllena andando pelas ruas e até mesmo pensando no que seria arquitetura.
Esta expressão no meu tempo era assim é muito rica e sugestiva.  A posse de um tempo pode torná-lo em narrativa,  em enunciados...  Há uma cátedra sobre a qual o sujeito se senta e diz como era a vida,  não esquecendo que ele recorta, escolhe e determina como era. Os caminhos da memória e da recordação são fantásticos,  extraordinários e, na realidade,  imprevisíveis.
Convivo com um grupo de alunos meus: alguns estão se preparando, outros fazem mestrado e outros,  doutorado. Bateu a curiosidade! Tendo liberdade de escolha, sem qualquer preocupação de forma, conteúdo, o que desejariam escrever como observações de vida? O que estariam vendo sobre o passado, o que poderiam ver sobre o agora e como estariam vendo o próprio futuro?  Julguei ser uma bela aventura, poder verificar os caminhos tomados e deixar mais um depoimento para o futuro, pois afinal de contas seriam  pesquisadores que se iriam debruçar sobre Alagoas.
As duas selecionaram retalhos, com Melissa privilegiando relações familiares e uma história de vida, enquanto Myllena encontra novos viventes de Maceió e problematiza em torno de arquitetura, jogando suas preocupações que ainda necessitarão anos de elaboração, desde que ela se encontra no início de tudo, no começo mas demonstrando que deseja discutir, entender, provocar.  São, como dissemos, caminhos e, interessante, cada pessoa tem mais de um, bastando querer multiplicar-se. E  você? Quais são os seus caminhos?  Já desejou multiplicar-se? Quem sabe você tem muito a dizer? Sua vida está passando, o mundo girando e seu sentido de tempo também. Cuidado para não ficar amortecido.



Memórias e  retalhos das Alagoas
Melisssa Mota

Nasci sob a religião católica, filha de pais e avós católicos, todos eles. Assim, a tradição do preparo da comida da Semana Santa, em especial da Sexta-feira da Paixão, à base de coco e frutos do mar, sempre estivera presente na minha vida e me acompanhou desde a infância. A isto, vem somar-se o fato de eu sempre ter nutrido paixão pelo ato de cozinhar, principalmente nos momentos em que existiam muitos envolvidos no processo, como eu, minha mãe e minha avó, três gerações juntas, na cozinha de casa, sob o comando da matriarca.
Nesta época do ano, íamos para a casa de praia dos meus avós maternos, no Pontal de Coruripe, uma praia distante cerca de 100 quilômetros de Arapiraca. A casa ficava lotada de primos e tios e as especialidades da região eram servidas a partir do café da manhã. Vovó ia à feira de Coruripe na véspera, e trazia pés-de-moleque, má-casadas, pão fresco e em casa ainda eram confeccionados: cuscuz de milho com coco ralado e leite de coco para molhar o prato, cuscuz de massa puba com coco, para o qual a melhor companhia eram as pilombetas de Penedo, fritas no óleo quente e mungunzá temperado com cravos da índia e pau de canela.
As pilombetas, pequenos peixinhos do rio São Francisco, merecem um parágrafo à parte. Eram enviadas de Penedo para Arapiraca, por minhas tias-avós, Florize e Helena, irmãs do meu avô materno, José Mota. Finamente tratadas e salgadas, nos dias que antecediam a Semana Santa.
Depois do café, que tinha até pilombeta frita, íamos à cozinha, hora do preparo do almoço. Além da vovó, da mamãe e eu, Lenisse, uma exímia cozinheira de frutos do mar, juntava-se a nós. Ela era esposa do “Ouricuri”, um pescador que cresceu na praia e era amigo de infância da minha mãe e tios.
Tudo começava com a escolha do peixe, fresco, que era trazido pelo Ouricuri. Além de todos os outros ingredientes que minha avó adquiria na feira de Coruripe ou mesmo em Arapiraca. Eram servidos: peixe ensopado no coco com pirão, posta de peixe frito, camarão no coco, arroz de coco, feijão de coco e bredo cozido, prato este que era servido apenas neste período do calendário religioso.
Depois do almoço, era servida uma variedade incrível de compotas de frutas, todas preparadas pela minha avó: doce de cajú, doce de leite, doce de mamão, doce de banana, doce de goiaba em calda e ainda suspiros e bolos. Estes eram levados prontos para a casa de praia, feitos com antecedência pela vovó e suas ajudantes de cozinha, na semana que antecedia a ida dela à praia. Todo o período da quaresma era vivido pela minha avó participando de diversas atividades religiosas na igreja, em novenas que percorriam as casas das amigas dela e na distribuição de quilos de bacalhau, como ato de caridade, na porta da sua casa.
Hoje, relembrar as tradições culinárias e familiares que faziam parte do meu cotidiano na Semana Santa, me fazem refletir sobre a importância da comida e do ato de prepará-la e atribuir-lhe significados diversos.
Foi ainda na infância, que surgiu o meu interesse pela cozinha e pelo ato de cozinhar. Tive duas influências fortes: minhas avós Detinha e Júlia. 

Penedo
A primeira, avó materna, nasceu e viveu os seus 76 anos em Arapiraca, cidade localizada na região agreste de Alagoas. Morava em uma casa muito grande, moderna, projetada por um arquiteto de Recife – era isso que ela dizia, mas nunca soube o nome do tal arquiteto. A casa possuía várias alas e as áreas destinadas ao preparo da comida eram os mais incríveis.
A primeira cozinha possuía um belíssimo fogão dos mais modernos. Este era pouco usado. Também possuía uma despensa para utensílios, e do lado direito, separado por uma meia parede, uma mesa enorme onde a família se reunia para fazer as refeições. Vovó teve 7 filhos e eu sou a neta mais velha. Ao lado da mesa havia uma grande estante cheia de guloseimas, sempre. Doce de leite de bolinha, doce de caju com calda, doce de banana em rodelas – todos feitos pela minha avó – queijo do reino para acompanhar as doçuras, bolo xadrez e, se depender da minha memória gustativa, a lista poderá continuar crescendo indefinidamente.
A segunda cozinha, esta sim era muito utilizada. Possuía um grande paneleiro, uma mesa para manusear os alimentos, um grande balcão com pia e armários e mais duas despensas. Uma para os mantimentos e a outra para guardar coisas em geral e produtos de limpeza. Foi na mesa da cozinha da vovó Detinha que eu escrevi meu primeiro livro de receitas, aos 7 anos de idade. 
Penedo: Convento
 Saindo deste espaço, íamos para o primeiro quintal, onde havia um fogão à lenha. Passávamos por várias plantas e algumas árvores frutíferas e, finalmente, chegávamos a uma porta de madeira que dava acesso ao segundo quintal. Mais frutíferas e alguns animais que ela criava: cágados, pombos, galinhas, galos, capotes.
Gostava de plantar, colher, ir à feira diariamente para comprar as carnes frescas e os temperos, moídos na hora, que eram apilados e misturados a outros ingredientes – magestosamente – por suas mãos fortes. O fundo do terreno, no segundo quintal,  dava para a rua da feira. Era por uma pequena porta que o mundo dos aromas e sabores se descortinava para mim. Sempre que eu ia visitá-la, a acompanhava cedinho até a feira. Momentos únicos de experiência sensorial.
A segunda, vovó Júlia, nasceu em Rio Largo e foi morar em Maceió aos 18 anos de idade, onde viveu até completar os seus 96 anos. Uma longa existência compartilhada com 6 filhos, umas 3 dúzias de netos e não sei quantos bisnetos.
Era uma mulher urbana. Morava ao lado da praia da Avenida, numa casa pequena, sem jardim e sem quintal, e era também na sua pequena cozinha que havia um fogão muito antigo, mas em excelente estado de conservação, que a vovó preparava as maiores delícias. Ia ao supermercado dia sim, dia não, a pé, carregando seu carrinho de feira. Os sábados eram marcantes pelos banquetes-almoços. Além do meu pai, com minha mãe e irmãos, sempre apareciam mais familiares, atraídos pelas muitas gostosuras da vovó: os bolinhos de bacalhau que fazia às centenas, sem exagero nenhum, e deixava na urupema para escorrer o excesso do óleo da fritura; a feijoada de feijão mulatinho com muito paio e pedaços de ossos com tutano; o siri de coral no coco, serrado ao meio; o sururu de capote e a pituzada. Isto para citar apenas alguns pratos da sua culinária de mãe.
Devo às duas, vovó Detinha e vovó Júlia, o prazer que sinto em estar na cozinha, em saborear alimentos e repetir suas receitas com gosto de saudade.
A atração que sinto pelas águas, pela arquitetura, pelos espaços, são reflexos de tantas coisas, e uma delas devo à minha história com Penedo.
O Velho Chico levou minha família através de suas águas, para a cidade de Penedo; onde não poderia deixar de ver uma parte de mim construída lá. São Francisco, o convento, o hotel, os barcos, todos eles fizeram a pessoa que sou hoje.
É como se não só Penedo, mas as outras tantas cidades banhadas pelo rio, trouxessem para cada uma delas, suas histórias misturadas com tantas outras, com minha vida, com o que vou construir daqui pra frente. Minha história com Penedo, portanto, remonta a outros tempos.
A autora
Meu avô materno, José Mota, falecido em dezembro de 2010, morou durante a maior parte da sua vida em Arapiraca. Nasceu em Traipu, município assentado sobre uma pequena colina às margens do São Francisco e distante 67 quilômetros da cidade de Penedo, para onde meu avô partiu. Isso aconteceu no dia 18 de dezembro de 1933, contando com 13 anos de idade. Viajou de canoa, junto com seus irmãos e seus pais. As expectativas de todos eram muitas, o que os levou a seguir viagem pelo caudaloso São Francisco e a constituir nova morada na vibrante Penedo.
Depois de se alistar ao exército e seguir rumo às aventuras da guerra, vovô Zé Mota (como era chamado pelos netos) adoeceu no “front” e foi mandado de volta para Alagoas, logo vindo a se estabelecer no ascendente comércio de Arapiraca. Seus outros irmãos permaneceram em Penedo.
Mas, apesar de ter nascido em Traipu e de ter se estabelecido, já na idade adulta, em Arapiraca, sua relação de pertencimento a um lugar, a um território, sempre foi clara. Era à Penedo. E eu, a neta mais velha, tive o prazer de crescer fazendo visitas aos meus tios avôs, ao mini zoológico da Praça Santa Luzia, ao Restaurante da Rocheira... e como foi grande o meu susto ao avistar, pela primeira vez, o jacaré moqueado! Mas depois me acostumei com o tradicional prato da culinária penedense e passei a saborear a iguaria.
Tempos depois, ingressei na faculdade de arquitetura e, em seguida, fiz o mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente, estudando os registros dos viajantes holandeses que Maurício de Nassau trouxe em sua comitiva, ainda no século XVII.  Assim, revisitei as paisagens de Penedo nas obras de Frans Post e Albert Eckhout, um regozijo! Lindas imagens do Brasil Colonial.
Por sorte, ainda durante o mestrado, surgiu um edital de concurso para a Prefeitura de Penedo e, para a minha surpresa, havia uma vaga para arquiteto. Coisa rara. Resolvi estudar pra valer. Era um sonho “voltar” a Penedo e trabalhar lá, com arquitetura.
Passei! Era então a arquiteta do município de Penedo! Lembro que quando contei para o meu avô, ele passou a repetir com mais frequência as suas histórias de saudade de Penedo, que agora passaria a ser muito mais próxima da minha própria história.


 










Nenhum comentário:

Postar um comentário