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terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Eliana Cavalcanti (I). Memória e cotidiano. Viventes das Alagoas








A ARTE DE REMONTAR BALÉS


   Eliana Cavalcanti


 
   Tive oportunidade, ao longo da minha adolescência e início da minha idade adulta, de dançar algumas peças do repertório clássico mundial, como “Giselle”, “O Lago dos Cisnes” e “Les Sylphides”, pois esses eram os clássicos mais dançados àquela época. Com o advento do videocassete, pude assistir a grandes obras de que antes só tínhamos conhecimento através dos livros. E foi assim que no início da década de 1980 conheci “La fille mal gardée”. Passei a sonhar com a remontagem dessa obra que de imediato havia me fascinado. Com a nossa escola ainda engatinhando e a minha maturidade artística ainda a se fortalecer, deixei aquele sonho para a posteridade. Vez por outra ele emergia, e eu o enterrava novamente, sem, no entanto, sufocá-lo. A meta era uma montagem abalizada. Não sou afeita a aventuras e tenho como princípio não me expor nem expor os nossos alunos. Tudo tem o seu tempo certo. Nada de colocar o carro adiante dos bois.  Sou assim com o programa a ser aplicado em sala de aula, com a hora certa do uso das sapatilhas de ponta etc. A responsabilidade para com o aluno e o público e o compromisso com a ética devem ser considerados como condição sine qua non numa escola de qualidade. 


   
  Em fevereiro de 2015, estava decretada a sentença: remontaríamos “La fille mal gardée”. Com as rédeas seguras, iniciamos a pré-produção, ou seja, a versão que alimentaria a nossa pesquisa e a escolha dos personagens principais. A adaptação à obra seria inevitável, pois, como entrariam as muitas turmas da escola com seus mais variados níveis? Foram então criados papéis que não fugissem do contexto. O próximo passo, o mais difícil, foi escolher músicas que se harmonizassem perfeitamente à partitura original da obra. Seria um terreno por demais movediço tentar misturar épocas e estilos de música sem ferir a sensibilidade auditiva de uma plateia que, por respeito, considero sempre entendida. Um passo importante nessa pré-produção foi a arquitetura do um roteiro lógico, seguido da escolha das turmas que fariam os personagens extras. 
 

    Há uns quatro anos ou mais, levei alunos para um grande festival nacional. E nosso aluno Emerson Mateus, por iniciativa própria, quis apresentar a variação que preparei para ele diante de dois coaches, prática comum horas antes do concurso, quando esses mestres observam e dão suas dicas finais. Antes do Emerson, apresentou-se uma mocinha. Ao final de sua apresentação lhe perguntaram, com expressão de indignação: “Minha filha, quem lhe passou essa variação? Quem é a sua professora?”. E a menina apontou para uma jovem senhora que estava por perto. Um dos coaches, dirigindo-se àquela professora, indagou: “De onde você tirou essa versão?”. Ela, desconcertada, falou tão baixinho que eu não ouvi sua resposta, mas reparei o seu vexame, o seu rubor. E os mestres balançaram suas cabeças como numa coreografia ensaiada, em desagravo àquela aberração estilística. 



  “La fille mal gardée”, que pode ser traduzido como “a filha malcriada”, é o balé mais velho do repertório dançado nos teatros pelo mundo afora. Originalmente, ele foi concebido e coreografado por Jean Dauberval, um importante coreógrafo do século XVIII. Sua estreia aconteceu na França, exatamente em 1789, ano da Revolução Francesa. Apesar de eu nunca ter lido algum comentário sobre a possível ligação da obra com os ideais da Revolução (liberdade, igualdade e fraternidade), pessoalmente acredito que eles estão sim, inseridos nessa história, ainda que de maneira inconsciente, afinal, em grandes momentos da História, o consenso comum se agiganta. A viúva Simone, tradicionalmente interpretada por um homem, representa a autoridade e a força, mantendo sua filha trancada. A liberdade é o que a filha almeja, e o tempo inteiro tenta fugir e se rebelar contra o jugo da mãe, castradora dos seus anseios. No final do espetáculo, empregados, patrões, ricos e pobres se dão as mãos e saem dançando, numa grande ciranda de confraternização, após a derrota da mãe, que sucumbe ao apelo da filha e das demais personagens.




   Escolhi a versão de 1960, de Sir Frederick Ashton (Royal Ballet de Londres), a favorita do público há mais de 50 anos. Trata-se de uma comédia romântica com rica coreografia e muita pantomima, o que dá ao bailarino a possibilidade de se apresentar como um artista completo: um intérprete, e não um mero executante da coreografia.


  
Remontar um balé de repertório implica muito estudo, paciência e capacidade de observação aos detalhes. É preciso conhecer a história do balé, a época em que a obra foi criada e o seu estilo. Não dá para remontar obras sem essa consciência. Preservar a memória desses balés sem descaracterizá-los, sem macular o seu estilo, sem fazer uma caricatura grotesca da obra, é um grande desafio. Tenho certeza de que essa oportunidade foi grandiosa para mim como foi enriquecedora e inesquecível para os nossos alunos que se engajaram na pesquisa e deram conta do recado. Conclusão: sensação de missão cumprida e um antigo sonho realizado.
                                                                                          


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