Translation

sexta-feira, 22 de janeiro de 2016

Mônica Carvalho de Almeida. O cara lá de cima. Memória e Cotidiano. Viventes de Alagoas. O direito a ser diferente.




homofobia, l'homophobie, omofobia, homophobia, 
 

Graduada em Serviço Social pela ULBRA. Atualmente cursa o Mestrado em Sociologia pela Universidade Federal de Alagoas-UFAL e  Especialização - Gênero e Diversidade na mesma Instituição de Ensino Superior. Desenvolve Pesquisa no Campo das Questões Étnico-raciais, especificamente as Relações entre Estado e Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana. 
Atuou no Sistema Socioeducativo do Estado de Alagoas com adolescentes privadas(os) de liberdade; assumiu em 2009 a Gerência de Direitos da Mulher da Secretaria Estadual de Direitos Humanos e foi responsável pelo planejamento dos Projetos pactuados com a União, no Enfrentamento à Violência contra a Mulher. Em 2011 assume a Gestão do Centro de Referência em Cidadania e Direitos Humanos do Estado de Alagoas e atua no atendimento às Populações Vulneráveis (LGBTs e Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana). No período de 2014 a 2015 compõe o quadro de colaboradores da gerência de Diversidade da Secretaria de Estado da Educação do Estado de Alagoas.


 
O CARA LÁ DE CIMA
Mônica Carvalho de Almeida
(Para Ulisses Rafael e Graça Cabral)

Eu tinha seguramente 11 anos de idade e, nesta época,  a minha maior diversão era andar de patins, daqueles de 4 rodas e neste dia que deveria ser um sábado ou domingo – , pois minha avó tinha deixado eu andar na rua, isto só acontecia quando não tinha movimento de carros –,  resolvi  sentar em uma mureta que ficava em frente à guarita para descansar e ouvi o pessoal que trabalhava no prédio conversar:

Homem 1 – Mataram o cara lá de cima na semana passada.
Homem 2 – Mataram como?
Homem 1 – Como mata gente que nem ele.

Ouvi aquilo e pensei primeiro: existe um jeito certo de matar as pessoas, cada pessoa deve ser morta de um jeito. Logo depois me perguntei,  quem é o cara lá de cima? Lá em cima, só poderia ser as coberturas. Em uma,  era um casal muito importante das terras daqui e se fosse o marido do casal,  o prédio todo saberia. Na outra,  só morava mulheres: três irmãs e uma avó. Mas tinha um detalhe: um “cara” trabalhava lá. Era o Seu Rodrigues e eu gostava dele. Anos antes,  esse “cara” que tinha um “jeito certo” de ser morto por outros homens tinha convivido comigo e minha família e foi uma das pessoas mais legais que passou por minha vida. 
Então, qual era o “jeito certo” de matar o Seu Rodrigues? Quem eram essas pessoas que matavam outras como ele? Essa foi a primeira vez que, mesmo sem entender,  eu soube do ódio, ódio por alguém ser o que é; ódio por quem eu gostava. Ele foi o primeiro nesses 36 anos que separam esta história da data de hoje; quando escrevo, 48 amigos, conhecidos, colegas que arrodeiam minha vida foram assassinados de forma cruel; hoje eu sei que “jeito certo” era aquele.
Sou filha de um casal que trabalhava todo o tempo para que eu e minhas irmãs tivéssemos acesso àquilo que lhes era de valor, para isso, por muito tempo, eu e as meninas dividíamos nossos dias em escola e casa das avós. Eu gostava muito de nossa casa e preferia ficar lá, mas vamos combinar: não era seguro nos deixar sozinhas em casa, aquela região deveria ter naquele tempo apenas umas poucas 10 casas. Daí, por coincidência ou não,  a gente começou a ficar em casa quando certo rapaz foi trabalhar lá.
 Segundo minha mãe ele era cozinheiro de forno a fogão, lembro-me desse termo, e depois de ter perdido seu emprego num restaurante perto, só conseguiu trabalhar lá em casa. Olha, acho que falo do ano 1976 ou 1977. Se Maceió não é fácil hoje, imagina naquela época!
Depois de Seu Rodrigues,  vieram o Seu José, Leonardo, Wellington, Robson e o Zé (o Zé merece uma história só para ele). Lembro-me de cada um deles e de alguns amigos seus que se juntavam na porta de casa por volta das 17h. Eu adorava ouvir suas histórias; lembro-me de cada um deles e o quanto eram carinhosos conosco, o quanto respeitavam minha casa e do amor incondicional pelos bichos da casa (principalmente pela lebrinha) que Seu Wellington dedicava. 
A orientação sexual desses rapazes nunca foi invisibilizada por minha mãe e meu pai; muito pelo contrário, acredito até que era uma condição, a nossa consciência a respeito de suas orientações eram como ferramentas para que aprendêssemos, naquela casa, a ver o outro como um ser inteiro e digno de respeito.
 Então, a importância de Seu Rodrigues para mim é o fato de coincidir a chegada dele com uma maior permanência minha em casa e eu gostava muito disso. Brincávamos de assistir aos shows de Seu Wellington imitando Maria Alcina, de aulas de balé em nossa cozinha (eu dizia que era a Eliana Cavalcanti e eles meus alunos), onde o balcão era a barra e o papai sem saber com a música que ouvia fazia a trilha da história, enfim eu adorava o “cara lá de cima” e todos os caras que eu conheci naquela época em minha casa, não entendia como alguém pudesse matar “gente como ele”.
Dessa e outras fases eu trago uma admiração imensa pela mãe e o pai que tenho e fico aqui conversando com Hegel. Ele, Hegel, me diz sempre nos últimos dias que filho seria a síntese do amor, uma primeira fase do reconhecimento que nos leva ao entendimento de seu sistema de eticidade. Entendendo síntese como resultado de um processo onde a afirmação incondicional do amor é negada pelo processo de educação, então eu sou. Ainda conversando com Hegel para entender este seu sistema e todo processo da luta pelo reconhecimento, posso observar nesta história, dentro de minha casa, o reconhecimento do ”desses caras”  como sujeito de direitos. 
Este reconhecimento lhes era negado todas as vezes que eles se afastavam daquele muro de buganvílias coloridas e do "pinheiro" que subia para além do telhado de telhas coloniais da casa da Ponta verde. No sistema de eticidade de Hegel, todas as vezes que um reconhecimento é quebrado, quando a pessoa não é vista em sua integridade e totalidade na segunda fase do reconhecimento que são as normas jurídicas que promovem o equilíbrio social, mais ou menos isso, dar-se o crime. Essa quebra do reconhecimento promoverá um sujeito incompleto nas questões de segurança pessoal. E assim, passa-se a entender a Luta por Reconhecimento como um aproximar e afastar de valores que geram conflitos. O reconhecimento só se dá através de conflitos.
Pensar através da Luta por Reconhecimento de Hegel é necessário neste momento para pensar nas ações de políticas públicas específicas, no caso de nossa história, de políticas públicas específicas para a população LGBT e começar pela educação, uma educação que promova as questões da equidade social é vital. Falo isto agora por estar me sentindo bastante incomodada já há certo tempo por discussões vazias que segmentos religiosos cristãos, em especial a igreja católica sobre a educação inclusiva nas escolas, um movimento contrário que só legitima o discurso de ódio e ações de crimes como os que permeiam a minha vida. Veja bem, sou uma mulher que hoje sustenta 47 anos de vida e que de alguma forma foi vitimada pela homofobia 48 vezes, algo como uma perda para cada ano de vida e todas as vezes que isto acontece pensa que o “tratamento” a estes casos não deve ser focal e sim sistemático, aliado a educação formal para que esta entre em pauta na educação doméstica e assim eu e acima de tudo as famílias de meninas e meninos LGBTs tenham o direito pleno a convivência familiar duradoura, ao acesso a educação, ao trabalho e a vida.



2 comentários:

  1. Perfeito, uma colocação coesa para um pensamento complexo de forma super simples e accessivel. Parabens!!!! Orgulho de ser seu irmão...

    ResponderExcluir
  2. Mônica lindo texto... e realmente na escola existe mto conservadorismo

    ResponderExcluir