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sábado, 9 de janeiro de 2016

Luiz Sávio de Almeida. MINHAS LEMBRANÇAS SÃO UM QUEBRA CABEÇA : DISSERAM QUE NASCI. Memória e cotidiano. Viventes das Alagoas

 


MINHAS LEMBRANÇAS SÃO UM QUEBRA CABEÇA (I) : DISSERAM QUE NASCI

LUIZ SÁVIO DE ALMEIDA

              
Nasci em um pequenino lugar que ainda me agrada muito:  Rua Mato Grosso, na vizinhança mesmo da Praça do Rayol.  Meu pai casou na Capela, foi para Quebrangulo e de lá veio morar na Rua do Cravo. Depois foi para a Praça do Rayol e como estava caro, caminhou para a Mato Grosso. A casa continua  firme, embora modificada. Eu já havia perdido dois irmãos e um deles está no cemitério de Jaraguá;  nasceu morto, a tripa enrolada no pescoço.

                    Minha mãe contava tristonha sobre a tarde da saída do corpo. Era um enterro do meu pai sozinho com suas lágrimas que pareciam badaladas da Virgem Maria. Chovia. Ele caminhava com o caixãozinho debaixo do braço, como se nele repousasse a tristeza, no mais perfeito idioma capelense. Meu pai era duro, mas sentimental. Fico imaginando a chuva fina, a dor de uma mulher parida sem a cria, o homem com chapéu na cabeça, terno e um defunto de estimação em seus braços. Um defunto mirrado que nem tempo de vida teve e, portanto, um defunto enganado pelo destino.
               Não deu outra: nasci como peça de reposição; reposição de carinho. Devo ter sido arquitetado ainda na Rua do Cravo, sinal de que sou um cravense militante e alias, malgrado o que fizeram, ainda é uma bela rua de Maceió. Meu pai abriu a porta – é claro que não ia sair com ela fechada – e foi para o cemitério, coisa perto, dobrando à direita e meu irmão desapareceu na terra. Passados os meses de resguardo, os dois disseram: Fiat Sávio. E terminei nascendo, também, com a tripa enrolada no pescoço.
             
  Madrugada: duas horinhas da manhã. Tudo escuro; a cidade em black-out com medo dos submarinos alemães. Já pensou se os canhões apontassem para o Mercado?  Os bagos de jaca voando, a farinha de mandioca virando neve! Barbaridade! Era um atentado contra a identidade alagoana que, alguns dizem,  repousa muito no susuru.  Tudo escuro. No quarto, a minha mãe sofrendo, a Tia Nini acarinhando,  meu pai contando dinheiro para outro caixão e o Tio Lauro, pai do Radjalma Cavalcante, meu primo.
               Tio Lauro foi o escolhido: iria varar a escuridão em busca do médico. E foi e trouxe e eu fui arrancado a fórceps, já meio roxo e o pior de tudo: levava palmada e não chorava. Depois de um tanto,   o berreiro e todo mundo ficou feliz comigo chorando. Isso já dá um complexo da porra: como é que você está chorando e os outros rindo?  Tem jeito isso? O médico foi o Dr. Azevedo.
               E lá estava eu, fagueiro, destemido, um verdadeiro allegre vivace ou até mesmo molto vivace. E já fui embarcado para Capela com a minha mãe. Fui para casa da Tia Nini e passei uns três meses com ela,  pois meu pai estava, também,  depois de certo tempo, se aprontando para ocupar um cargo de contador da agência do Banco do Brasil em Pirapora, Minas Gerais, uma espécie de meu segundo estado, rivalizando com Pernambuco. Fiz a minha primeira viagem de trem.
               E fui batizado lá na Capela mesmo. Tia Nini era casada com o Dindinho Isais, pais do Padrinho Zé (José Edson) e Dindinha Leda. O nome da tia Nini sempre foi lindo para mim: Marguerita e dele fizeram Nini.  Os pais (Nini e Isais) foram meus padrinhos de apresentar e os filhos, meus padrinhos de vela.  Na minha família, sempre o padrinho era levado a sério e quase sempre buscava-se pessoa da família. E era uma série de salamaleques, desde a benção até o levantar imediatamente da cadeira para dar lugar a ele, normalmente com o Padrinho dizendo: “Precisa não, meu filho. Tá bom  assim!”, mas sentava.
              
Tia Nini era magrinha, com os cabelos abaixo da cintura, vestindo roupas das antigas, a roupa de chita a bem dizer com a manga comprida e bolsos na parte de cima. Costurava e bordava que era um pormenor de beleza. Ainda hoje tenho uma imensa peça de crochê que ela fez e que guardo na mesma caixinha onde ficavam a linha e suas agulhas. Usava óculos. Morreu e está enterrada longe do pai: está em Arapiraca. Era Filha de Maria e tinha uma voz mansa, mas quando alguém pisava nos calos, o negócio esquentava. Era o gênio da Dondon, sua mãe e minha avó, a velha Caetana Maria de Albuquerque.
 



4 comentários:

  1. Belo inicio professor Sávio Almeida. Aguardamos os próximo textos.

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  2. Adorei o texto, Sávio. Quando for possível, conte a trajetória de nossa avó Adelaide.
    Adorarei, tenha certeza.
    José Ferreira

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