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domingo, 22 de setembro de 2019

Culto afro-brasileiro: Tia Marcelina e o pintor Zumba (I)_


 Chamada
 Afro-Brazialian religion: history, memory and emotions
 Religione afro-brasiliana: storia, memoria, emozioni
 Religion afro-brésilienne: histoire, mémoire, émotions
 Religión afrobrasileña: historia, memoria, emociones
 Painter
Afro, Historia, Cultos, Artes, Memória, Pintor Zumba 

Jeamerson Santos



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Mestrando em Culturas Populares na UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE- UFS Especialista em Arte, Educação e Sociedade no CESMAC. 2014/2015. Graduado em Ciências Sociais- antropologia pela Universidade Federal de Alagoas UFAL 2013. Cenotécnico da Escola Técnica de Artes ETA / UFAL Área de pesquisa :Antropologia,Culturas Populares, Identidade,Educação, Preconceito Racial. Área de atuação : Cenografias,Ambientação cênica,Pintura artística,Direção de artes, Esculturas,movimento sociais. Coordenador Geral do Sindicato dos Trabalhadores Técnicos da Universidade Federal de Alagoas- SINTUFAL- gestão 2013/2015. Membro da Câmara Acadêmica da Universidade Federal de Alagoas- UFAL (2013/2015). Membro do Conselho Universitário da Universidade Federal de Alagoas-CONSUNI ( 2013/2015). Membro do Projeto de Extensão da UFAL: Fórum Mestre Zumba: Pensamento em Artes Afro Ameríndias desde 2013. Suplente do Conselho Estadual de Promoção da Igualdade Racial de Alagoas 2013-2015. Membro do Conselho Universitário da Universidade Federal de Alagoas-CONSUNI ( 2016/2018). Membro da Câmara Adâmica da Universidade Federal de Alagoas-CONSUNI ( 2016/ 2018). Diretor da Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores técnico-administrativo em Instituição de Ensino Superior Publicas do Brasil- FASUBRA gestão 2012/2014.

 História, memória e emoção

Luiz Sávio de Almeida


Não gosto de dar entrevista; ela é sempre traidora e , até mesmo, o entrevistado se obriga a falar dentro do recorte realizado pelo entrevistador,  bastando isto para surgir uma série de problemas. Então, quando me pedem algo, por exemplo, ds parte da imprensa,  eu digo para me mandarem as perguntas e com calma tento responde-las, at´pe mesmo para colaborar com o próprio jornalista. Gravar entrevista, é muito raro. E entrevista longa, mais raro ainda, pois quanto mais tempo você fala, mais besteira você sai dizendo: é melhor ser burro no mais curto espaço de tempo.  No entanto, quando é um trabalho acadêmico, eu sempre falo livremente.

Foi surpresa quando fui procurado pelo Jeamerson para falar sobre uma tela do Zumba: a da  Tia Marcelina. Eu jamais pensei, quando fazia e faço as coisas, que aquilo tem alguma importância: eu vou mais pelo impulso– e preparado para aguentar as consequências –, do que estudado. Tenho me dado mal e tenho me dado bem, da mesma forma que aconteceria se eu andasse com uma fita métrica, a tomar medida sobre minhas falas. Eu não sei se  já havia dito, que a famosa pintura do Zumba havia passado por mim. Os cuidados do de pesquisador do Jeamerson,  havia dito a ele para ver as raízes da foto.

E, sem dúvida, eu podia narrar muita coisa do que havia acontecido, por ela ter emergido quando eu estava imerso no povo da macumba – adoro esta expressão –, procurando, dentre outras coisas, se eu teria condições de propor um projeto de pós-graduação sobre ele. Foi quando conheci pessoas maravilhosas e que se atrelaram á minha vida: antes como amizade e hoje como saudade.

Navegar no passado foi aprazível e ao mesmo tempo saudoso. Julguei que era necessário passar pelo sentimento, dar a entrevista e situar a participação de muitas pessoas, mormente a de Celestino, Joca e Luiz Marinho; nisto incluo o próprio Belarmino,  no caso da imagem pintada de Tia Marcelina, o Zumba. Celestino, Joca e Luiz Marinho são fundamentos da obra do Zumba.

Tia Marcelina bem, poderia ser aquela senhora com o balaio na cabeça, parada na calçada e em frente a uma casa pobre, nem sei mesmo se de Maceió. Importa que ela foi reconhecida assim e daquela exata maneira se impôs e resgata a memória de uma história que jamais poderia ter sido letrada. Esta é a beleza de Tia Marcelina: ser única e tantas ao mesmo tempo e, deste modo, responde simbolicamente pela história do próprio povo: o povo da macumba.

Vou contar uma história que não disse na entrevista. Uma vez, a janela estava aberta e da calçada dava para ver o quadro da Tia Marcelina. Um homem ia passando e aí parou; olhou para mim e perguntou: É esta mulher que parava o trem? Eu ia dizer que não? Ele sorriu, e saiu alegremente.  Tia Marcelina integra, alegra e representa.


REGISTRAR, CELEBRAR E AGRADECER :  O  cotidiano negro em  Maceió.


Prof. Sávio: Eu só queria que o Celestino, que o Joca e o Luís Marinho tivessem ouvindo essa conversa. Eu acho que deve ‘tá’ por aqui. [Jeamerson - Deve ‘tá’ por aqui sim.]

É com esse trecho da entrevista que realizei  com professor Sávio  para minha pesquisa  do Mestrado em Culturas Populares, que compartilho com a mesma  disposição e gentileza com a qual foi concedida, suas memórias e historias que  são de importância para quem quer estudar, conhecer  e celebrar a presença negra pelo olhar da força e da resistência.
Em minhas pesquisas sobre o artista plástico José Zumba, vou encontrando novos caminhos que nos leva para o reconhecimento e registro de grandes momentos da historia dos negros alagoanos, e um desses caminhos nos leva para  aqueles  encontros de encruzilhadas:  foi assim a entrevista com o professor e pesquisador Savio de Almeida, relatos de uma vivencia compartilhada,  de experiência de enfrentamentos,  e de risos sobre a  Salva de Exu.
Um momento de pesquisa mágico, ouvindo mais que perguntando, chegamos onde a memoria  vai   a realidade resultante das ações do passado, ao iniciar nosso encontro com a curiosidade de como chegou ate ao artista  plástico José Zumba, a ideia de pintar o quadro Tia Marcelina e encontramos bem mais do que buscávamos: encontramos os “anônimos”, que são os homens negros religiosos organizados  e  corajosos.
Registrar parte  da historia contemporânea  das  lutas travadas em Maceió, por liberdade   religiosa e perceber essa dinâmica pela perspectiva negra é muito significante, o espaço para os homens  negros e sua cultura e  religião  eram absolutamente perseguidos  marginalizados, invisibilizados; compreender  a força do enfrentamento  de tudo isso  é o posso afirma como fundamental.
Por isso a importância  da  entrevista  do professor Sávio, parte  dessa possibilidade  de cruzar  nosso caminhar com outros que como  lamenta o professor  não estão aqui para ver o resultado  de  suas lutas, uma Maceió negra  que não  se cala mais, que sai as ruas não pra celebrar  o Quebra, mas para exaltar  a resistência de Tia Marcelina, sai as rua pra afirmar que não somos o que sobrou do Quebra, somos o que resistiu ao Quebra  e resiste ate hoje pela vida da juventude negra e  liberdade  religiosa.
Espero que o leitor, possa sentir o mesmo, que senti ao ler essas memórias registrada nessa entrevista, emoção de ter a oportunidade de agradecer e reconhecer  a contribuição do professor Sávio, Celestino, Joca e Luiz Marinho. E em nome deles   agradecer  a todos os que lutaram  e continuam lutando.



O povo da macumba e Tia Marcelina: uma entrevista a  Jeamerson Santos (I)

Uma proibição policial

É preciso retomar um pouco o clima, para chegarmos à Tia Marcelina. Houve uma época, aqui em Alagoas, que a Polícia vigiou os ensaios de folguedo, como, por exemplo, o Guerreiro e isto sob o argumento de ser motivo de cachaçada, confusão e de violência...  Então eles passaram por período de pressão policial muito grande. Aí houve um acordo – eu acho que costurado pelo Théo Brandão: se o Departamento de Cultura liberasse o local para  ensaios, a Polícia não chegaria perto. Conversando comigo ele disse:  - Se eu não fizesse isso, ia ser um problema muito sério!
Passou muito tempo desta forma. Eu tinha muita ligação com a Federação dos Cultos Afro-brasileiros, por conta de amizade com um cidadão chamado Celestino, que vivia na Igreja de São Sebastião... Vivia ali na Igreja. E era contínuo da Secretaria de Educação. A gente fez amizade pessoal. E ele era Ijexá. Eu acho que era o único que existia em Alagoas;  era no Jacintinho daquela época, radicalmente diferente do que vemos hoje. Eu procuro por ele e não consigo saber onde ficava. Eu acho que é a hora dos cultos começarem a reclamar a colocação dos Terreiros no patrimônio histórico. Falta pressão em cima disso.
O caminho do Traçado
Pelo Celestino, fiz amizade com o pessoal da Federação dos Cultos Afro-brasileiros;  amizade que terminou sendo íntima no sentido do companheirismo, de viver conversando.  E, naquela época, eu motivado pelo Théo Brandão, que era uma espécie de tutor meu... Bom, Theo e eu e conversávamos  praticamente todos os  dias, umas duas horas por aí assim... E tínhamos ligações pessoais.  E o Théo me levou a começar ter interesse em estudar isso. Naquele tempo eu andava pensando em estudar antropologia. E eu comecei a me aproximar dos Terreiros especialmente andando com mais três pessoas: uma delas era  o Luiz Marinho, Pai de Santo, era Nagô Traçado, como chamavam. Não sei como é que chamam hoje:  Nagô Traçado.  Bom, eu acharia interessante que se fizesse um trabalho sobre o léxico dos Terreiros, as mudanças... Eu acho que seria interessantíssimo;  mas chamavam Traçado.
E eram ali, a Federação e o Terreiro do Luiz Marinho, lá no lado da Ponta Grossa, que era um centro de concentração dos Terreiros. Existe um livro, que foi publicado nessa época, e que tem um título fantástico. Chama-se: Os Tambores na Ponta Grossa. Luís Marinho,  profissionalmente era pedreiro e  tinha uma lojinha de vender calçados, uma barraquinha na área do mercado, ali nos lados da feira do Passarinho, perto da banca do Arthur que era meu fornecedor de folheto de feira.
Sobre esse Luís Marinho, eu publico talvez o primeiro trabalho que aparece na imprensa de Alagoas, absolutamente simpático aos cultos. Eram duas páginas inteiras no jornal, parece-me que O Correio de Maceió, coisa assim. Ele fala do Terreiro sem qualquer  acusação. Eu encontrei o artigo no site da FUNARTE. E aí eu fiz amizade com Luís Marinho, que começou a achar que era meu Pai de Santo e eu não ia dizer que não, ‘né’? E fui privando da amizade deles e com isso eu fui tendo uma grande intimidade com os cultos aqui em Alagoas, principalmente Maceió. Mas eu não me considerava capaz de fazer uma pesquisa sobre isso. Eu achava que era uma complexidade muito grande, e que eu não tinha formação. E foi por isso que eu desisti; foi mais por covardia intelectual do que por qualquer outra coisa.  Eu teria de sair daqui para estudar, me preparar e não podia por razões de família. O resultado é que não me senti preparado,  mas eu me sentia tão bem que não largava. Para objeto de estudo não dava, eu sabia que não dava, mas andar com eles, dava.

As amizades

Então, eu terminei tendo amizade com eles e com muitas Casas de Terreiro de Xangô, aqui em Maceió. Eu acho que eu devo ter conhecido muitas e muitas e muitas Casas aqui. Eu não perdia saída de Iaô. Acontecia uma, eu ‘tava’ lá, com esse pessoal. Era o Luís Marinho, era o Celestino. Esses dois eram dirigentes da Federação dos Cultos Afro-brasileiros,  uma entidade que merece um belo estudo, até por conta das negociações que se faziam com o sistema.           Apois bem. E eu gostava, inclusive esteticamente, e ainda hoje de uma beleza fantástica e isto quer seja de Terreiro rico, quer em pobre. Eu acho que os pobres, às vezes, têm muito mais beleza. Faz tempo que eu não vou. O último foi na Mãe Vera a quem adoro.
 Apois, ficamos o Luís Marinho, eu, o Celestino, e aí havia uma pessoa que eu acredito que estava interessada em fazer política lá dentro, mas que terminou se ligando na gente. Chamava-se Coronel Belarmino. Morreu faz um tempão. Era uma pessoa muito boa, mas eu acho que ele era muito ligado a um Coronel do Exército que queria ser Deputado. Mas ele nunca, junto com a gente, conseguiu fazer a política partidária, porque a gente não deixava.  Ele andava mais com a gente como amigo. Ele era muito agradável. E era daqueles coronéis antigos, da Polícia antiga, velha, que tinha muita história ‘pra’ contar.
Então, eu gostava muito dele. Mas ele tinha essa tentativa de fazer um movimento político de candidatura lá desse Coronel, que depois mataram: acho que Adauto. O da polícia que andava com a gente era o Belarmino que o Bráulio brincava comigo, chamando de Coronel da Macumba, mas só quem falava isto era o Bráulio e eu. Nunca se usou esta expressão. Falo do Bráulio Leite Júnior. E aí, fiz também amizade com um camarada chamado Joca. Joca morava lá na Ponta Grossa e trabalhava pelas canhotas, como a gente chamava. Não sei como é que chama hoje: pelas canhotas, pela esquerda... sangue... Era o que chamavam. Ou seja, tinha umas certas ligações e não seria muito interessante fazer brincadeira com ele. E ficamos amigos. Isso é importante eu dizer, porque são essas quatro pessoas, comigo cinco, que fazem, em grande parte,  aparecer a história da Tia Marcelina em alto curso da memória da Seita – como também chamavam. 
A Salva de Exu
Então a Polícia continuava botando pressão em cima dos cultos, especialmente por conta de um negócio que eu não sei se existe hoje ainda, chamada a Salva de Exu.  A Salva de Exu, já ‘tá’ dito, ‘né’. Eu já fui ‘pra’ Salva de Exu e era barra pesada, porque a cachaça rolava mesmo. Então a Polícia, especialmente a partir daí, e o pessoal a reclamar do barulho, dava no que dava,  Maceió já não tinha mais espaço ‘pra’ você ter os Centros isolados. Os Centros já estavam, por mais pobres que fossem, em contexto de relação urbana. Você não tinha condições de ter um Terreiro afastado. O Terreiro ‘tava’ geminado ali com a pobreza que inclusive ia  aumentando por conta da migração que vinha ‘pra’ Maceió.
É entre 60 e 70, onde você começa a ter a violência da chegada da marcha migrante ‘pra’ Maceió. E é onde você vai começar a ver  crescer as ruas pobres da cidade, mas numa expansão alta! As grotas e tudo vão nascer um pouco depois daí. Mas na hora que essa pobreza chega, ela chega num lugar onde poderia ter sido considerado afastado, mas agora mais não. O Centro ‘tava’ ali, parede com parede.  Se bem que esses cultos, só eram relizados uma vez na semana, duas... Assim era a vida do culto, da época que conheci. Era muito ‘pra’ dentro do culto e muito pouco ‘pra’ fora, porque ele não podia ‘tá’ saindo ainda. Então era uma espécie de contido, revertido para si mesmo.
Nunca deixou de existir perseguição; ela não acabou com o Quebra;  e o que vem depois precisa ser estudado. Eu até escrevi isso em alguma coisa. Na década de 30, por exemplo, a perseguição foi grande! Eu tenho um livro raríssimo! Não sei nem como eu consegui; foi escrito por  jornalista que passa por Maceió nessa época e acompanha a polícia perseguindo alguns Terreiros: década de 30.
A ligação se estreita
Apois, começa haver essa empatia minha. Agora pronto, eu cheguei no termo que eu queria. Essa grande empatia que ainda hoje eu tenho manifesta, com relação aos cultos, mas eu já tinha visto que eu não podia estudar. Era preciso que eu fizesse uma remontagem da minha formação, porque ela era em Direito, e o Théo, acho que sentindo em mim alguma espécie assim de  não sei se talento ou da possibilidade de interesse por essa área cultural, me fustigava e aí me disse: ‘Vá estudar os Terreiros! Estudar os Terreiros... Depois que Arthur Ramos ninguém vê  isso”.   Então eu por brincadeira respondi: “ E por que é que o você não estuda?”
A temática negra não penetrava na inteligência de Alagoas da época. Então, você veja que isso que eu ‘tô’ lhe dizendo dá um pouco da magnitude do problema geral do negro desse momento que nós vivíamos. Você transformar o negro, objeto de plena perseguição, num sujeito que tinha história e num sujeito que tinha a sua cultura e não era a excrescência que se dizia... Isso era um afrontamento ‘pra’ muita coisa. Era preciso ter peito.
Eu nunca pensei, naquela época,  que era importante o que a gente  fazia. Eu ‘tô’ vendo os caras que ‘tavam’ comigo e vendo a importância deles e não a minha, agora que voce me faz olhar a importância do que vivemos. Aí você tinha uma temática negra perseguida em sincronia com a perseguição que viviam. Ela não aflorava. Ela no máximo chegava ao Abelardo Duarte, mas ligada à ideia de folclore. O Abelardo Duarte tem uma grande importância, não é porque ele rompa, mas ele tem coragem de ser diferente.
Ele não tinha uma antropologia capaz de romper com o que, tradicionalmente, se montava com relação ao conhecimento da cultura de Alagoas. Havia uma cabeça ibérica, de formação ibérica. A África quando chegava aos estudos, não chegava visível, porque o negro não era visível. Não era que houvesse maldade, era como se a cortina que existisse, fosse de tal forma fechada na vida política e social normal, que ela impedia o campo acadêmico de existir.  
Um rompimento
E veja os rompimentos. De uma hora ‘pra’ outra, você vai ter uma estrutura intelectual se vinculando aos cultos e você ‘tá’ num momento em que era eles eram negados pela polícia. Macumba não era  tema. Macumba era negócio de macumbeiro! E não seria apenas por ser de negro. Eu acho que era também pelos interditos religiosos, alicerçados pela Igreja Católica e pelo kardecismo, que considerava isso coisa de segunda linha, de terceira linha, negócio assim da periferia: espírito vindo a  frequentar os Terreiros, não poderia ser boa bisca.
Aí o que é que acontece? Eu passo a frequentar isso e a ter interesse.  Alguma coisa eu teria condições de fazer do ponto de vista intelectual: era estudar a distribuição geográfica dos Terreiros. Quem faz o primeiro estudo deles aqui neste sentido, somos nós. A verificar a distribuição geográfica dos Terreiros em Alagoas... Agora, imagine a importância desse troço lá naquele tempo.  Hoje tudo é graça.
E como é importante registrar, porque se você não registrar  ‘tá’ perdido... E é por isso que eu ‘tô’ lhe dando esse depoimento. Eu não me dei conta, nunca me dei conta de que vivia um momento importante... Só depois, é que comecei a perceber:  quando me falaram. Começamos a trabalhar com os fichários da Federação. Eu lhe disse que eu perdi esse material todo, já, ‘né’? Ficaram poucas coisas. A complexidade, por exemplo, desse negócio de ser Nagô, de ser Jeje, na minha cabeça, eu não tinha condição, eu não tinha formação, eu não sabia o que era isso e demoraria para saber se fosse me meter.
Um lugar a trabalhar
Mas saber onde ‘tava’ o ‘lugar’, eu sabia. E comecei a mapear uma série de elementos e a descobrir um troço que ‘pra’ mim foi muito importante, tendo descoberto isto com o Théo Brandão. O Théo me disse uma vez o seguinte: “Olha, Sávio, o segredo ‘pra’ você matar o que é que é o Terreiro em Alagoas,  em Maceió, é entender o que é que é isso que é chamado de Traçado”.  Aí minha cabeça ficou todo o tempo pensando o que seria esse Traçado. Traçado, sentindo que ele tinha história; apenas sentindo.
 Fui fazendo pequenas coisas que eu podia fazer sem me assustar com a responsabilidade: sobre a nomenclatura dos Terreiros etc. e tal. Tudo isso perdeu-se! Nomenclatura dos Terreiros, eu comecei a anotar isso.  Bom, e decidi tomar uma atitude que eu achei que era séria: ‘desfolclorizar’ esse negócio e ter coragem de ir ‘pra’ imprensa defender. E jamais ‘folclorizando’, porque meu medo era esse. Meu medo era que ‘folclorizasse’ a questão e deixasse de estar com o negro.
Então fica essa vida de ida e vinda... De tal forma que eu achava que eu já era macumbeiro também. Era macumbeiro. E onde tinha... Saía ‘pras’ festas etc. e tal, vivia na Federação... Eu gostava deles. Eu nunca frequentei o lado do Maciel. Isso eu nunca frequentei não. Mas engraçado, eu acho que eu tenho tudo que saiu na imprensa, sobre quando Maciel quis ser o rei do Candomblé. Eu acho que eu tenho tudo guardado, mas onde ‘tá’, não sei.  Dá outro grande trabalho, mas isto foi bem depois: merece também um estudo: a nobilitação do Pai de Santo.
O povo da macumba e Tia Marcelina: uma entrevista a  Jeamerson Santos (II)
 
Quadro de Zumba
Aí um dia, eu ficava assim pensando onde é que estava a história disso tudo: onde estava registrada. Eu não tinha ainda a formação suficiente ‘pra’ poder entender a questão de memória, ‘pra’ entender a questão de identidade. Digamos assim: eu teria muito mais uma base filosófica do que prontamente uma discussão de uma temática antropológica ou histórica.  
.           E vai essa integração todinha e é sempre esse sentido que não existia a história registrada e teria de estar na memória. Por isso é que eu volto muito depois ‘pra’ poder tentar trabalhar essa história, mas eu nunca escrevi; é material mais recente, embora com uns 20 anos e isto já faz diferença. Eu tenho todo o material, mas nunca escrevi.. São horas de entrevista sobre a história de cada Centro que visitei.    
O que me impressionava era no que divergiam, no que os Centros eram diferentes. É muito fácil você ver o que é igual e é muito difícil você perceber porque que o diferente é construído em detalhes. Eu tenho todas essas gravações feitas e estão no IPHAN, pois dei ‘pra’ eles talvez o mais importante acervo de registro oral sobre os Centros que deve ter sido feito pelos 80 ou noventa. Importantíssimo.
Nós fomos a muitos Terreiros, inclusive no interior e isto é essencialmente importante no acervo. Essas gravações, que eu acho que devem ser recuperadas, trabalhadas, estão no IPHAN, em disco e em fita. Isto dá uma bela tese, um belo livro. Embora que ela se perder é um troço muito triste. O Clébio andou nesses Terreiros comigo nessa segunda etapa. Há muito tempo depois. Isso aí vai ser, acho, na década de 80, por aí assim.  É um tesouro: dá dissertação, tese, livro. Talvez valesse a pena, alguém apresentar um, projeto para transcrição das fitas. Está também no IPHAN um importantíssimo acervo sobre a história indígena,  um raro acervo de falas indígenas.
E vamos para o Zumba
O Zumba é um exótico negro ‘pra’ burguesia. O Zumba era um artista que tinha que ser camelô de si mesmo, mas era reconhecido pelo povo da Macumba. E foi esse pessoal da Macumba que fez minha aproximação com ele. Eu não tive essa convivência de intimidade. A minha relação com o Zumba,  acontece em torno da Tia Marcelina. Então veja: eu sempre comecei a achar que faltava a... Hoje em dia eu falo em memória registrada. Foi quando eu tomo conhecimento do Quebra. E aquilo ficou na minha cabeça
Você ‘tá’ vendo como o Théo foi importante na minha vida, ‘né’?.  A minha cabeça não chegava lá, mas pressentia essa questão da história. Como é que foi a história desse povo e como é que é possível escrevê-la? Mas como eu digo: eu me julgava incapaz de mexer. Se eu fosse mexer, eu não iria pelo viés antropológico. Eu ia pela recuperação dessa história.  Você pode ver que quase todos os trabalhos que passam pelo Quebra, tratam muito mais da estrutura branca do que da referente ao negro. E a documentação que pegam é só branca, porque não tem negra! A documentação negra é auricular, no ouvido, a comunicação era essa.
Então você tinha um marco que depois virou ficção, no sentido de que extrapolou a condição. O Quebra aparece muito por conta da política branca. É extremamente difícil ter plantada uma ótica negra, porque você teria que ”imaginá-la”. Em grande parte do que se fala sobre o Quebra é estruturado de três, quatro ou cinco reportagens vagabundas do Jornal de Alagoas. E, quando na verdade, o que está por trás é a grande estrutura de perseguição, que aflorava religiosamente, à população negra. Você veja que se você for tratar bem a questão... Estava em jogo a destruição do negro com sua cultura na condição urbana.  Não, é porque diziam que o governador era lebá...  Nem um lado e nem o outro estaria com o negro.
Ele era chamado de Léba, porque você estava com a contradição do negro aflorando ali e não pelo fato de Euclides Malta ser macumbeiro. Agora, por que é que um negro representava esse perigo? Por que era negro? Por que era pobre? Ou ser pobre era ser negro? Então você tem um problema aí, que é imenso ‘pra’ você se situar, porque o Quebra nem sequer foi arranhado ainda, eu acho, sabe. Apesar de magníficos trabalhos. O trabalho do Rafael ´´ é  um belo texto, ‘né’. Outros trabalhos que têm por aí, são trabalhos interessantíssimos! Mas eles não conseguem o que era o momento negro embora aflorem muito do que seria este cotidiano onde o religioso era apenas um detalhe.
Eu acho que você verá parte do momento negro do Quebra, muito mais pelo que estava consignado nas estruturas de fora da alta elite da disputa política. Eu acho que é muito mais importante você estudar, por exemplo, a presença do Quebra... Vá estudar a Liga dos Republicanos Combatentes, porque ali você começa a verificar que ela passa por baixo, trabalhando as contradições que existiram no fundo dessa cultura onde o negro também estava em contradição. Ou seja, o fato de você ter uma determinada caracterização física não implica. Eu por exemplo, aprendi com Joel Rufino,   um grande amigo meu. Aprendi que a gente se escolhe, muitas vezes. Se você me perguntar:  “ Você sabe se é negro?”. Aí eu digo: Não sei, mas sou. Sou como?
Quando estou na plataforma da igualdade, de todos aqueles que querem uma condição justa, então eu sou negro.  Eu escrevo ‘pra’ caramba sobre negro, mas  nunca escrevi me considerando negro, nem com procuração negra, nem negro nunca me pediu que fizesse. Eu escrevi com a minha mão. Não sei se dá ‘pra’ me entender. [Sim, sim, fala do entrevistador].  Eu escrevi com a minha mão, e ali eu sou negro, ali. Negro, naquele espaço que a gente criou, que é um espaço da igualdade, que é um espaço de somar diferenças. Mas eu não tenho um histórico de vida negra. Eu nunca vivi na periferia, não sei nem que porra é! Apesar de que você vai ter um espanto do caçamba, agora: meu pai pediu esmola. Mas eu nunca vivi a esmola de meu pai. Eu já vivi meu pai funcionário do Banco do Brasil. Era outra coisa. 
Quadro do Zumba

É tudo difícil
Você percebeu o que eu quis dizer, né? [Sim, sim, fala do entrevistador]. Então eu não vivi o momento negro. O momento da exploração não chegou realmente em mim. Eu aprendia isso em casa. Eu não aprendi isso na rua. Eu não aprendi em Universidade. Eu aprendi que sou igual com minha mãe falando, com meu pai falando... Bem por aí... Eu me lembro de uma vez, meu pai era gerente do Banco do Brasil, em Palmares, de Pernambuco. Isso significa que ele estava entre as autoridades, talvez, da cidade. Eu ‘tava’ sentado, procurei por mamãe, não achei.
Aí fui ‘pra’ rua. Quando eu vi,  a mamãe tava com uma senhora magrinha, coitada! Ainda me lembro como hoje. Tão magrinha... E a minha mãe com o feixe de lenha da velinha na cabeça, andando no meio da rua. E meu pai Gerente do Banco do Brasil! Quando ela chegou, eu disse:  “O que a senhora ‘tava’ fazendo?” Ela: “Carregando lenha. Você ‘tá’ com vergonha de mim, é? Você tinha que sentir vergonha de mim se eu não tivesse carregado a lenha, que ela precisava daquilo ‘pra’ viver e não tinha condições de carregar!”. Só faltou remendar como sempre fazia no fim do carão: Seu cabrito! Ms eu não estava com vergonha mas orgulhosamente surpreso.
Voltando ao início e sobre a história da macumba nas Alagoas... Eu sabia naquele tempo que ‘tava’ faltando alguma coisa. Na minha cabeça tudo isso existia, tinha um sentido e era preciso algo que transformasse esse sentido em uma evidência para escrita. Aquela história negra  ‘tava’ muito ‘pra’ dentro, ela não tinha representatividade pública. Agora foi que cheguei onde queria: a publicidade.
Faltava uma representatividade pública, porque a própria pobreza não conseguia; não era o fato de ser a religião em si, mas era aquela própria pobreza que não conseguia se expressar. Existem momentos de expressão magnífica na pobreza, mas naquele momento não se tinha a visão dele. Uma vez pensando em hip-hop, escrevi sobre uma grande libertação urbana em Maceió, da explosão negra em Alagoas quando garotos vão dançar o hip hop na frente do Cine São Luís.
Voltando ao Quebra
 Aí essa coisa ficou na minha cabeça. Estava a ligação pessoal, estava o caminho ‘pra’ trabalhar com o que eu podia, que foi esse da Geografia da fé e de verificar as titulações dos Centros etc. e tal, de me preocupar com essa questão do Traçado, que o Théo levantou e ele tinha razão e com essa falta de representatividade pública da história que eu estava pressentindo. Por isso é quem vem o texto sobre o Luís Marinho publicado no jornal. Ele não deve ser bom. Eu tinha o quê? Vinte e poucos anos de idade, por aí assim. Quando eu leio com a idade que tinha, eu acho um puta e corajoso texto, sabe? [Sei]. Mas quando eu leio com a minha cabeça de hoje:   P. que pariu! [Risos de Jeamerson].
A TIA MARCELINA

A significação política dele independe de prestar ou de não prestar. Um jornal estava dando uma página ou duas páginas inteiras  em cima de algo que era considerado um tabu em Alagoas e o texto era absolutamente simpático a ele. Eu não podia dizer ‘eu sou macumbeiro’, mas ‘tava’ na entrelinha de que, se insistisse eu era [risos de ambos].
Aí eles, os amigos macumbeiros,  me procuram. Quando eles me procuram já havia uma história minha com eles. Não me procuram por acaso. Procuram ‘pra’ conversar sobre a perseguição que a Polícia ‘tava’ fazendo, segundo diziam e era mais do que possível. Especialmente eles diziam que quando era a temporada da Salva de Exu, como eu falei. Não sei se existe hoje ainda esse negócio de Salva de Exu. Existe? [Salva de Exu?][i]. Salva de Exu é um toque onde só baixa Exu. Aí você conhece tudo quanto é Exu. [Risos do Professor Sávio].
Eu tenho umas amizades assim estranhas [Risos do pesquisador], porque eu sei que se existirem eles estão aqui sentados agora. Os Exus! Os Exus ‘tão’ aqui. Eu só ando com quem não presta. Tá tudo aqui. [Risos de Jeamerson]. [Mas Exu presta][ii]. [Risos de ambos]. Eu falo que não presta no sentido da moral tradicional. [Sim, isso][iii]. [Risos de ambos]. Então deve ‘tá’ aqui assim ó! [Gesticula com a mão]. [Então, eles te abrem os caminhos, é?][iv] [Risos de ambos]. Eu tive uma briga com o Tranca Rua. Esse foi um negócio sério na Salva de Exu. O peste queria que eu tomasse uma cachaça. - Eu não tomo essa porra! Foi na Casa do Júlio, no Terreiro do Júlio.
Aí eles vieram conversar sobre a perseguição da Polícia. Aí me perguntam o que é que eu achava. Eu digo: - Nós precisamos buscar um representante. [Professor Sávio imposta a voz]. Eu não iria dizer isso, mas a chave era essa. Aí vão surgindo umas coisas: Tia Marcelina surge daí. Ia surgindo umas coisas.
Era qualquer coisa assim: ou sai da catacumba ou não existe vivo. Eu disse a você que a vida da religião era muito ‘pra’ dentro, porque não tinha meio de dar um passo desse. Isso contraria qualquer princípio de uma cabeça que não seja absolutamente maluca. Porque seria se levantar contra toda a organização de poder da sociedade, pegar isso, lançar-se na busca do público.
- O que é que você acha, professor? Foi a pergunta.
Aí eu disse:  - Tem que ter um troço aí que sacuda.
Queria dizer, que não dava mais tempo ‘pra’ ir lentamente na construção dessa representatividade. Ou papoca ou não papoca. E como é que papoca? Aí deu aquele negócio: se papoca a gente faz.
O sentido é que era esse. [Sim][v]. A gente tem que dar uma tacada que aflore isso daí e que fique a Polícia de mãos atadas, porque agora você não é mais marginal. Você tem que arranjar uma forma de você penetrar de tal modo que a ideia de que você era marginal e vagabundo não possa mais permanecer. E aí não pode ter a violência policial em cima. Eu era doido, eu acho, sabe? [Risos de Jeamerson]. Eu faria a mesma coisa hoje, eu faria. Só que hoje eu não tenho mais a coragem de enfrentar. ‘Tô’ mais cansado... Me chamaram:
 [Jeamersom: Mas sua memória já é uma ação corajosa. [Risos de ambos]
- “E o que é que o senhor quer fazer?”
- “Se vocês toparem, eu queria dar uma porrada do caramba. A  coisa que tem mais importante aqui em Maceió ‘pra’ gente atacar é o Teatro Deodoro.”
Por que o Teatro Deodoro? Porque o Teatro Deodoro era símbolo e representativo da cabeça da burguesia de Alagoas, embora ele fosse muito mais do que isso.
- “Vamos fazer o seguinte, se vocês toparem. Vamos fazer uns toques...’
Repare a proposta. Pense onde pesa a proposta. Mas eu não falei isso como de fora não. Falei de dentro, porque eu era de dentro. [Sim.][vi]. Aí o cara diz:  você era um intelectual! Não é não. Eu era de dentro. Eu não falei de fora. Eu falei de dentro. E eles vieram conversar comigo porque eu era de dentro.
Catedral você não ia entrar. Eu não ia fazer um negócio desse na Catedral. [Risos de ambos]. Assassinavam a gente. Era maluquice. Então eu tenho que ter um troço do estado, que pertence a todos.
- O que é que a gente vai fazer?
- Vamos...


[i] Fala de Jeamersom.
[ii] Fala de Jeamersom.
[iii] Fala de Jeamersom.
[iv] Fala de Jeamersom.
[v] Fala de Jeamersom.
[vi] Fala de Jeamersom.


 



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