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segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

A CONTRARREFORMA AGRÁRIA NO BRASIL DO SÉCULO XXI: notas sobre a espacialização dos assentamentos rurais e a (re)criação do campesinato assentado no campo alagoano (I)



Professor de Geografia do Instituto Federal de Alagoas - Campus Piranhas (2015). Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal de Pernambuco (2015). Mestre em Geografia pela Universidade Federal da Paraíba (2015), com mestrado sanduíche na Universidade Federal de Sergipe (2014). Graduado em Licenciatura Plena em Geografia pela Universidade Estadual do Ceará (2011) e Graduado em Tecnólogo em Recursos Hídricos/Irrigação pelo Instituto Centro de Ensino Tecnológico – CENTEC (2004). Pesquisador membro do Laboratório de Pesquisas e Estudos sobre o Espaço Agrário e Campesinato e do Núcleo de Agroecologia, ambos do PPGEO/UFPE. Atualmente concentra os estudos sobre a questão agrária no Brasil e em Alagoas.




A CONTRARREFORMA AGRÁRIA NO BRASIL DO SÉCULO XXI: notas sobre a espacialização dos assentamentos rurais e a (re)criação do campesinato assentado no campo alagoano (I)



Claudemir Martins Cosme

Resumo                                                             



O objetivo central desse trabalho é discutir como a reforma agrária vem sendo tratada no Brasil, a partir de alguns apontamentos acerca da estrutura fundiária, da luta pela reforma agrária e da conquista dos assentamentos rurais no campo alagoano. Busca-se ultrapassar as análises limitadas pelas convicções ideológicas, pró ou contra a reforma agrária, e avançar na reflexão com base na realidade do espaço agrário de Alagoas. Nessa perspectiva, três indagações são norteadoras: 1) Na atualidade, a estrutura de propriedade, posse e uso da terra contém ou provoca problemas sociais, econômicos e ambientais suscetíveis de configurar uma questão agrária? 2) A política de reforma agrária deve ser um processo permanente ou deve existir um prazo delimitado para que ocorram alterações na estrutura fundiária vigente no período de sua realização? 3) É possível atestar que já houve ou está em curso um processo de reforma agrária no país? Assim, pretende-se decifrar algumas das contradições que permeiam os processos de (re)criação e permanência do campesinato assentado no Brasil do século XXI. 



Introdução


A realidade do campo no Brasil do século XXI não deixa dúvidas: o modelo agrário/agrícola latifundista, transmutado de agronegócio, segue hegemônico em detrimento das distintas formas de agricultura camponesa. Trata-se de um modelo que se apresenta com uma roupagem moderna, sobretudo economicamente, mas que no seu cerne possui e atualiza o que há de mais antigo e colonial na formação territorial capitalista brasileira no tocante ao padrão de poder, ao estabelecer uma forte aliança entre as grandes corporações financeiras internacionais, indústrias-laboratórios de agroquímicos e de sementes, cadeias de comercialização e os grandes latifúndios exportadores de grãos (PORTO-GONÇALVES, 2012).

Como definiu Martins (1999), uma aliança do atraso entre o capital e a terra, tendo como elo um Estado oligárquico com suas relações políticas atrasadas, se materializa como uma das particularidades históricas nessa formação territorial. Particularidade essa, que tem impedido a efetiva realização da reforma agrária. Fato bem elucidado por Oliveira (2001), quando defende que a concentração de terras pelos grandes grupos econômicos tem uma funcionalidade para o capital, haja vista servir como reserva de valor e/ou reserva patrimonial, com a finalidade de garantir o acesso ao sistema financeiro bancário e os incentivos governamentais.

Nesse contexto, para além das convicções ideológicas pró ou contra a reforma agrária, três perguntas são essenciais para nortear qualquer debate sobre a proposição ou mesmo avaliação dessa política em determinado contexto político. A primeira, parafraseando Delgado (2014): no contexto societal brasileiro do século XXI, a estrutura de propriedade, posse e uso da terra contém ou provoca problemas sociais, econômicos e ambientais suscetíveis de configurar uma questão agrária? A segunda: a política de reforma agrária deve ser um processo permanente ou deve existir um prazo delimitado para que ocorram alterações na estrutura fundiária vigente? E por fim a terceira, entrelaçada às outras duas indagações: sem alterar a estrutura fundiária é possível defender que houve um processo de reforma agrária?

Destarte, o objetivo central desse trabalho  é discutir como a reforma agrária vem sendo tratada no Brasil, a partir de alguns apontamentos acerca da conquista dos assentamentos rurais, da luta pela reforma agrária e da evolução da estrutura fundiária no Estado de Alagoas.

Os últimos dois anos foram de aproximação e conhecimento da realidade da questão agrária nesse Estado, por meio dos seguintes caminhos metodológicos: pesquisa e leitura da bibliografia sobre a sua formação territorial, especialmente sobre o espaço agrário; pesquisa participante efetivada através de diálogos permanentes com os vários movimentos e organizações sociais do campo e atividades de pesquisa e extensão junto às famílias assentadas, em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST); levantamento de dados junto ao: Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), Comissão Pastoral da Terra (CPT),  Instituto de Terras de Alagoas (ITERAL) e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Como método de interpretação, à dialética materialista norteia a reflexão, essencialmente, a partir de uma leitura não evolucionista/etapista da história, rompendo com um dito modelo eurocêntrico inexorável de desenvolvimento e de caminhos para uma transformação estrutural da sociedade brasileira. Nessa linha interpretativa, buscamos amparo nas leituras que situam o debate das contradições dessa sociedade no seio das especificidades históricas da sua formação territorial capitalista, como forma de ler o lugar/papel da classe camponesa e da reforma agrária no Brasil do século XXI. 


Concentração fundiária e da minifundização em Alagoas
                                                                                                         
Depois de mais de 50 anos de discussão e formulações de leis que tratam da implementação da reforma agrária no Brasil, como o Estatuto da Terra de 1964, a elaboração de dois Planos Nacionais de Reforma Agrária (PNRA), 1985 e 2003, a Constituição Federal de 1988 e a Lei Agária 8.629/1993, que regulamenta os dispositivos constitucionais relativos a referida reforma, constata-se a perpetuidade da estrutura fundiária desigual no país. Estrutura essa marcada, de um lado, por grandes propriedades (latifúndios) e, de outro, as minúsculas propriedades camponesas (minifúndios).  

O Índice de Gini comprova o aprofundamento da concentração da terra no campo brasileiro nas últimas décadas. Chegamos a um índice de 0,872 em 2006, superior aos anos de 1995 e 1985, com 0,856 e 0,857, respectivamente. Já à realidade do campo em Alagoas, onde as oligarquias têm elevada capacidade de se metamorfosearem para se manterem no poder (TENÓRIO, 2009), é a mais desigual entre todas as Unidades da Federação. Seguindo a dinâmica nacional, o índice sai de 0,858 em 1985, para 0,863 em 1995 e chega a 0,871 em 2006 (IBGE, 2009), demonstrando a profunda concentração da terra nesse Estado.

            Segundo Carvalho (2014), predomina nos governos uma postura político-ideológica de manutenção de uma estrutura agrária socialmente injusta, através de uma contrarreforma agrária, juntamente com ações de ordem econômica, que reforça “[…] a concepção social retrógrada de que os camponeses se constituem em “povos sem destino”, destinados historicamente a desaparecerem da formação econômica e social brasileira (Ibidem, p. 80).

Os dados da Tabela 1, com base no Censo Agropecuário de 2006, não deixam dúvidas sobre a realidade desigual da estrutura fundiária no campo alagoano. Enquanto, de um lado, 92,89% (114.565) dos estabelecimentos rurais com menos de 100 ha, ocupavam apenas 35,64% da área total ou 752.904 ha, de outro, 2,61% (3.227) dos estabelecimentos com mais de 100 ha, concentravam 64,36% da área total ou 1.359.670 ha. A desigualdade mostra sua face mais injusta quando se compara os dados dos estabelecimentos com mais de 1.000 ha (minoria) e os com menos de 10 ha (ampla maioria). Os primeiros, com apenas 0,16% do total ou 200 unidades concentravam 27% da área total ou 570.487 ha. Já os segundos, com 77,67% ou 95.791 unidades, se expremiam em apenas 10,71% da área total ou 226.342 ha (Ver tabela 1). Levando-se em conta que no contexto alagoano, o módulo fiscal varia de acordo com as zonas naturais de 7 a 70 hectares, sendo em média em torno de 32 ha, podemos afirmar que o processo de minifundização na estrutura fundiária estadual é predominante.



Tabela 1 – Alagoas – Evolução da Estrutura Fundiária – (1995/2006)

Classe de área (ha)
1995
2006
Estabel.
%
Estabel.
Área
(ha)
%
Área
Estabel.
%
Estabel.
Área
(ha)
%
Área
Menos de 10
92.736
80,60
220.023
10,27
95.791
77,67
226.342
        10,71
10 < 100
18.625
16,19
545.369
25,46
18.774
15,22
526.562
        24,93
Menos 100
111.361
96,78
765.392
35,72
114.565
92,89
752.904
        35,64
100 < 1000
3.487
3,03
963.371
44,97
3.027
2,45
789.183
        37,36
Mais de 1000
190
0,17
413.698
19,31
200
0,16
570.487
        27,00
Total
115.064
100,00
2.142.461
100
117.792
100*
2.112.574
      100,00

Fonte: IBGE (2006). Organização: Claudemir Martins Cosme



Lessa (2012) já havia constatado acertadamente que na evolução da estrutura fundiária de Alagoas, apesar da presença da grande propriedade latifundiária e da elevada concentração fundiária, existem diferenças históricas consideráveis espacializadas nas três mesorregiões que compõem o território do Estado, a saber: o Leste Alagoano, marcado pelo latifúndio da cana; o Agreste e o Sertão caracterizados pelo minifúndio e pelas pequenas e médias propriedades.

Não obstante, ainda conforme a Tabela 1, é mister destacar o aumento, entre 1995 e 2006, do número e da área dos grandes estabelecimentos rurais. Estes passaram de 190 unidades e 413.698 ha, para 200 e 570.487, respectivamente. Ou seja, ocorreu um aumento de apenas 10 estabelecimentos, mas com a incorporação de 156.789 mil ha. Enquanto os estabelecimentos de 100 a menos de 1.000 ha perderam 174.188 ha e os minifúndios incorporaram apenas 6.319 ha.

Outro dado que traduz o processo de elevação da concentração fundiária no campo alagoano é a variação da área média dos estabelecimentos rurais. Os grandes (acima de 1.000 ha) tiveram sua área ampliada em 61,48%, entre 1985 e 2006, sendo de longe o maior crescimento, contra um crescimento incipiente dos pequenos com menos de 100 ha e a queda dos que ficam entre 100 e menos de 1.000 ha, 0,92 e -6,09, respectivamente (Ver Tabela 2).



Tabela 2 - Alagoas – Variação do tamanho médio dos estabelecimentos por classe de área (1985 - 2006)

Casses de área (há)
1985
1995
2006
Variação do tamanho (%)
1985 – 2006
Menos de 10
2,31
2,37
2,36
2,16
10 < 100
29,24
29,28
28,05
-4,07
Menos 100
6,51
6,87
6,57
0,92
100 < 1000
277,62
276,28
260,71
-6,09
Mais de 1000
1.766,42
2.177,36
2.852,44
61,48

Fonte: IBGE (2006). Organização: Claudemir Martins Cosme



Dados estatísticos mais recentes do INCRA, com base no conceito de imóvel rural e cujas informações são autodeclaradas pelos proprietários ou por seus representantes legais, revelam que no princípio do ano de 2012 em Alagoas, 46.734 imóveis rurais estavam cadastrados e ocupavam uma área total de 1.673.572,73 há. Deste universo, as grandes propriedades que totalizam 132 imóveis rurais (ou 0,28% do total de imóveis), controlam 14,18% da área cadastrada ou 237.326 ha. Enquanto que 3.151 imóveis cadastrados (equivalente a 6,74% do total), considerados em sua maioria de dimensão mediana, controlavam 815.112 hectares, o que representa 48,70% da área total cadastrada. Juntos, os médios e grandes imóveis rurais somavam apenas 7,02% do total de imóveis declarados, mas concentravam 62,89% da área total. Por sua vez, os imóveis pequenos, que somam 43.451 ou 92,98% do total declarado, espremiam-se em apenas 621.135 hectares, que representam 37,11% da área total cadastrada (Ver Tabela 3).

                               

Tabela 3 - Alagoas - Estrutura fundiária (2012)

Classe de área (ha)
2012
Imóveis
%
Imóveis
Área
(ha)
%
Área
Menos de 10
  26.727
57,19
  109.202
6,53
10 < 100
  16.724
35,79
 511.933
30,59
Menos 100
  43.451
92,98
 621.135
37,11
100 < 1000
  3.151
     6,74
  815.112
48,71
Mais de 1000
 132
0,28
  237.326
14,18
Total
  46.734
100
    1.673.573
100

Fonte: INCRA (2017). Organização: Claudemir Martins Cosme



Vale salientar duas questões que os dados oficiais do INCRA apresentam, apesar de não serem visualizadas na tabela 3. A primeira, é que apenas 03 imóveis rurais, classificados com área entre 5.000 e 10.000 ha, concentram sozinhos 21.792,10 hectares. Todos localizados na Mesorregião do Leste Alagoano monocultora de cana-de-açúcar: um no município de Coruripe com 8.743,10 há; outro em Messias com 6.049,00 ha e o último em São Miguel dos Campos com 7.000 mil ha. É preciso ter em mente que o número de grandes imóveis rurais poderia ser bem maior, caso se considere a tática utilizada pelos latifundiários de fragmentar seus latifúndios em médios imóveis, como forma de mascarar a concentração e esvaziar o questionamento do monopólio da terra no Brasil (RAMOS FILHO; RAMOS, 2014).











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