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domingo, 3 de junho de 2018

Memória: o bairro, gentes e família


RONALD CABRAL DE MENDONÇA nasceu em 17/01/1948. É o terceiro de uma família de onze filhos. Filho de José Lopes de Mendonça e de Rosa Cabral de Mendonça. Estudou no Colégio Diocesano (1954 -1965). Graduação em Medicina em 1971. Resid. Médica em Neurocirurgia no Hosp. do Serv. Público Estadual de SP; Pós-Grad. no Inst. C. Chagas, RJ. Prof. de Neurologia da Ufal e Neurologista do MS; integra o corpo clínico da Santa Casa de Maceió. Membro da Soc. Bras. de Neurocirurgia,  sócio da Sobrames-Al, da Acad. Maceioense de Letras, da Acad. Alag. de Medicina e da Acad. Alag. de Letras (cadeira 15). Semanalmente, publica matéria na G. de Alagoas. Dois livros de Antologia, com contos e crônicas. Autor de dois livros: Latim Aos Sábados e Janela de Vidro, com crônicas, contos e ensaios. É casado com Nadja Oliveira de Mendonça. Tem um filho, Carlos Eduardo Mendonça, e dois netos: Caio e Maria Clara.

REVELAÇÕES DE UM SUBURBANO
RONALD MENDONÇA
MÉDICO.  MEMBRO DA AAL


A Ladeira do Calmon está muito diferente daquela que minhas “cansadas retinas” guardaram. Naqueles tempos, um extenso e profundo sulco marcava o barro vermelho da ladeira. Nos períodos de chuva os carros tinham dificuldade de transitar.  Logo abaixo, à direita de quem desce, havia uma mata rala com escassas jurubebas e algumas plantas enfezadas que serviam de esconderijo para nossas brincadeiras de “mocinho e bandido”. Na verdade, não era um frequentador assíduo daquelas plagas.  Meu irmão Robson e eu, no entanto, por conta de um amigo que morava  vizinho a este matagal, de vez em quando íamos lá brincar
Lembro do momento em que ali eu enfiei o calcanhar na roda traseira da bicicleta do Val (Florival). Havíamos saído em grupo, de bicicleta, para o Catolé. Um tio materno, Manuel Góis, fazia parte. O Robson estava na garupa de sua Monark. Eu era mais leve e fiquei na garupa do  Val. Ele montava uma bicicleta Mercury, de mulher,  da irmã dele, Yara Barreiros.  Alguns anos mais velho, padecia de um membro inferior com sequela de paralisia infantil. Brigão, possuía braços fortes e um tronco avantajado e havia algo de radical na sua conduta. Comigo  ele era legal.  Chamava-me até por um apelido, “Nonda”, que eu havia adquirido numa escolinha para crianças.
Naquela  tarde o pessoal resolveu voltar pelo Tabuleiro. Era uma aventura.  O arrodeio  era desnecessário, posto que do Catolé alcançava-se Bebedouro facilmente, sem malabarismos geográficos. O fato é que, ao chegarmos no topo da descida, O Val gritou que eu devia me segurar e pedalou ladeira abaixo. Apostava velocidade. Sua deficiência, certamente, o compelia a competir de todas as formas. Tentei me segurar como podia. Foi nessa que enfiei o pé na roda. Ferida feíssima que demoraria a cicatrizar...
Mais acima do ponto onde eu estacionara, em direção ao Sanatório, havia  um “terreiro” onde se dançava xangô. Muitas noites despertei sob o batuque desses rituais. Já estava taludinho quando fui assistir a uma dessas “sessões”. Os amigos, um pouco mais velhos, experimentaram do xequeté, uma mistura alcoólica, comum nos terreiros de macumba. Com relutância, o Pai de Santo, permitiu que acompanhássemos o ritual. Nunca me detive muito nessas lembranças. O que restou foram mulheres de saias longas dançando em roda. De vez em quando uma delas era “Incorporada” por alguma entidade, ficava estranha, rodava sobre si mesma e era amparada pelas companheiras. O cabelo era solto e ela sumia do salão de danças. Os comentários dos amigos seriam no sentido de uma suposta visita a um altar instalado em um cômodo contíguo, sob a supervisão do Babalorixá.

Mas agora está mudado. Um asfalto substituiu o barro. O sítio do meu amigo transformou-se num conjunto residencial. O que ainda não mudou foi a visão da lagoa e a bonita fachada do “Asylo das Órfãs”.
Enquanto descia a Ladeira do Calmon, busquei mais retalhos da minha convivência no bairro. Atravessei a linha férrea e vislumbrei, à esquerda, a Igreja Batista. Logo veio a figura do pastor Plácido, um bigodudo e carrancudo cidadão, cuja simpática filha Nancy era amiga das minhas irmãs. Mas foi ali, sacrossanto sítio onde pastor Plácido pregava o evangelho, que o Major Bonifácio, anos antes, associar-se-ia a amigos intelectuais e amantes das profanas tragédias gregas (seu Teles, seu Anísio Costa e outros) para fundar um teatro, segundo consta no livro da escritora Ilza Porto sobre o avô Bonifácio.
A Rua Bruno Ferrari, que na minha infância e adolescência denominava-se 25 de Dezembro, é o traço de união entre a Rua Passos de Miranda e a Praça B. Silveira. Sua continuidade no sentido oeste terminava  na casa construída pelo  industrial Jacintho Nunes Leite,  anterior e lateral à Matriz. Com o redesenho para ampliação da praça, o tráfego  em frente à igreja foi interrompido. A Praça tornou-se um prolongamento externo da igreja. Com essas mudanças, os veículos que descem pela Ladeira do Calmon com destino a Maceió não podem seguir em frente até  à R. Cônego Costa, a rua principal do bairro.
Houve um tempo  em que o bonde elétrico era um dos meios de transporte mais ativos do bairro. Sem que atentasse para o fato, testemunhei os estertores desses veículos. Em Bebedouro, o bonde morreu aos poucos. Primeiro, deixou de circular na Praça Bonifácio Silveira. Depois passaria a parar cada vez mais distante da Matriz de Santo Antonio. Seus últimos terminais ocorreriam nas “Mangueiras”, em frente à Vila Lilota,  na época mansão da família Leão.
Os bondes tiveram seu apogeu.  Há relatos assegurando que durante as principais festas do ano, sobretudo no Natal, os bondes de Bebedouro tiveram singular importância. Com efeito, as festas promovidas pelo lendário Major Bonifácio Silveira eram o que de melhor havia de festejos na capital e no interior. Descrevia-se a presença de caravanas até de outros Estados, atraídas pela criatividade e animação nos folguedos.
Quando eu me entendi de gente, havia no ar uma nostalgia, uma orfandade do Major Bonifácio Silveira. Não faz muito tempo busquei conhecer melhor o mítico festeiro. Ao debruçar-me na sua história, deparei-me com outra figura que é pouco lembrada: Jacintho Nunes Leite. De fato, Nunes Leite foi um imigrante português que por aqui aportou em 1860. Apaixonar-se-ia pelo arrabalde, por suas águas correntes claras e abundantes, como as do Rio Silva. O braço da lagoa parecia um manancial  inesgotável de alimentos, sobretudo do sururu. Aliás, ainda alcancei uma pesca abundante, ali mesmo nas margens da lagoa, perto da ponte. Como queria dizer, Bebedouro era um sítio de muitas fruteiras, de clima agradabilíssimo, refrescado por brisas suaves vindas do sul.
JNL era um empreendedor atento. Graças a isso, o bairro se transformaria. A começar pela transferência do cemitério, primitivamente localizado na praça onde se situa a Matriz. Não é fácil mudar esse equipamento. Afinal, restos humanos  não podem ser tratados de qualquer jeito. Mas o fato é que o ousado imigrante promoveria a mudança. Idealizador da primeira fundição do Estado, garantiria os portões de ferro da nova necrópole.
Sob a influência de Nunes Leite, a Matriz de Santo Antonio teria nova roupagem. As paredes internas foram revestidas de azulejos de Portugal. Os velhos sinos seriam substituídos por novíssimos, confeccionados na fundição do benemérito. Com loja na R. do Comércio, colocou em Bebedouro uma fábrica de vidros e em Fernão Velho instalaria o que viria a ser a Fábrica Carmen, de tecidos. Várias picadas seriam abertas, desde a Cambona, para permitir a circulação de bondes por tração animal, cuja concessão adquirira. Foi de sua iniciativa botar água encanada em Bebedouro e no centro da cidade.
Politicamente, JNL era influenciado pelos ideais abolicionistas que causavam incômodo aos industriais da cana de açúcar. O fato de possuir uma fundição à altura das necessidades do mercado, não era admoestado de forma aberta A casa mais emblemática do bairro foi construída por ele. Ainda de pé, habitada por um dos descendentes, na Praça Bonifácio Silveira.
Com a morte de JNL, no segundo decênio do século XX, a figura de outro abolicionista reluziria: Bonifácio Magalhães da Silveira. Pernambucano de nascimento, cedo transferiu-se com a família para Alagoas. Funcionário público, major da Guarda Nacional, político, escritor, memorialista, ator, era, sobretudo, um “agitador cultural”. Tratava-se de um festeiro nato. Na minha infância e adolescência conheci pessoas que conviveram intimamente com o Major, como era chamado. Entre os parentes de Bonifácio Silveira cabe destacar seus irmãos Luiz, fundador da Gazeta de Alagoas e Faustino, professor de matemática e pai da psiquiatra Nise da Silveira.
 A fama de  Bebedouro como um bairro de elite vem dessa época. Ainda não havia o hábito da beira mar. Depois da arrumação promovida por Nunes Leite, o arrabalde passaria a chamar a atenção, justamente quando o Major decidiu retirar o bairro do “marasmo. Bebedouro sairia da condição de simples “corredor rodoviário” em direção ao interior e passaria a ser visto como um polo de festejos, onde as pessoas podiam divertir-se de forma sadia, com a comodidade de transportes por trilhos (bonde e trem) e rodoviário. Não obstante, a via principal de acesso não ser calçada. Ainda havia a opção fluvial, lacustre, desde o Porto das Balsas, na Levada.
Havia grandes dificuldades em se conseguir alugar uma casa para  esses períodos. Datam do segundo decênio do século XX as construções das mansões no Mutange, quando famílias mais abastadas ou erguiam esses casarões para morar definitivamente ou, simplesmente, para veranear. O carro-chefe dos festejos de Bebedouro era o Natal. O São João também era animadíssimo. Tudo leva a crer que os folguedos carnavalescos eram partilhados com o centro da cidade. Havia os corsos, os clubes sociais, os desfiles de escolas e os banhos de mar à fantasia. Era difícil mesmo competir com tanta pluralidade.
Nasci na Rua Cônego Costa, 3863, tendo o meu pai como parteiro. Alguns anos depois, fomos morar vizinho ao Asilo Bom Conselho, no número 3703 da mesma rua,  numa casa antiga do começo do século. Ficava numa calçada alta. Três casas ocupavam essa elevação. Era uma espécie de cartão postal do bairro. Havia também uma calçada alta em frente. Com essa disposição topográfica ficava evidente  que o morro havia sido cortado para permitir a continuidade da via.
São poucas lembranças da casa onde  nasci. Das raras - é possível estar enganado- quero crer que uma babá, Sra. A., generosamente, oferecia os fartos seios para um trabalho de treinamento muscular oral do futuro neurocirurgião. Anos mais tarde, A. seria minha paciente no Hospital Universitário. Ela era um tanto boquirrota  e terminava contando para os meus alunos que havia sido minha babá. Aguçava a curiosidade da estudantada ao relatar que eu era muito danado... Quero crer que nunca tenha entrado em  pormenores “sórdidos”.
Na minha visão de criança, a nova casa, vizinha ao Asilo,  era grande. Mais espaçosa que a anterior. Mais iluminada por janelas laterais que davam para o jardim. Tinha quatro quartos e uma varanda/jardim lateral delimitada pelo paredão  do Asilo. Havia um coqueiro central e um pé de jasmim colado no muro da frente. Causava admiração de uma árvore tão ressequida brotarem flores tão cheirosas... Minha mãe cultivava roseiras, mas as inclementes saúvas faziam grande estrago. O imóvel era alugado ao Asilo e tinha sido moradia do Monsenhor Tobias, um educador muito influente. Capelão do colégio, era gago e um emérito contador de anedotas nem sempre piedosas.
Meu pai criava galinhas e patos, no pequeno quintal, consumidos pela família que aumentava a cada ano. Criar galinhas não era à toa. Naqueles dias, as mulheres no puerpério faziam uma quarentena tendo o caldo de galinha como pièce de résistance. Alguns passarinhos gorjeavam  na nossa varanda. Eram poucos, mas exigiam cuidados. Certo dia, a empregada descuidou-se e o sofreu de estimação nunca mais foi visto. Mesmo destino tiveram dois galos de campina. Desta vez, o pai resolveu abrir as gaiolas. Com toda certeza, passarinhos em cativeiro não eram o seu forte. Gatos também não faziam sua cabeça. Um vira-lata, Rex, seria criado entre nós desde a mais tenra idade. Era um policial miscigenado, de abundante penugem negra e muito desobediente. Latia com estranhos, o que parecia ser uma característica aceitável. Nas brigas entre os irmãos, Rex se agitava, latia, rosnava e, finalmente, tentava interferir na contenda. Mordia a mim. Rex não era tão valente nas disputas com outros cães. Certa ocasião, cobrir-nos-ia  de particular vergonha: o cão do jornalista e político JA, com quem meu pai mantinha insalubre distanciamento, deu uma decepcionante montada por trás no Rex. Por tudo,  ele não nos orgulhava. Talvez essa seja uma das razões que me fazem manter distância de tudo que rosna, late e às vezes morde.
N
ossa avó paterna, Docinha, morava conosco. O marido, meu avô, Francisco Cavalcante de Mendonça (“Chico do Brejo”), falecera aos cinquenta anos. O irmão mais novo do meu pai, Breno, era uma espécie de nosso irmão mais velho. Habitávamos o mesmo quarto, nosso tio, o meu irmão Robson, mais velho um ano e meio, e eu. Nessa época, 1953-1954, já éramos sete filhos. Desses, cinco eram meninas.
O Asilo Bom Conselho tinha sido fundamental na vida da minha mãe, Rosinha. Nascida em Atalaia, ficou órfã do pai, Francisco Aureliano de Medeiros Cabral (um espirituoso rábula), aos quatro anos. A apertada situação financeira da viúva a impeliria a internar duas filhas no Bom Conselho. D. Rosinha passaria nove anos no Colégio. Foi a oradora da turma. Provavelmente, pela primeira vez, sairia do Asilo Bom Conselho uma turma com o título de “professora rural”. Até então, as meninas estudavam português, matemática, história, geografia, francês... Aprendiam a costurar, a bordar, cozinhar, lavar chão e jardinagem. Ao saírem não tinham onde trabalhar a não ser como domésticas. A opção B seria tornarem-se amantes de algum nababo até que a velhice as transformassem em peças descartáveis. O paraninfo da turma da minha mãe foi o Dr. Ib Gatto Falcão.  Uma maneira que as alunas tiveram para demonstrar a gratidão pelo seu empenho em formalizar o curso do Asilo.
Minha mãe pouco exerceu o magistério. Faltava-lhe uma certa dose de malícia. Breve foi sua passagem como professora na Usina Brasileiro. Contou-me que numa ocasião os alunos foram queixar-se que um deles havia lhes “dado dedos”. Eram  gestos desconhecidos, digamos, num mundo do qual ela não tinha a exata dimensão do funcionamento. A aplicação como aluna do Asilo, contudo, não fora em vão. Aprovada em um concurso para a LBA, livrar-se-ia das pequenas pornografias infantis. Ao casar, a LBA seria página virada.
O que teria levado meu pai a morar em Bebedouro é uma pergunta que amigos me fazem. Certamente não foi atraído pelo dinheiro das “elites”. O bairro estava em decadência. Nascido em Pilar, de tradicional família ligada aos engenhos de açúcar,  o menino José Lopes passaria cinco anos interno no Colégio Diocesano. Concluído o curso secundário, foi para Recife, onde faria dois anos de complementar e o vestibular. O foco era a medicina. Ao pegar o trem, o pai o advertira: “Cuidado com o chapéu novo. Quando botar a cabeça fora da janela, segure com as mãos!” Doze horas de viagem. As expectativas de uma nova realidade fariam o adolescente Juquinha, como era chamado, esquecer as recomendações. Aos anúncios da chegada a Recife dentro de poucos minutos, a curiosidade o impeliria a vislumbrar a nova cidade. Adeus, chapéu. Morando numa pensão para estudantes, economizar qualquer tostão para voltar para casa com um chapéu, era uma questão de honra. Ao regressar em junho, sequer ousou arriscar colocar o apetrecho na cabeça. O pai, meio desconfiado, enquanto batia suposto pó, comentaria: “Está novinho. Não usou?” Juquinha teria replicado: “É que em Recife o pessoal está abandonando esse costume”.
Em Recife, alguns fatos foram marcantes para meu pai: 1) Convocação para servir o Exército em plena guerra, onde chegaria ao posto de cabo “padioleiro”; 2) A venda do engenho, uma ferida narcísica que nunca chegou a cicatrizar completamente; 3) A doença do pai, que ele adorava, culminando com sua morte; 4) O casamento com minha mãe.
 Estava cursando o quarto ano de medicina e gozava férias, aqui em Maceió, quando o pai dele, meu avô, passou mal. Ele diagnosticou que seu pai estava tendo um “Edema Agudo de Pulmão”. Em casa, sem qualquer recurso, tentou uma “medida heroica”: a sangria. Cortou uma das veias do braço do pai e salvou-lhe a vida. Meses depois, novo Edema Agudo se instalaria. A morte do pai ensejaria sua baixa no Exército. O fantasma de ir para o front na Itália estava afugentado.
 Formado, a decisão de morar em Bebedouro teria sido influenciada pelo fato da sogra, minha avó, casada em segundas núpcias com um fiscal de renda, morar no bairro. Além disso, não havia médicos na região. A circunstância do meu pai ter passado boa parte do curso como interno na Maternidade de Olinda foi fundamental. Mesmo levando-se em conta que os médicos eram mais bem preparados, fixar-se numa cidade de interior (Bebedouro era quase isso) sem prática em obstetrícia, aterrorizava o recém-formado.
E foi justamente isso que aconteceu. Clínico Geral, médico da Casa de Saúde Miguel Couto, chefe do Serviço de Verificação de Óbitos, meu pai era convocado com certa frequência para fazer partos em residências. Geralmente para casos mais complicados que as parteiras não conseguiam resolver. Alguns eram remunerados. A maioria, Deus os pagava. De qualquer forma, foi uma vida muito rica do ponto de vista humanitário. De manhã cedo, meu pai tinha o hábito de abrir a janela e dar uma olhada na rua. Aquela salutar mania de deixar o ar da manhã entrar na casa... Não há como afirmar que ele ficava surpreendido com a fila que havia se formado. Pessoas de todas as idades, sobretudo mães com crianças nos braços. Minha mãe contava que ele a chamava e dizia: ”Rosinha, veja isso! Que quantidade de gente é essa? O que essas pessoas estão fazendo na minha porta a essa hora?”. Todos sabiam o que elas queriam. Aí, o meu pai, mais uma vez, “surpreendia” minha mãe. Depois de tomar um rápido café com dois ovos à la coque e de fumar um Continental sem filtro, sentava no bureau que ficava no corredor da casa, estetoscópio ao pescoço, e ia atendendo. Abria a gaveta de amostras, explicava como fazer e recomendava: “Se não melhorar, volte amanhã”. Ninguém saía de mãos vazias. O melhor da festa: tudo de graça.

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