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segunda-feira, 4 de julho de 2016

O urbano em construção. Maceió e textos de excelência sobre a cidade na década de trinta





ESTES TEXTOS FORAM PUBLICADOS PELA CASA RAMALHO EM UMA REVISTA DE SUA PROPRIEDADE. FORAM REPUBLICADOS EM CAMPUS,  O DIA. VALE A PENA SENTIR COMO ERA A CIDADE.

Eu tenho a maior admiração pelo Professor Ramalho que foi uma pessoa de extrema generosidade para com Alagoas e que merece uma tese sobre sua obra notável.  Infelizmente, nada de grande importância foi escrita sobre ele que bem poderia ter sido tomado como um marco a partir do qual se poderia comentar sobre a vida cultural de Alagoas. Esta é outra grande ausência de nosso carnaval, imitando o frevo de Nelson Ferreira sobre Mário Melo. Nada se tem de peso sobre nossa história cultural, o que pode, a longo prazo, ir sendo refeito por trabalhos de maior fôlego em nossa p´s graduação. Bem ou mal, mestrados e doutorados na UFAL vêm renovando a produção intelectual de Alagoas, em diversos setores.  
No entanto, continuam a fazer falta, textos que produzam boas sínteses de nossa vida cultural, dentre eles sobre  os abnegados editores que tivemos, dentre eles, a CASA RAMALHO. 
Esta revista chamada Alagoas, é um luxo, uma preciosidade. Leia alguns textos.


inédito
Carlos Paurílio
               
                 
A Rua da Lama tiritava de frio, sujava-se em poças imundas, em sarjetas estagnadas. A água caída do céu não a lavava, porque a razão de seu nome vinha menos da rua que de seus moradores.

                Era madrugada já, e ela ainda não dormia. Espiava pelos olhos velados de suas janelas os retardatários que passavam. Escutava os apitos dos guardas civis, cuja distração no momento era justamente apitar.

                Noêmia recolhera-se cedo. Sua janela era a única que não estava aberta. Rodrigo, debruçado sob a lâmpada, lia ainda. Estudava e refletia nos seus projetos. Apesar de toda sua coragem, de todo seu orgulho, de todo seu sacrifício, o futuro lhe surgia incerto, obscuro. Haveria de ser o único e insubstituível arrimo de sua mãe. Assim, não sentia cansaço aprendendo até alta noite nos livros de escrituração. Não sabia ele que, ao mesmo tempo, velava como uma sentinela.

                Vozes roucas, lá fora, gritavam palavras obscenas alternando com gargalhadas canalhas. Às vezes se intercalavam soluços. Era a existência ignóbil do meretrício, de que se defendia apenasmente com a madeira de uma porta fechada.

                Quando saía, surpreendia faces macilentas, não refeitas das noites de prazer barato e ainda sorrindo insaciáveis. O vício atraía a inocência como a cobra ao passarinho. Algumas eram de uma beleza fanada. Outras tinham no olhar um jeito de pedir de mendigas. Nenhuma delas, todavia, o amedontrava. Sua proximidade só era perigosa para os que vinham de longe procurá-las.

                Essa madrugada era como todas as outras na rua da Lama. Nada diminuía o mercado fácil de carnes famintas, parecia mesmo aumentar com o frio, a chuva, a lama.

                Rodrigo não sabia do navio de guerra estrangeiro fundeado no porto. Homens desconhecidos, vindos de terras longínquas, descontavam-se das longas viagens, dos dias perdidos na casta solidão dos mares. Marinheiros bêbados procuravam mulheres, que não tornariam a ver mais nunca.

                Súbito, alguém bateu à porta. O rapaz teve um sobressalto. E, à medida que as pancadas continuavam, o pânico tomava seu coração. Agora eram murros formidáveis que abalavam os postigos. Noêmia levantou-se chorando, gritado.

                - Não abra, não abra!

                 Como ele a ahou bela, nesse instante, sua mão! Tinha os cabelos derramados sobre os ombros. Um perfume intenso, inebriante, se desprendia desses cabelos e inundava a sala toda. Jamais a vira assim na sua vida.

                - Não abra. Não abra!

                O pavor deixava-o sem fala, sem um gesto, pregado numa cadeira de chumbo. Se os brutos rebentassem a porta e invadissem a casa, ambos seriam sacrificados. Ele era fraco, sua mãe era bela.

                O barulho prosseguia tão perto deles que não sabiam o que fazer. Haviam errado a casa, com certeza. Eram os marinheiros embriagados.

                Com uma força superior a ele, Rodrigo foi escorar-se à porta, como si seu próprio corpo pudesse ser outra barreira. Ouviu correrias, apitos. As pancadas cessaram. Viu uma claridade indecisa filtrando-se através as frinchas das janelas. Felizmente já era dia. Estavam salvos.

A invasão do bangalô
Valdemar Cavalcante
              
                 O bangalô está tomando conta de Maceió. É uma realidade que constato com a maior melancolia deste mundo. A fisionomia urbana vai se modificando a olhos vistos, e não para melhor: vai se transformando do simples que é o tradicional, para o arrebicado do exótico.

                Ventos não sei de onde trouxeram-nos esses figurinos de casas como a última novidade da civilização. E ninguém agora quer ficar fora da moda.

                Não há mais um só arrabalde que não ostente seus bangalôs de classe. São o seu atestado de conduta em matéria de progresso. Cada qual que seja mais cheio de arrebique e de fricote. Umas coisas esquisitas, em geral de um tipo que é um cock-tail de estilos arquitetônicos. Legítimos bolos de noivos.          Nos bairros pobres se sobressaem violentamente no meio de casas pequeninas e humildes, de porta e janela, sem nada do luxo duvidoso  e do mau gosto ostensivo dos tais bangalôs. E se sobressaem como construções “nouveau-riches”.

                Um passeio de bonde pelo Farol ou pela Pajuçara nos dá a ideia exata da vitória desse tipo arrivista de habitação, que não consulta questões de clima, de higiene, de tradição ou de gosto: que contraria mesmo qualquer esforço de acomodação ecológica. Os ricos não querem mais saber de conversa: se o chic é o bangalô, se é o modelo mais em voga nas grandes cidades, toca a fazer bangalô, em sistema suíço, holandês, britânico, escandinavo, sei lá. Até em gênero polar, se é que já chegou ao polo a praga do bangalô.

                É tão triste que faz rir: são casas de telhado em ponta para a neve descer: de janelas estreitas, parece que para evitar o frio que vem lá de fora,  de trepadeiras quebrando a ventilação; sem quintal nem, jardim. Sei de uma que possui até uma longa chaminé londrina, provavelmente a chaminé da lareira.

                O mais comum é um padrão granfino, adotado com sucesso,  as acomodações para bonecos e não para gente de verdade. Forros modestos, que não admitem móveis amplos nem mesmo gestos largos. Tudo catita. E o distinto avaliem que está na entrada em forma de saleta de espera, onde em geral se localiza um grupo de vime, com um jarro de flores artificiais na mesa. Um ambiente que comporta alguns números de Fon-Fon e conversas moles de visitas sem cerimônia. É o que há de mais moderno, este tipo novo de casa que já se alastra assustadoramente pela cidade.

                E outra coisa: são todos agarrados uns aos outros, como se comprimindo para aproveitar o terreno.

                O pior é que por isso tudo anda a colaboração decisiva de alguns dos nossos engenheiros arquitetos, na realidade os maiores responsáveis por essa transformação da nossa fisionomia urbana tradicional. Em vez de orientarem o gosto do povo, no sentido das casas onde o conforto nçao fosse uma epressão de luxo mas de bem estar, se limitam a amarrar o burrom onde o dono do burro manda.

                Onde os bons chalés de antigamente? Desapareceram aqueles de telhados se esparramando pelos lados em alpendres onde é tão bom armar uma rede para ler um romance ou tirar uma soneca depois do almoço. No fundo, ou o lado, a mangueira dando frutos à mão, o cajueiro todo virgulado a cores, boas árvores de sombras camaradas, excelentes para pic-nics.

                Será que em Maceió já estamos precisando de economizar terreno por excesso de população? Nada, o que há é interesse demais, gente que tem um terreno miúdo querendo fazer duas, três casas, embora uns cochichólos, verdadeiros fornos de padaria.

                Parece que entre nós tomaram muito ao pé da letra a expressão do grande arquiteto Frances: casa, máquina onde morar. Os nossos bangalôs são máquinas. Máquinas do inferno de tão quentes e feias.



A Rua do Açougue transforma-se

Manuel Diégues Júnior
             
               A rua do Açougue (desculpem chamar assim, não tenho jeito de dizer Avenida Moreira Lima, como não me ajeitava de dizer Nilo Peçanha) está se transformando. Tomando outro aspecto. Outro ar diferente daquele com que a conhecemos há tantos anos. E essa transformação não é propriamente topográfica:  é antes, e sobretudo, social. Um novo colorido domina a Rua do Açougue. Mas colorido profundamente racial. O tipo da rua de sírios; de sírios, gritando, na sua linguagem atrapalhada, para os vasinhos; sírios negociando com bugigangas, expondo meias, camisas, bonés; com seus vastos bigodes como que com a volúpia de esconder as palavras erradas que diz em português; esse tipo, tipo no sentido de elemento característico, é que está tomando conta da rua do Açougue.

                Uma verdadeira área em transição, com a mobilidade do grupo social e comercial, essa que se está sentindo apossar-se da rua do Açougue.

                Não seria de estranhar essa mudança de aspecto social de uma de nossas ruas. Teria de haver certamente pelo próprio sentido de caracterização das áreas urbanas. As cidades têm sua fisionomia própria, o seu característico. E dentro da cidade são as ruas que dão o ar diferencial de cada zona. Que lhe caracterizam a fisionomia: ou os olhos, ou o nariz, ou a boca. Há até cidades a que falta qualquer coisa. Então a rua cobre-se de árvores escondendo-se dentro delas como fugindo ao contrário do visitante. A rua Oswaldo Cruz no Recife, para citar uma. Mas há outras que se escancaram ao primeiro que aparece para vê-las. Entregam-se todas com um sorriso nos lábios, sem a menor cerimônia. São propriamente as cidades marítimas. A Baía, por exemplo. Já Pelotas é o contrário; esconde-se dos visitantes, ficando La longe do porto, entre árvores frondosas e belas como que se agasalhando do frio do sul.

                Pois bem, dentro de cada cidade as ruas têm o seu característico. E não há cidade que não tenha sua rua síria. Quase sempre os negociantes são de nacionalidades diversas: sírios, libaneses, trucos, polacos, russos. Mas a população chama genericamente por uma só nacionalidade, quase sempre a mais influente pelo número. E há casos mesmo em que esse nome fica na rua: a dos Judeus, no bairro do Recife. Em S. Paulo chamam mesmo sírios. São os antigos “mascates”,  vendedores ambulantes, que vivem de cidade em cidade, até que um dia se deixam ficar numa rua, instalando seu bazar de variedades. Entre nós, varia a denominação: ou russos ou judeus de um modo geral. No Recife chamam turcos os que se espalham com suas gravatas, meias, lenços, vidros de perfume, pelas ruas. Há também os sírios: os que tomam conta de um quarteirão inteiro, de dois, de uma rua toda. A Rua do Rangel, no Recife, só tem nome sírio nas tabuletas das casas comerciais.

                A rua do Açougue está tomando este caráter. Não cheguei a investigar se são mesmos sírios os que estão dando esse novo ar à velha rua do Açougue. O certo é que há mesmo um trecho que não há que ver trecho de casas sírias da rua 25 de Março, em S. Paulo, ou da rua do Rangel: o que vai da esquina da Boa Vista à da Alegria. Os mostruários de bugigangas nas vitrines, as camisas dependuradas, os sabonetes suspensos por cordões, bolsas escolares, brinquedos de crianças, a variação do colorido dos objetos expostos, tudo isto tem um ar profundamente sírio. Um jeito bem característico. Se não exclusivamente sírio, libanês, russo, também. Influência possivelmente de um tronco único: o semita, esse gosto pela exposição, pelas rutilâncias exteriores. Verdadeiro bazar de miudezas faiscando.

                E considerando a observação do Prof. Deffontaines sobre os sírios de São Paulo, quando um chega instala-se modestamente, vai prosperando e mandando buscar outros patrícios para vizinhos, não teremos dúvida que a rua do Açougue está se transformando. Mais até do que a simples visão demonstra. Está mudando a sua roupagem simples, a sua fisionomia deliciosa tão  alagoana com suas pretas vendendo sururu nos tabuleiros. E os peixes fritos, talvez ainda hoje os haja, cheirando e abrindo o apetite do transeunte.




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