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sábado, 7 de junho de 2014

Luiz Sávio de Almeida. Meu velho diário e a macumba nas Alagoas








Texto  publicado em Contexto de 20 de novembro de 2011 em Tribuna Independente. Para este blog, estamos utilizando material digitalizado e com gerenciamento das imagens realizado por Kellyson Ferreira, com a coordenação do Professor Antônio Daniel Marinho.

 

 

 

 

 

 

 Um pequeno bilhete sobre a Macumba nas Alagoas


Luiz Sávio de Almeida

 

 

O mês é de negro, como o ano todo deveria ser. Tomei a liberdade de abrir o meu Diário e escancarar um pedaço, aqui em Contexto. Há problema: o texto não foi escrito para ser publi-' cado, mas como espécie deajuste de conta pessoal. No entanto, quem sabe ele seria interessante depoimento sobre a vida cultural de uma época alagoana? Vamos em frente que atrás vem gente! Fica um grande abraço de Contexto aos que se foram e aos que estão na vida desanto. Nada existe melhor do que a garantia constitucional da liberdade de culto. Esperem! Estou errado: nada melhor do que efetivamente existir a liberdade.

 Quero prestar uma homenagem à memória de Clóvis Moura, um amigo praticamente irmão sobre quem organizei um livro, prefaciei um dos seus e escrevi um texto em outro por ele organizado. Prestar uma homenagem ao Edson Carneiro que ouvia, pacientemente, as minhas arengas de menino; ao Joel Rufino que me ensinou a plasticidade de ser negro e ao Mário Maestri que me forneceu base sobre inúmeros pontos da história negra. No próximo, falarei de minha gente alagoana.


Sávio de AÍmeida

  Meu velho diário e a macumba nas Alagoas 

Luiz Sávio de Almeida

 

Algumas singelas recordações ajudam a situar este texto, que não pode ser pensado além de simples depoimento, espécie de testemunho. O tema das “religiões afro-brasileiras” sempre me foi caro, embora o tivesse deixado, na medida em que fui passando de interesse centrado na antropologia para formação acadêmica em história, retornando a uma espécie de vocação descoberta pelos idos dos 14 anos de idade e, de certa forma, ajudado por Félix Lima Júnior. O Rio Una sabe da minha história, conhece o fascínio que me despertavam os livros sobre folclore, história e como eu andava pela Biblioteca Pública Municipal de Palmares, cidade pernambucana onde vivi parte da adolescência e onde existiu a famosa Biblioteca do Clube Lítero-Recreativo.
 

Na medida em que sondava sobre o que iria dar o depoimento sobre o mundo negro, entendi que não podia ficar em mera evocação, pois tocava em algumas veleidades de natureza “científica”, palavra grifada para acentuar certa antipatia que me desperta, da mesma forma como grifei “religiões afro- -brasileiras” expressão que possivelmente nem de longe raspa a densidade do que se chama Xangô em Alagoas, também conhecido como seita por muitos dos velhos amigos com quem convivi pelos terreiros de Maceió durante uns dois densos e consecutivos anos, lá pelos tempos dos sessenta, inclusive na companhia de Marcelo Texeira, Bráulio Leite Júnior que ainda estão mais vivos do que eu, que já me considero excelente candidato a fantasma.
 

A construção do texto tornou-se um problema; como fazer a escrita comportar a evocação, o testemunho e ainda por cima caracterizar uma linha de informações conseqüentes e úteis sobre os temas enfocados? Desde o início, tomei uma decisão: o tom coloquial seria a marca desta anotação, mas posto de modo a não perder a precisão, devido à objetividade que deveria ser a característica fundamental. Por outro lado, o trabalho não poderia ser uma espécie de divertimento de quem vai encontrando pedaços de sua própria vida ao remexer em velho e amarelado arquivo. 

A ANDANÇA PESSOAL.
 

É preciso dar um salto de Palmares para Maceió e antes para Natal no Rio Grande do Norte, onde conheci Cascudo. Aqui fiz uma amizade que marcou muito do que tento realizar; conheci o Professor Theo Brandão, pessoa de finíssima inteligência, pròporcionando-nos uma obra rica e inestimável, pronta para ser rediscutida, retrabalhada, buscar sua significação real. Era médico, como muitos dos intelectuais de sua geração.


Theo argumentava que o estudo das tais religiões havia sido negligenciado em Alagoas, apesar de Arthur Ramos ser do Pilar, mas cuja obra foi fundamentalmente baiana. Era como se houvesse uma cobrança de sua parte: era daqui e qual a razão de não ter estudado? Quando perguntado pelas suas razões, Theo respondia não sentir-se com base suficiente para enfrentar o tema e, também, não desejava afastar-se do que vinha sendo a sua preocupação: folguedos e literatura popular, especialmente contos. Daí, insistia comigo para cair na área - deve ter feito o mesmo com outros -, pesquisar, estudar e talvez daí - quem sabe? - tenha influenciado Marilu Gusmão (de saudosa memória) a tratar do tema.
 

Na verdade, quase todos os dias em que conversávamos batíamos na história do afro- -brasileiro, várias vezes com a presença do Carlos Moliterno, que não se interessava pelo assunto. Formava-se, como se dizia, uma chacrinha. E na verdade o Theo encontrava uma pequena platéia para escutá-lo. Em virtude da grande influência que o Theo tinha sobre mim, fui pouco a pouco me aproximando dos terreiros, mormente através de um amigo: o finado Celestino. Celestino era da Secretaria de Educação, muito ligado à turma da Igreja de São Benedito. Celestino, Belarmino, Joca e Luiz Marinho (todos da seita, da lei, da religião) foram companheiros de muitas andadas por Maceió. Celestino era Babalo- rixa Ijexá, Luiz Marinho era Nagô; Joca (falecido) era pedreiro e Belarmino era coronel da polícia. Ele e eu somos os únicos vivos do quarteto. Não perdiámos uma saída de Iaô, sempre maravilhosa noite de festa.
 

Foi através do Celestino que me aproximei da Federação dos Cultos Afro-Brasileiros de Alagoas, entidade que tinha sede na Ponta Grossa. Não me lembro da rua, mas sei que era perto do terreiro do Luiz Marinho. Além de Babalorixá, Luiz Marinho tinha uma banca de vender sapatos no mercado, lados da Feira do Passarinho, perto de um outro Luiz que me vendia folheto de feira e revista velha. Os dois já foram desta para melhor.
 

O fato é que passei uns dois anos coletando material sobre inúmeros terreiros que existiam em Maceió, gravei, entrevistei, fotografei, filmei... Era um trabalho constante, enquanto lia a bibliografia aconselhada pelo Theo Brandão, num improviso de leitura que Maceió obrigava. Não se ia muito além de Edson Carneiro, Roger Bastide, Arthur Ramos...
 

Era para ler o que se podia dispor naquele tempo, especialmente na biblioteca do professor. Pouco a pouco, contudo, fui me distanciando do tema, mas guardava o material com extremo cuidado, consciente de sua importância futura para algum pesquisador que se atrevesse no ramo.


Hoje, sem dúvida, seria de primeira linha, mas a vida tem passos que podem ser considerados terríveis. Por razões de doenças na família, tive que deixar a documentação armazenada em lugar impróprio e, por descuido mais do que imperdoável, o cupim a tudo comeu, restando um denada, insignificância frente ao volume original. Apenas restaram umas poucas notas e um caderno com o endereço de 185 casas de culto. Não é material de grande importância, quando comparado a umas dez pastas que se chamava de AZ; o conteúdo é extremamente inferior ao que foi destruído. No entanto, decidi dar um arranjo ligeiro e publicar o que sobrou. A certeza da utilidade jamais deixou de estar presente, pois os depoimentos deste tipo, ajudam a construir um pouco a história da cultura em Alagoas


UMA AFIRMATIVA DO THEO


Volto ao fato de que Theo identificava um afastamento da inteligência alagoana, dos temas relativos aos cultos afro-brasileiros. Eu não me lembro dos motivos e das razões que apresentava para o fato. No entanto, tomando o mote, admito a possibilidade de que a temática virou espécie de tabu intelectual pelo fato de ser negra.


O fundamental nos comentários do Theo, era a guarda de aura de mistério, indicando que deveria ser resolvido. Para mim, a questão hoje passa pelos momentos integrados da sociedade, Estado e da própria inteligência.
 

Discutir a temática é instigante e chego a pensar que, neste contexto, a discussão tem peso bem maior do que a própria conclusão. Para mim e tratarei disto em outros depoimentos, em grande parte tem-se o privilegiamento ibérico do folclorismo alagoano: o senhorial sempre foi ibérico e o folclorismo alagoano não ia ao povo, mas ao velho reduto ibérico, salvo desvios acontecidos nessa rota. Seria muito difícil encontrar guarida para este iberismo nos terreiros de xangô, pois mesmo a composição santo/orixá era decretada pelo lado negro da identidade ou, melhor dizendo, da similaridade construída e difundida.
 

A MATRIZ DO POLICIALESCO
 

E dentro desse espaço aberto de discussão sobre o tema, que entedemos não ser possível deixar de levar em conta o papel da formalização do mando desde os tempos coloniais. Esse é um dado óbvio, sendo tão lugar comum quanto é considerar o império do católico, determinado, oficialmente, como a ligação preferencial entre o sagrado e o profano. Para a discussão, seria interessante trabalhar a mudança do perfil do controle e de ajustamento, que se vai processando - embora lentamente - e que emerge de modo claro nos finais do século XIX e princípios do século XX nas Alagoas. Seria inevitável pela própria natureza do escravismo, que fosse sendo construída uma malha negra de relações urbana, pois o negro estava e fazia-se dentro da Capital da Província. A manutenção do escravo enquanto base da força de trabalho de uma economia fundamentalmente agro- -exportadora, em nada evitava o estar e fazer-se dentro do urbano. Talvez quem sabe, a montagem dos cultos jamais poderia ser rural, embora o orixá estivesse nas senzalas e na cabroeira que se formava.
 

Nesse itinerário, o escravo - pardo ou negro - estava ligado ao preto livre, aos africanos livres e insinuam-se e encontram lugares típicos na formação urbana de Maceió para estarem e construírem um modo de ser urbano. Inclusive, pontos da cidade foram sendo demarcados por densidade de presença negra, como Jaraguá, por onde se tem o papel da enseada do mesmo nome, funcionando como fundeadouro e articulação entre os mercados interno e externo.
 

A presença negra era verificada na Levada, outra espécie de articulação de mercado. Aliás, a presença de africanos livres na região foi de tal ordem que chegaram a serem acusados de controle do abastecimento, o que termina em posturas para colocarem freio no comércio. Se escravo fugido corria para os lados da Contigui- ba, é que não se fazia notado com facilidade.


E possível falar de muitos lugares em que se tinha a presença negra em Maceió. No entanto, o que nos interessa é extremamente simples: a urbanização de Maceió e a abolição demarcam a possibilidade de novas formas de relação entre brancos e negros em Maceió; muda o modo e a forma do contexto de opressão, embora ele permaneça, inclusive como fundamento de mentalidade. No entanto, se a cidade era multico- lorida, com seus negros, brancos e pardos, o mando era senhorial e a mentalidade desse grupo mantinha os mesmos princípios de exclusão que foram praticados e fundados no contexto do escravismo. As transformações ocorridas na área econômica, não deslocaram o complexo senhorial do preconceito e nem a engenharia política de manter o negro em seu lugar, exercício estratégico de dominação.


O desígnio branco argumentava que a cidade tinha negros, mas jamais poderia ser também dos negros. Desse modo, o enfático dos terreiros - por mais longínquos que estivessem das partes nobres - fazia com que os templos estivessem sempre próximos, pois havia uma articulação de mando anulando a distância física. Eles estavam afastados do centro, mas não no urdimento do modo do poder institucionalizado.


No entanto, e aí se encontra outro marco da questão, por mais excludente que fosse a postura senhorial, o negro havia penetrado no modo de ser da cidade e, inclusive, nos próprios mati- zamentos religiosos dos brancos, como as devoções e as Irmanda- des demonstravam e, por outro lado, as relações de poder não se procedem em mão única: existe uma interferência dos dominados no universo da dominação. Essa afirmativa tem um quê do Nobert Elias, mas, enfaticamente, o tema já estava numa análise do patriarcal realizada por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, embora com problemas seríssimos em sua argumentação e que não vale discutir no corpo desse depoimento.


Por outro lado, convém considerar que o senhorial tenderia a negar que havia sido influenciado pelo negro e, para isso, usava muitas estratégias. Nesse contexto de negação, a religião era fator por demais evidente e o batuque de que tanto se resguardam os brancos na mixórdia das posturas, não se referia apenas à folia. Não era matéria apenas da folgança dos negros. A Inquisição andou interessada nesses batuques. Sons negros, via religião, invadiram as ruas como símbolos do incômodo e a terem múltiplas dimensões. A presença de negros publicamente era controlada e se pode ter como exemplo as Posturas municipais da câmara de São Miguel dos Campos, conforme a Lei n° 51 de 18 de Maio de 1846, que proibia batuques, alaridos, vozerias a partir das nove horas da noite, mas batuques, danças ou adjuntos de escravos não podiam ser feitos em qualquer hora do dia. A intensificação das relações urbanas de Maceió ocorre articulada a diversos fatores e, dentre eles, surge a identificação do progresso como associada ao passo para a civilização. O que vai assaltar o Brasil assalta Alagoas.


A isso corresponde a necessidade de liberação de formas ditas bárbaras e é fácil notar como se pode intensificar o preconceito em conjuntura desse tipo: a barbaridade negra teria que

 Meu velho diário e a macumba nas Alagoas 

Luiz Sávio de Almeida

 

Algumas singelas recordações ajudam a situar este texto, que não pode ser pensado além de simples depoimento, espécie de testemunho. O tema das “religiões afro-brasileiras” sempre me foi caro, embora o tivesse deixado, na medida em que fui passando de interesse centrado na antropologia para formação acadêmica em história, retornando a uma espécie de vocação descoberta pelos idos dos 14 anos de idade e, de certa forma, ajudado por Félix Lima Júnior. O Rio Una sabe da minha história, conhece o fascínio que me despertavam os livros sobre folclore, história e como eu andava pela Biblioteca Pública Municipal de Palmares, cidade pernambucana onde vivi parte da adolescência e onde existiu a famosa Biblioteca do Clube Lítero-Recreativo.
 

Na medida em que sondava sobre o que iria dar o depoimento sobre o mundo negro, entendi que não podia ficar em mera evocação, pois tocava em algumas veleidades de natureza “científica”, palavra grifada para acentuar certa antipatia que me desperta, da mesma forma como grifei “religiões afro- -brasileiras” expressão que possivelmente nem de longe raspa a densidade do que se chama Xangô em Alagoas, também conhecido como seita por muitos dos velhos amigos com quem convivi pelos terreiros de Maceió durante uns dois densos e consecutivos anos, lá pelos tempos dos sessenta, inclusive na companhia de Marcelo Texeira, Bráulio Leite Júnior que ainda estão mais vivos do que eu, que já me considero excelente candidato a fantasma.
 

A construção do texto tornou-se um problema; como fazer a escrita comportar a evocação, o testemunho e ainda por cima caracterizar uma linha de informações conseqüentes e úteis sobre os temas enfocados? Desde o início, tomei uma decisão: o tom coloquial seria a marca desta anotação, mas posto de modo a não perder a precisão, devido à objetividade que deveria ser a característica fundamental. Por outro lado, o trabalho não poderia ser uma espécie de divertimento de quem vai encontrando pedaços de sua própria vida ao remexer em velho e amarelado arquivo. 

A ANDANÇA PESSOAL.
 

É preciso dar um salto de Palmares para Maceió e antes para Natal no Rio Grande do Norte, onde conheci Cascudo. Aqui fiz uma amizade que marcou muito do que tento realizar; conheci o Professor Theo Brandão, pessoa de finíssima inteligência, pròporcionando-nos uma obra rica e inestimável, pronta para ser rediscutida, retrabalhada, buscar sua significação real. Era médico, como muitos dos intelectuais de sua geração.


Theo argumentava que o estudo das tais religiões havia sido negligenciado em Alagoas, apesar de Arthur Ramos ser do Pilar, mas cuja obra foi fundamentalmente baiana. Era como se houvesse uma cobrança de sua parte: era daqui e qual a razão de não ter estudado? Quando perguntado pelas suas razões, Theo respondia não sentir-se com base suficiente para enfrentar o tema e, também, não desejava afastar-se do que vinha sendo a sua preocupação: folguedos e literatura popular, especialmente contos. Daí, insistia comigo para cair na área - deve ter feito o mesmo com outros -, pesquisar, estudar e talvez daí - quem sabe? - tenha influenciado Marilu Gusmão (de saudosa memória) a tratar do tema.
 

Na verdade, quase todos os dias em que conversávamos batíamos na história do afro- -brasileiro, várias vezes com a presença do Carlos Moliterno, que não se interessava pelo assunto. Formava-se, como se dizia, uma chacrinha. E na verdade o Theo encontrava uma pequena platéia para escutá-lo. Em virtude da grande influência que o Theo tinha sobre mim, fui pouco a pouco me aproximando dos terreiros, mormente através de um amigo: o finado Celestino. Celestino era da Secretaria de Educação, muito ligado à turma da Igreja de São Benedito. Celestino, Belarmino, Joca e Luiz Marinho (todos da seita, da lei, da religião) foram companheiros de muitas andadas por Maceió. Celestino era Babalo- rixa Ijexá, Luiz Marinho era Nagô; Joca (falecido) era pedreiro e Belarmino era coronel da polícia. Ele e eu somos os únicos vivos do quarteto. Não perdiámos uma saída de Iaô, sempre maravilhosa noite de festa.
 

Foi através do Celestino que me aproximei da Federação dos Cultos Afro-Brasileiros de Alagoas, entidade que tinha sede na Ponta Grossa. Não me lembro da rua, mas sei que era perto do terreiro do Luiz Marinho. Além de Babalorixá, Luiz Marinho tinha uma banca de vender sapatos no mercado, lados da Feira do Passarinho, perto de um outro Luiz que me vendia folheto de feira e revista velha. Os dois já foram desta para melhor.
 

O fato é que passei uns dois anos coletando material sobre inúmeros terreiros que existiam em Maceió, gravei, entrevistei, fotografei, filmei... Era um trabalho constante, enquanto lia a bibliografia aconselhada pelo Theo Brandão, num improviso de leitura que Maceió obrigava. Não se ia muito além de Edson Carneiro, Roger Bastide, Arthur Ramos...
 

Era para ler o que se podia dispor naquele tempo, especialmente na biblioteca do professor. Pouco a pouco, contudo, fui me distanciando do tema, mas guardava o material com extremo cuidado, consciente de sua importância futura para algum pesquisador que se atrevesse no ramo.


Hoje, sem dúvida, seria de primeira linha, mas a vida tem passos que podem ser considerados terríveis. Por razões de doenças na família, tive que deixar a documentação armazenada em lugar impróprio e, por descuido mais do que imperdoável, o cupim a tudo comeu, restando um denada, insignificância frente ao volume original. Apenas restaram umas poucas notas e um caderno com o endereço de 185 casas de culto. Não é material de grande importância, quando comparado a umas dez pastas que se chamava de AZ; o conteúdo é extremamente inferior ao que foi destruído. No entanto, decidi dar um arranjo ligeiro e publicar o que sobrou. A certeza da utilidade jamais deixou de estar presente, pois os depoimentos deste tipo, ajudam a construir um pouco a história da cultura em Alagoas


UMA AFIRMATIVA DO THEO


Volto ao fato de que Theo identificava um afastamento da inteligência alagoana, dos temas relativos aos cultos afro-brasileiros. Eu não me lembro dos motivos e das razões que apresentava para o fato. No entanto, tomando o mote, admito a possibilidade de que a temática virou espécie de tabu intelectual pelo fato de ser negra.


O fundamental nos comentários do Theo, era a guarda de aura de mistério, indicando que deveria ser resolvido. Para mim, a questão hoje passa pelos momentos integrados da sociedade, Estado e da própria inteligência.
 

Discutir a temática é instigante e chego a pensar que, neste contexto, a discussão tem peso bem maior do que a própria conclusão. Para mim e tratarei disto em outros depoimentos, em grande parte tem-se o privilegiamento ibérico do folclorismo alagoano: o senhorial sempre foi ibérico e o folclorismo alagoano não ia ao povo, mas ao velho reduto ibérico, salvo desvios acontecidos nessa rota. Seria muito difícil encontrar guarida para este iberismo nos terreiros de xangô, pois mesmo a composição santo/orixá era decretada pelo lado negro da identidade ou, melhor dizendo, da similaridade construída e difundida.
 

A MATRIZ DO POLICIALESCO
 

E dentro desse espaço aberto de discussão sobre o tema, que entedemos não ser possível deixar de levar em conta o papel da formalização do mando desde os tempos coloniais. Esse é um dado óbvio, sendo tão lugar comum quanto é considerar o império do católico, determinado, oficialmente, como a ligação preferencial entre o sagrado e o profano. Para a discussão, seria interessante trabalhar a mudança do perfil do controle e de ajustamento, que se vai processando - embora lentamente - e que emerge de modo claro nos finais do século XIX e princípios do século XX nas Alagoas. Seria inevitável pela própria natureza do escravismo, que fosse sendo construída uma malha negra de relações urbana, pois o negro estava e fazia-se dentro da Capital da Província. A manutenção do escravo enquanto base da força de trabalho de uma economia fundamentalmente agro- -exportadora, em nada evitava o estar e fazer-se dentro do urbano. Talvez quem sabe, a montagem dos cultos jamais poderia ser rural, embora o orixá estivesse nas senzalas e na cabroeira que se formava.
 

Nesse itinerário, o escravo - pardo ou negro - estava ligado ao preto livre, aos africanos livres e insinuam-se e encontram lugares típicos na formação urbana de Maceió para estarem e construírem um modo de ser urbano. Inclusive, pontos da cidade foram sendo demarcados por densidade de presença negra, como Jaraguá, por onde se tem o papel da enseada do mesmo nome, funcionando como fundeadouro e articulação entre os mercados interno e externo.
 

A presença negra era verificada na Levada, outra espécie de articulação de mercado. Aliás, a presença de africanos livres na região foi de tal ordem que chegaram a serem acusados de controle do abastecimento, o que termina em posturas para colocarem freio no comércio. Se escravo fugido corria para os lados da Contigui- ba, é que não se fazia notado com facilidade.


E possível falar de muitos lugares em que se tinha a presença negra em Maceió. No entanto, o que nos interessa é extremamente simples: a urbanização de Maceió e a abolição demarcam a possibilidade de novas formas de relação entre brancos e negros em Maceió; muda o modo e a forma do contexto de opressão, embora ele permaneça, inclusive como fundamento de mentalidade. No entanto, se a cidade era multico- lorida, com seus negros, brancos e pardos, o mando era senhorial e a mentalidade desse grupo mantinha os mesmos princípios de exclusão que foram praticados e fundados no contexto do escravismo. As transformações ocorridas na área econômica, não deslocaram o complexo senhorial do preconceito e nem a engenharia política de manter o negro em seu lugar, exercício estratégico de dominação.


O desígnio branco argumentava que a cidade tinha negros, mas jamais poderia ser também dos negros. Desse modo, o enfático dos terreiros - por mais longínquos que estivessem das partes nobres - fazia com que os templos estivessem sempre próximos, pois havia uma articulação de mando anulando a distância física. Eles estavam afastados do centro, mas não no urdimento do modo do poder institucionalizado.


No entanto, e aí se encontra outro marco da questão, por mais excludente que fosse a postura senhorial, o negro havia penetrado no modo de ser da cidade e, inclusive, nos próprios mati- zamentos religiosos dos brancos, como as devoções e as Irmanda- des demonstravam e, por outro lado, as relações de poder não se procedem em mão única: existe uma interferência dos dominados no universo da dominação. Essa afirmativa tem um quê do Nobert Elias, mas, enfaticamente, o tema já estava numa análise do patriarcal realizada por Gilberto Freyre em Casa Grande e Senzala, embora com problemas seríssimos em sua argumentação e que não vale discutir no corpo desse depoimento.


Por outro lado, convém considerar que o senhorial tenderia a negar que havia sido influenciado pelo negro e, para isso, usava muitas estratégias. Nesse contexto de negação, a religião era fator por demais evidente e o batuque de que tanto se resguardam os brancos na mixórdia das posturas, não se referia apenas à folia. Não era matéria apenas da folgança dos negros. A Inquisição andou interessada nesses batuques. Sons negros, via religião, invadiram as ruas como símbolos do incômodo e a terem múltiplas dimensões. A presença de negros publicamente era controlada e se pode ter como exemplo as Posturas municipais da câmara de São Miguel dos Campos, conforme a Lei n° 51 de 18 de Maio de 1846, que proibia batuques, alaridos, vozerias a partir das nove horas da noite, mas batuques, danças ou adjuntos de escravos não podiam ser feitos em qualquer hora do dia. A intensificação das relações urbanas de Maceió ocorre articulada a diversos fatores e, dentre eles, surge a identificação do progresso como associada ao passo para a civilização. O que vai assaltar o Brasil assalta Alagoas.


A isso corresponde a necessidade de liberação de formas ditas bárbaras e é fácil notar como se pode intensificar o preconceito

ser anulada. E é esse o clima que se dá nos entorno da oligarquia dos Maltas, estando presente quando as Salvações atingem as Alagoas e tem-se um novo e importante choque entre as facções detentoras do mando. É o choque entre Lebas e Soberania.


Estamos, na verdade, em um dos períodos decisivos da vida política alagoana. Lebas x Soberania é tão fundamental para nosso século, quanto foram os acontecimentos da década de quarenta do século XIX, quando, por exemplo, da definição do partidismo gerado pelos Lisos e Cabeludos. Claro que geram e se fazem em contextos diferentes, mas ambos são cruciais. No começo do século XX serão contrapostos o progresso da Soberania e o atraso dos Lebas.


E preciso, contudo, ter imenso cuidado para não se reduzir o Quebra à história branca, tornando-o um episódio dela. Esta história do Quebra somente faz sentido vista por baixo; caso contrário há uma redução do negro ao branco e, mesmo sem querer, não sendo assim, pode estabelecer uma linha similar aos argumentos dominantes. Apesar de suas ligações com a base agrária, a Soberania tinha um quê urbano e de classe média e é ela a construtora dos Lebas.
 

Há uma diferença radical entre Lebas e Leba; um é o contexto senhorial e outro é o contexto afro. A história que apreende o negro, é a história do Quebra visto pelo Leba. Na verdade haveria um choque entre Lebas/Soberania e Leba. E preciso separar o Leba do conjunto das frações dominantes, deixar isso claro; o choque entre Lebas e Soberania era conjuntura; o choque com o Leba era de feição estrutural.Lebas seriam os partidismos maltistas e instalar a macumba dentro do Palácio do Governo; equivalia à retirada da civilização e a introdução do diabólico segundo a própria ótica branca.
 

Os maltistas passavam a ser uma negrada branca. Esta utilização do negro é infernal. O que pesa é o que atinge o Leba, como se estivesse institucionalizada a dia- bolização do negro, embora Leba nada tivesse com o diabo que não é, como se costuma dizer, uma criação africana. Leba é uma correspondência ao Exu iorubano. Aliás, o caminho da diabolização do Leba seria outro a ser percorrido numa boa investigação sobre os cultos.

Foi por causa dessa insistência do Theo Brandão, que tomei conhecimento da Tia Marcelina, não a arrolada na parca literatura existente sobre o Quebra, mas a de persistência na memória do povo da macumba. Eé desse período que a Tia Marcelina emerge como um símbolo da resistência dos cultos em Alagoas. Procurei por ela sistematicamente nos terreiros e creio sinceramente, que houve uma sua invenção. Hoje penso, que o verdadeiramente histórico foi sua reinvenção, a forma como ressurgiu e, numa imagem que julgo desconcertante, a entendo ressuscitando após os três dias.


É que se tornou uma fala e uma nova presença, indicando novos tempos e nisto, sem dúvida, nosso trabalho colaborou. Quando comecei a andar pelos terreiros, na realidade, não estávamos tão longe assim dos tempos do Quebra. Fazia menos de 50 anos e seria uma probabilidade alta, encontrar quem a tivesse conhecido pessoalmente; não encontrei. E conversei muito, pois sem dúvida, eu conhecia a maioria das casas de culto em Maceió. No fundo, a Tia Marcelina era uma nova realidade, a possibilidade de falar-se em resistência e símbolo. Foi o que levantamos. E notava que meus companheiros Luiz Marinho, Celestino, Joca e o Belarmino compraziam-se com a descoberta da Tia Marcelina e não era raro seu nome aparecer no xequete nas noites de Iaô.


Fico pensando o que teria sido construído se ao invés de Tia Marcelina fosse revivido outro nome do Quebra. Estava evidente um fato que para mim tornou-se base: não é preciso saber para ter memória e isto é o que faz o belo e o andamento do mito. E preciso que se deixe a mania de rigidez em algumas categorias de busca, pois o importante é a elasticidade que o sentido difuso proporciona, a busca, a navegação heurística na procura de aclaramentos.


Tia Marcelina havia retornado, o Quebra havia retornado não para os intelectuais, mas para dentro do povo da macumba. E aí que aparece o que estava na lembrança dos povos, lembrança criada e lembrança vivida, quando fizemos as anotações nós finais da década de sessenta. Zumba me disse ter um retrato da Tia Marcelina. Não discuti; comprei o quadro e ficou sendo Tia Marcelina, uma negra que poderia ter todos os rostos de todos os negros da época do Quebra. Conversei muito sobre o Quebra; Quebra é uma palavra excepcional. A memória do povo da macumba consagrou o termo, guardou, estava andando pelas ruas de Alagoas naquela beirada dos sessenta. Evocava a perseguição, relembrava o Xangô resado baixo, ou ingomes recolhidos; a expressão resado baixo ouvi do Luiz Marinho, numa conversa após termos jogado os búzios. Rezar baixo, era uma atitude de subversão; a seita subvertia o sistema; nada de passividade. Não sei de onde e de quem ele tirou a expressão pois ela é conhecida. Talvez a primeira e necessária pergunta seja o que significa Quebra, sendo conveniente entender que não é uma expressão da seita; a palavra Quebra não foi criada dentro do povo da macumba; significa pancadaria, desordem por ajuntamentos implicando em destruição, como aconteceu com o quebra dos currais de peixe. No século XIX seria facilmente reconhecível no que a ordem legal chamava de azuada. Uma azuada mais drástica, com danos.


Não se fala em a quebra; a substantivação do verbo é masculina, é por isso que há o artigo determinativo associado e ajuda, no caso, a particularizar o Xangô; ainda hoje é utilizada no composto quebra-quebra e, por sua natureza, praticamente exime o Estado, que não pode ser baderneiro, mas era. O controle do mando se fazia baderneiro.


Houve baderna e os despojos são carregados em praça pública e, até mesmo, expostos para a visitação. A rua se torna a demonstração do triunfo que assume o espaço público, como foi pública a baderna encaminhada por milícia privada. O processo sai do senhorial, das frações e atinge o público subdividido.


Ora, aí é que começa a necessidade de desestruturar as informações: bárbaros são os dois conjuntos senhoriais. A barbárie é senhorial. Se nos formos tomar os estratos de baixa renda da população, estaremos diante de um universo em contradição, enquanto da oposição, havia uma unidade senhorial afirmada como categoria dominante, organicamente situada. Jamais poderia dar-se uma contradição intra-senhorial, dava-se conflito, oposição. O oposto do senhorial era o negro.


Possivelmente, o quebra- quebra pode ser considerado como o fato mais importante da história negra na Primeira República, equivalendo ao que simbolicamente aponta o Palmar colonial e o cabano imperial papamelizado. Um dos sinais da negritude assumiu evidência pública e foi mantido por um grupo sacrificado socialmente, dando-se morte como aconteceu com a Tia Marcelina. Este sinal efetivo de negritude foi a religião de guarda dos orixás.


Uma de nossas velhas anotações comenta o Quebra. Relembra a leitura das matérias no Jornal de Alagoas. A ele correspondeu o festim, a bacanal de uma vitória e se deu espetáculo público pelas ruas de Maceió. Nessa mesma velha anotação, letra demorada, eu escrevia que a melhor maneira de entender o Quebra era pensar na violência da arrebentação de elos de uma corrente e ao mesmo tempo na afirmação de uma nova trama de malha. Gente partiu, gente foi presa. Abelardo Duarte fala no assunto, numa espécie de introdução à coleção Perseverança. Basicamente, o texto nada tem com o negro, mas com a guarda do que era do negro.


Peças foram expostas onde hoje é Arquivo Público de Alagoas e depois incorporadas ao Museu do Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas. Por causas delas, escrevi a carta de amor para Tia Marcelina, uma espécie de vingança lírica e em homenagem a um dos símbolos do Quebra, espécie de mártire que o imaginário sustentou, morta, segundo a tradição do povo da macumba, pela polícia dentro do Peji, no que forçosamente o povo da macumba considerava o aparelho de mando como um
inimigo.


Ao dizer que os maltistas eram Lebas, o preconceito estava acentuado. Para identificar o imoral, estava sendo usado o que era bárbaro aos olhos brancos. O que se argumentava como renovador trazia dentro de si a mesma ordem preconceituosa, os mesmos fatores perversos na construção da sociedade, imperantes desde o escravismo. Jamais o negro estaria na ordem da renovação e daí o Quebra, solenidade marcada de punição ao que se considerava Bárbaro.


Nesse clima, segmentos da população pobre vão buscar o embranquecimento ou arranjar- -se no senhorial. Não é a classe média da Soberania nem seus ilustres associados rurais que vão às ruas. Utilizam-se do embranquecimento, da atualização perante os pretensos novos termos do poder. E gente pobre da Levada, da Ponta Grossa, agrupada pela Liga dos Republicanos Combatentes. E essa organização, ainda presente pela década de trinta, que dará suporte à perseguição aos terreiros. Os pobres da macumba serão alcançados pela violência dos que se faziam ideologicamente brancos e de Soberania. Há um grande jogo entre cooptar e resistir.
Essa perseguição jamais terminará; o estado estará vigilante contra o Xangô e ainda era notada nos anos sessenta, tanto que, em parte, a Federação dos Cultos Afro-brasileiros surgiu para dar um cunho mais aceitável às diversas casas. Pelos tempos do Novo Estado, será intensificada, especialmente após o que ficou conhecido no jargão oficial como Intentona Comunista. Existe relato de uma das batidas policiais, em livro de jornalista do Rio de Janeiro que andou por Maceió. A Federação surge pela época do Muniz, como necessidade política de diálogo e negociação.


Esse depoimento não é um lugar para detalhar a história dessas perseguições. O objetivo, nesse momento, é apontar, com base na pequena nota encontrada em nossa pasta sobre o Quebra que jamais houve liberdade, que a ordem pública jamais havia aceitado o culto e que ele vivia na exigüidade do privado das casas pobres, chegando a ser obrigado a encontrar um esconderijo impossível.


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