Esta matéria foi publicada em Campus, suplemento do jornal O Dia, editado em Maceió, nº 137, 11 a 17 de outubro de 2015
.
Quem é quem
Karen Daniele de Araújo Pimentel, estudante de Direito da Faculdade de Direito de
Alagoas (UFAL), é membro do Núcleo de Estudos em Direito Internacional e Meio
Ambiente (NEDIMA) e coordenadora-geral do Centro Acadêmico Guedes de Miranda
(CAGM), entidade representativa dos estudantes de Direito da UFAL.
Dois dedos de prosa
É instigante notar que vem sendo formada
uma nova geração de estudiosos do direito em Alagoas, e nisto, a professora Alexandra Marchioni tem um papel
relevante. Este número é mais uma demonstração de como se pode integrar alunos
à pesquisa e levá-los a pensar a sua circunstância, trabalhando a relação entre
sociedade e direito, vendo, com a participação dele, a construção do novo.
Estamos diante de textos de alunos e
professores que se filiam ao Núcleo de Estudos e Pesquisas em Direito
Internacional e Meio Ambiente –Nedima, que vem sendo um dos campos principais,
atualmente, de discussão sobre direito e o cotidiano alagoano.
Vamos ler.
Obrigado Professora .
Sávio
Segregação espacial: à
margem do concreto, do urbano e do direito
A cidade contemporânea
é palco de diversos fenômenos sociais, é nela em que as pessoas se encontram,
vivenciam experiências, e – principalmente – trocam mercadorias. Na “sociedade
de consumo”, identificada pelo sociólogo Zygmunt Bauman como aquela em que
ocorre um processo de “reconstrução das relações humanas a partir do padrão, e
à semelhança, das relações entre os consumidores e os objetos de consumo”, as
relações sociais são marcadas pela mercadoria enquanto intermediadora.
Nesse passo, se as
relações humanas são formas de expressão do consumo dentro do modo de produção
capitalista, as relações sociais na cidade não escapam desse mesmo processo. O
espaço urbano – assim como as relações de trabalho, a comunicação, a arte e
tudo quanto puder ser apropriado pelo capital – é submetido à lógica da
produção capitalista. A cidade passa a ser não apenas um lugar de consumo, mas
ela mesma se torna um produto a ser consumido, passando a importar pelo seu
valor de troca. Dessa forma o capitalismo vai incorporando o espaço dentro da
sua lógica de acumulação. Nessa lógica, toda a cidade será produzida e
reproduzida em suas riquezas e em suas mazelas sociais, a cidade passa a ser
classificada e distribuída espacialmente, enquanto áreas, regiões e bairros
assumem estereótipos caracterizadores, por vezes determinantes de seus
moradores.
Referir-se a um certo
código de endereçamento postal ou à numeração de uma determinada via,
invariavelmente acaba por identificar os moradores de uma cidade. Muitas vezes,
o “lugar de onde vem” associado a um imaginário social e ideal de uma cidade é
suficiente para categorizar um indivíduo e, consequentemente, contribui para um
referencial segregador entre seus habitantes. A segregação espacial é um dos resultados
gerados pela produção capitalista do espaço, que se caracteriza por produzir o
espaço segundo os ditames da (des)acumulação necessária à reprodução do sistema
do capital a depender da natureza e da posição socioeconômica dos indivíduos.
Em outras palavras, a cidade estabelece lugares distintos para quem emprega e
para quem é (des)empregado. Ora, se o sistema capitalista necessita que haja um
contingente de trabalhadores, formais e informais, cada vez maior para que
produzam cada vez mais para o mercado mundial, também global deve ser a solução
de moradia e habitação dessa massa expropriada. Onde essas massas deveriam
viver? Em que condições deveriam habitar? Haveria convivência possível e
desejável entre essas classes distintas no espeço da cidade? As respostas a
essas perguntas não serão encontradas nos livros sobre urbanismo ou mesmo nas
leis urbanísticas, mas sim, na constatação da realidade.
Se o indivíduo vive em
um lugar apartado dos centros de consumo, se a ele não é permitido o acesso aos
equipamentos urbanos e aos espaços de convivência pública da cidade inevitável
é a conclusão de que, de fato e de direito, houve a negação de uma vida digna.
A negação sistemática dos direitos à moradia, à saúde, à educação, ao trabalho,
ao transporte, ao lazer, entre outros significam a negação de um direito mais
amplo: o direito à vida urbana ou “direito à cidade”.
É possível sintetizar o
que seria de fato o direito à cidade nas palavras do filósofo Henri Lefebvre
“[que] a realidade urbana esteja destinada aos ‘usuários’, e não aos
especuladores, aos promotores capitalistas, aos planos dos técnicos”. Ou seja,
só é possível ao indivíduo o usufruto da cidade quando esta funciona para o
atendimento das suas necessidades sociais e não aos interesses da acumulação capitalista.
Essas necessidades compreendem: segurança, certeza, organização do trabalho,
trocas e investimentos, comunicação etc. A compreensão da não efetivação desse
direito exige uma análise que ultrapassa o âmbito jurídico, perpassando
necessariamente fatores socioeconômicos estruturantes.
Uma das definições do que seria a cidade
proposta por Lefebvre afirma que esta é a “projeção da sociedade sobre um
local”. E é exatamente por isso, por ser a cidade a projeção da maneira pela
qual se conforma a sociedade, que nela se reproduzem os mesmos processos de
exclusão e negação de direitos que ocorrem em outros âmbitos da vida em
sociedade. Assim, o que se percebe é que a mera previsão normativa do direito à
cidade, sozinha, não consegue superar a segregação socioespacial. Seria
necessário antes transformar a sociedade para que a cidade – sua “projeção
localizada” – de fato servisse à satisfação das necessidades sociais.
Assim é que surge um
fenômeno, explicado pela autora Ermínia Maricato, em que convivem no mesmo
espaço a chamada “cidade legal”, reservada àqueles que possuem o poder de ditar
as leis – e mesmo como esse direito à cidade será regulado – e a outra cidade,
a “cidade ilegal”. Essa, segundo Maricato, “é funcional para a manutenção do
baixo custo de reprodução da força de trabalho, como também para um mercado
imobiliário especulativo”. Dessa maneira, para aqueles que seguem lutando pela
efetivação do direito à cidade, a vida acontece à margem do concreto, do urbano
e do direito.
Nenhum comentário:
Postar um comentário