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quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

Memórias de um cidadão da Capela, Alagoas

Os três filhos de Manoel de Almeida: Sávia, Sávio, Rita (falecida)







memória memória memória 



Foi meu pai quem me mostrou, desde pequeno, a existência de livros; foi meu pai quem me sentava no colo e fazia-me perceber a vibração da música; foi meu pai quem, me mostrou o que era o amor pela família, pela dignidade. Foi meu pai quem me aconselhou quando errei, mas nunca me recriminou; foi meu pai, portanto, quem mostrou à criança o caminho para ser adulto e eu o amava, mas amava tanto que desejava dar na hora de sua agonia e minha vida e disse-lhe nos seus ouvidos de morte: “Eu lhe amei durante os 50 anos de minha vida!”. Luiz Sávio de Almeida

 Uma homenagem, a Manoel de Almeida (I)

Quem é quem

Luiz Sávio de Almeida é filho de Manoel de Almeida e Maria José de Almeida.


Dois dedos de prosa

Ele merece:   lidou com milhões  e ficou com o que lhe deu o suor. E me acostumei a ouvir: “Seu pai é uma reserva moral das Alagoas!”.  Claro que eu sentia orgulho, mas sorria por existir reserva moral, como se a gente gastasse a que tem e mandasse buscar a poupança.

Era um gentleman alagoano. Uma vez mamãe  falou: “O Lula da Bomba disse que dois camaradas apareceram num Jeep e perguntaram onde era a casa do seu pai!“.  Sinal de coisa braba. Imediatamente fui ao Banco: entrei na sala e fechei a porta. Ele sorriu: “O que procura o jovem Infante?”.  Perguntei se estava tudo certo. Ele sorriu, abriu a gaveta e mostrou o arsenal: “Dá pra dois?!”. Ele jamais soube, mas a mando de minha mãe, passei uma semana o acompanhando de longe. Sem pestanejar,  morreria por ele. Eu tinha uns 15 anos: era cada encomenda...

Eu ainda te amo, meu pai!

Vamos lá
Sávio


As memórias de Manoel Almeida

Luiz Sávio de Almeida


Sem qualquer sombra de dúvida, Alagoas tem bons memorialistas e Manoel de Almeida está entre eles.  Seu livro intitulado Memórias de um homem comum foi publicado em 1992 pelo Instituto Arnon de Mello e com a chancela do Sindicato da Indústria do Açúcar e do Álcool do Estado de Alagoas,  Cooperativa Regional dos Produtores de Açúcar e do Álcool de Alagoas e Associação dos Produtores Independentes do Açúcar e Álcool. Este rol de entidades ligadas ao açúcar e álcool deve-se ao seu papel como Gerente do Banco do Brasil durante anos em Maceió e, também, ao fato de que sempre esteve no açúcar, nascido que foi em Capela, no Vale do Paraíba e membro de famílias tradicionais daquele pedaço de Alagoas: Almeidas e Mellos, como também Vieiras.

Fausto Viera de Almeida, sogro de Manoel de Almeida


Não seria exagero dizer que seu livro somado à produção de seu primo Aloysio de Costa Melo fornece um painel do que seria o açúcar e a vida daquela área do Estado nas décadas de 20 a diante do século XIX. Sobretudo demonstra como  o açúcar é cruel em suas relações sociais interpares.  Ele não reincorpora aquele que foi alijado. Isto pode ser identificado aqui e ali, conforme aconteceu com os primos mencionados. Saíram do meio açucareiro, viveram o cru da pobreza e refizeram a vida como personagens urbanos, por coincidência, lidando com o próprio açúcar.
Há uma tradição de escrita entre os Almeidas que começa pelo Wenceslau de Almeida e seus estudos capelianos, interessado que foi na história da região e na própria história familiar. Ele tem estudos  publicados  sobre a Capela, sendo autor, por outro lado, de anotações de caráter genealógico que ficaram conhecidos como a Caderneta do Wenceslau, desde que os assentamentos foram feitos em uma caderneta de compras, usual naquela época. Ainda a vi, nas mãos do Coronel José Otávio, na casa grande da Usina João de Deus. O  coronel era casado com uma irmã do Wenceslau.  Depois, Pedro Wenceslau de Almeida copia e amplia os registros da Caderneta, gerando o Livro do Véio Pedro, desde que foi escrito em um velho livro de atas. Conheço ainda a Caderneta do Eustáquio e  os Cadernos da Antônia. Surge o Livro do Manoel.
A vida de Manoel de Almeida foi, antropofagicamente,  a destituição do açúcar, o nascimento do homem da classe média urbana que vai ser um fiel agente bancário. E isto, vencendo adversidade por cima de adversidade, até que a tudo remonta quando vai ser secretário da Prefeitura Municipal da Capela. Em seguida parte para ser secretário da Prefeitura de Quebrangulo, onde monta o Ateneu Quebrangulense, uma escola;  depois ingressa no Banco do Brasil e segue sua carreira.
É de se notar o quanto a vida foi trabalhosa, o quanto teve de lutar para ter um lugar rural e quanto teve que sair em busca da vida em locais urbanos. Decididamente, não teria mais a volta, apesar da tentativa de estar plantando no Monte Verde ou quando está em Quebrangulo sonhando com um caminho que jamais passaria por uma fazenda. E ele sempre achou que tinha algo a contar como se desejasse ter uma conversa consigo mesmo: precisava dizer coisas a ele mesmo e este foi o caminho deste livro, publicado em 1992, mas na verdade, pensado por muito tempo e tentado quando retorna para Maceió, com tudo sendo assentado em uma velha caderneta – ainda a guardo – comprada na Papelaria Acadêmica, Niterói.  Na primeira página estava escrito: “Resumo dos acontecimentos e da [...]  de minha existência e escrito por minha própria pessoa”. Eu mesmo falo sobre mim e comigo.
Para sobreviver, sentou praça no Exército.  Em 1926 embarcava para o Rio de Janeiro no Paquete João Alfredo. Esteve no exército e depois entrava para a polícia. Em 1931 estava de volta e terminou sendo convidado para ser Secretário da Prefeitura da Capela, pelo Prefeito Eustáquio de Mello. Foi a virada de vida; começou a carreira de professor, ensinando português no Colégio São José, depois lente de português e de escrituração no Educandário Capelense. E vai e então, a dois de junho de 1932 que começa a família: “Por carta me declarei perante Fausto Vieira de Almeida e pedi em casamento, Maria José de Almeida”. Vai ser Secretário da Prefeitura de Quebrangulo, casa. Em 1933 funda o Ateneu Quebrangulense e a 10 de junho nasce seu primeiro filho:  Sávia  de Almeida e a batiza. Este foi o último registro em sua caderneta de lembrança que ele sempre guardava junto à sua Caderneta Militar, com várias anotações assinadas pelo Coronel Luiz Cavalcanti Lima a quem sempre foi agradecido.
A sua  vida tem uma reviravolta quando entra para o Banco do Brasil e segue para Maceió. Depois vai comissionado para Pirapora; volta para Alagoas: Penedo, onde será contador da agência. Depois vai ser gerente em Bicas, Minas Gerais. Volta para o Nordeste e será gerente em Palmares. Segue para ser Inspetor em Natal e volta para ser gerente em Maceió. É esta andada de vida, que aparece em seu livro. E sua aventura termina em um dia pesado de qualquer ano, pois não guardo datas tristes.

Manoel e Maria José de Almeida

O caixão estava descendo na cova e minha mãe abraçada a mim disse-me ao pé do meu ouvido: “Meu filho, está sendo enterrado um homem honesto. A vida do seu pai prova que este país pode dar certo!”. Arremata e esta frase gravei: “Eu nunca tive vergonha de um grão de feijão que entrou em nossa casa!”.
Manoel de Almeida foi engenhoso na construção de seu texto; ele é  escrito de uma forma dialogada entre seu passado e seu presente, com ele menino mandando cartas para ele adulto e recebendo respostas. Aos poucos, o tempo dos dois faz com que se encontrem e, então, o menino revolta-se contra o adulto. Ele devia ter dito que era ele, segundo as razões do menino, e com isto entenderia tanto sofrimento que vivera. O menino assina suas cartas como Manoel e o adulto como Sr. Almeida.
Bons  observadores, em diversas partes do livro, tanto Manoel quanto Almeida fazem uma narrativa de ambiente e circunstâncias. O tempo e seu andamento transparecem. Hoje vamos publicar trechos de uma carta escrita pelo Sr. Almeida para o Manoel e fala sobre a vida da pequena Capela nos idos de 30. Claro que estamos com uma Capela por ele recortada, pinçada para realçar-se no texto, desde que ele é sua própria personagem.  Isto não impede de sentirmos o que indica sobre o que seria, na sua posição, viver  o tipo de integração que poderia ter.  Mas o que me encanta neste texto, é a função do detalhe e do acaso na definição das histórias. Isto me faz lembrar um pouco da micro-história em Ginsburg que relembra Sherlock Holmes: suas grandes conclusões são encaminhadas por detalhes que se poderiam julgar insignificantes.
Não quero e não posso transformar meu pai em objeto de estudo e fiz questão de não enveredar por uma série de discussão que o tema suportaria sobre, por exemplo, memória e história. Discutir efetivamente, a sua contribuição, ao falar de si mesmo, para entendermos o outro enredado em nossas vidas.

II – A orelha do livro

Manoel de Almeida: pai e amigo

Luiz Sávio de Almeida

Rita Maria de Almeida
No momento em que escrevo esta pequena nota,  tenho em meus ombros a dor de todos os órfãos do mundo. As minhas mãos estão pesadas no teclado do computador e a minha alma se arrasta,  junto com a imensa saudade que toma conta de todo meu corpo. Meu pai morreu numa manhã de domingo, quando trabalhava em seu escritório, continuando o que sempre fez na vida. A velhice não o fez parar de ler, estudar, escrever, manejar a sua poesia.
Foi meu pai quem me mostrou, desde pequeno, a existência de livros; foi meu pai quem me sentava no colo e fazia-me perceber a vibração da música; foi meu pai quem, me mostrou o que era o amor pela família, pela dignidade. Foi meu pai quem me aconselhou quando errei, mas nunca me recriminou; foi meu pai, portanto, quem mostrou à criança o caminho para ser adulto e eu o amava, mas amava tanto que desejava dar na hora de sua agonia e minha vida e disse-lhe nos seus ouvidos de morte: “Eu lhe amei durante os 50 anos de minha vida!”,
Morreu compassadamente como tudo o que fazia; sem grandes gestos, sem qualquer estardalhaço, discreto e morreu, onde eu sempre quis que acontecesse: no meu ombro, sendo beijado por minha boca e acarinhado pelas minhas mãos que percorriam os seus cabelos, passavam por seus braços. Ele estava olhando para mim e seus olhos fitavam longe, quando a morte aconteceu. É que seus olhos sempre viam longe, sempre estavam procurando o que havia além do horizonte. É que meu pai não conhecia limite.
Quero agradecer em nome de minha família a todos os que estiveram conosco, especialmente  à minha prima Rosângela, a quem ele muito queria;  especialmente a Maria Clara Brandão a quem dedicava admiração e carinho e que esteve com ele durante os momentos de seus últimos suspiros.
Meu pai honrou à humanidade, desde os tempos em que chegou a viver da caridade pública, até os tempos em que se demorou na terra.  Sinto-me feliz e agradecido a Deus, que fez com que seus últimos instantes fossem tão cheios de carinho e de amor por ele, carinhos de minha mãe, meus, de minha esposa, de minhas filhas e de Maria Clara, cujos olhos cheios d’água revelaram a grandeza de seu espírito, ficando conosco, dando apoio a todos nós e consolando a minha mãe.
Devemos agradecer a todos quanto colaboraram na impressão deste livro, simbolizando-os na pessoa de Douglas Apratto Tenório, amigo que se dedicou de corpo e alma, à tarefa de nos dar esta satisfação de ver a vida de Manoel de Almeida prolongando-se.
Meu pai provou com sua honestidade, com sua própria vida, que este país ainda pode existir com dignidade.                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                            Maceió, 2 de setembro           de 1973
Manoel
                                                                                                                                                            
A família de Manoel Hermenegildo de Almeida, meu avô

Reconheço que em minha vida não há o que o senso comum chama de sucesso, pois, neste sentido, progredi bem pouco, mas se me fosse dado partir de onde parti, para recomeçar a vida, não vacilaria um momento e tomaria a mesma estrada que tomei, mesmo sabendo que iria encontrar as mesmas dificuldades e os mesmos sofrimentos que me são sobejamente conhecidos.
Começo  minha narrativa  pelo ano de 1930, em época somente sete anos posterior àquela que você está usando em suas cartas. É uma época que, por ser bem próxima à sua, você terá facilidade de compreender. Não faço referência concreta às datas posteriores, e espero que você, pelo menos durante algum tempo, não me faça perguntas sobre este ponto.
[...]
Em 1930, estou em Capela, a minha cidadezinha, enquanto corre o mês de abril. Aqui estou, vindo do sul do país, e de certo modo vencido pelas circunstâncias, embora não vencido em relação aos meus propósitos básicos. Já aprendi a ler e escrever, embora praticamente nunca tivesse frequentado cursos regulares, mesmo o primário.
A cidade é pequena, e o meio um pouco acanhado. Ser pobre, aqui, é a regra. Indústrias não há, com exceção da do açúcar, e o comércio tem pouca expresso. Quanto à instrução, só o Grupo Escolar. Ginásios ou colégios estão fora de cogitações em futuro próximo, por não haver condições pata a criação, instalação e manutenção. É assim, mas é a minha cidade, a cidade de meus antepassados. População simples e ordeira, não havendo forasteiros. É gente daqui mesmo, formando três ou quatro famílias tradicionais, mais ou menos ciosas de sua importância.
Esta é a cidade de 1930, de que acima falei no presente, ou melhor, usando o verbo no presente e de que, agora que estamos em 1973, passo a falar como no passado, sentindo a saudade dos 43 anos decorridos.
A moralidade tinha a sua força e os costumes eram um tanto quanto rígidos. A religião católica tinha bases firmes e o padre d freguesia era a autoridade mais importante. Fora dele, só o juiz; o promotor, o diretor do Grupo Escolar e o delegado de polícia. Mas acima de todos estava o chefe político, como única autoridade de fato.
Capela tinha suas tradições de cultura e de importância política. Nas conversas seria comum ouvir dizer que B foi Secretário do Interior no governo de C; que D, o avô de E, foi chefe político mais respeitado da região, entendendo-se o seu prestígio até mesmo à capital, junto a governos diversos, e assim por diante.
A vida econômica girava em torno da cana de açúcar, contando o município com 50 engenhos banguês, que já começavam a ceder lugar às usinas.
As diversões eram poucas, apenas um cinema com duas ou três funções semanais. Havia também um barzinho, ponto de reunião de todas as noites ou mesmo de todas as horas e onde se discutia de tudo, desde literatura, política e religião até os particulares mais reservados da vida alheia. Fora disso e complementando a vida social, havia as conversas de esquina, que começavam logo depois da refeição da noite e se prolongavam por vezes, até altas horas da madrugada. Logo depois de minha chegada à Capela chegou, também, vindo da capital, o Padre Joaquim que irisa tomar a frete de sua primeira paróquia. Moço saudável, bonitão e tido por inteligente, queria, e devia aparecer e sobressair-se na condução de suas ovelhas, e o número de Filhas de Maria ou de membros de outras congregações elevou-se substancialmente. A frequência às missas e ao catecismo duplicou desde logo, pois o homem sabia mesmo fazer sermões bonitos. Religião passou a ser assunto de todas as conversas, e quem não soubesse falar sobre o tema estava automaticamente fora de moda.

Papai está em pé. É o quarto da esquerda para a direita

Para congregar a moçada católica,  padre Joaquim fundou o Centro Social Católico e não ficou rapaz de 15 a 60 anos que não aderisse prontamente e, entre os aderentes, é óbvio, estava eu, cantando hinos de igreja que era uma maravilha, mesmo sem haver ingressado no Centro com muito entusiasmo, e, sim, apenas para não ser alijado da vida social.
Mas, eu não necessitava só de convivência, porém, também, de sobrevivência. Estava desempregado e necessitava ganhar alguns mil réis, pelo menos para o vestuário e pequenas despesas, pois casa e alimentação meu pai garantia. E foi assim que me tornei empregado do Sr. Joaquim Lemos. O qual possuía uma mercaria relativamente bem sortida na rua do Comércio. Mas haviam construído um novo mercado lá para as bandas da Canafístula. Para onde se mudaram quase todas as casas comerciais. Ele resolvera manter a loja antiga mas, para ajustar-se à mudança, criou uma filial na nova zona comercial, na qual fui admitido, representando, ao mesmo tempo, os papeis de gerente, caixa, balconista e servente, pois seria o único.
Praticamente, nada fazia ali, pois freguês era coisa rara, a não ser nos dias de feira, porém seu Lemos insistia pela minha permanência e por conservar a loja funcionando, dando-me almoço e pagando-me 40$000 mensais. Outro emprego, porém, apareceu depois e deixei o cargo. [...]
[...] devo mencionar que Padre Joaquim, interessado no nível  intelectual de sua paróquia, logo descobriu que entre os seus paroquianos muitos necessitavam avivar as luzes do saber, principalmente no que se relacionava com o bom uso da língua pátria e, por isso, resolveu ministrar um curso de linguagem.E eu inscrevi-me, como não devia deixar de fazer, acontecendo a primeira aula poucas noites depois, no salão principal da prefeitura para isto iluminado a capricho, com a presença do fino da sociedade, principalmente moças e rapazes em roupas de festa, todos curiosos com o que iria ser dito. Eu, a um canto e meio desconfiado com tanto aparato, lá estava.
O jovem sacerdote falou bonito e demoradamente e todos ouviram calados e pasmados de tanto saber. O que veio por fim foram algumas noções  de gramática da língua portuguesa bastante conhecidas, mas lá pelas tantas alguma coisa foi dita que me parecia confusa ou errada e eu, supondo que não tivesse ouvido ou entendido bem e com o desejo real de aprender, aproveite uma pausa e, timidamente, pedi esclarecimentos sobre um detalhe de que agora não recordo. A resposta foi prointa e os esclarecimentos foram longos. Meu quociente intelectual infelizmente não me ajudou e tive de fazer nova pergunta. Nova explicação sofisticada e nobva pergunta desajeitada...

Um projeto de mim mesmo
Não me interessava gerar confusão, aliás, gerar discussão, o que queria era aprender, mas não me dava por satisfeito com o que ouvia. O impasse estava criado, a contragosto meu.  Padre Joaquim embaraçou-se um pouco mas, esperto, teve uma boa saída. Alegou que gostaria de continuar com a discussão do assunto, mas ela estava se desenvolvendo em um plano muito mais alto do que o cabível naquela primeira aula, que se destinava a pessoas de nível médio.  [...]
Porém, aquilo, para a assistência assumiu logo cores de grande discussão de alto nível e já no dia seguinte passava a figurar como prato preferido em todas as reuniões ou ajuntamentos, ativando as conversas de esquina e os serões domésticos. O professor era uma capacidade mas eu era, em Capela, a única pessoas capaz de discutir português com Padre Joaquim. Tornei-me herói de um momento para outro. [...]
O episódio da primeira aula do padre Joaquim, insignificante em si, teve, se bem apreciado, consequências de grande sentido, em relação à minha pessoa. É que eu, que nunca frequentei escolas regularmente, sempre senti desejo de saber alguma coisa, estudando, por mim mesmo, como podia, através  da leitura dos livros que me chegavam às mãos. [...]
Ao padre visitei várias vezes, trazendo de volta um livro ofertado ou emprestado. Do juiz consegui alguns livros e do promotor alguns outros. Também comprei muita coisa e a verdade é que, com isso, alcancei algum resultado. Oficialmente continuei analfabeto [...] O professor é necessário, mas o essencial é a vontade de aprender. O curso do padre não durou muito e não trouxe, em si, qualquer vantagem apreciável, mas aquele detalhe, que não estava no programa, foi um estímulo valiosíssimo, como outros que tenho recebido pela vida a fora.
Adeus

Almeida.

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