Esta é a segunda parte da homenagem prestada ao Bráulio, com a ajuda de sua filha Duce,
Uma nota de Duce Leite
Já era para ter feito isso mas, a emoção não nos permitiu... mas agora vamos lá...
A vida foi muito boa comigo. Boníssima. Sempre.
Hoje acordei com um lindo sol na cara, e tinha certeza que uma coisa muito especial havia acontecido. Ele veio até mim, meu pai, através das palavras do professor Savio Almeida. Aplausos. Bravos é o que nós da família damos, pois conseguiu de uma forma natural colocar no papel o que foi o nosso Braulio Leite amigo, marido, pai, avô, sogro e todas as outras linhagens. Poucos conseguiram mostrar realmente o que foi esse homem grande e de um coração maior do que todo seu peso.
Foram dias de conversas, trocas de informações, cobranças disso e daquilo mas, que ao final deu-se essa matéria rica, simples e de um sabor inesperado...Única e exclusivamente uma homenagem ao amigo.
.
Nós agradecemos pela sua amizade e carinho por nós todos dedicados, e saiba que a recíproca é verdadeira.
Beijo Grande.
Foi exatamente nesta época que nossa amizade começou. Andamos muito nesta Rural ; está estacionada ao lado do oitão da Igreja de Santa Luzia.
Se podermos perfilar, numa linha
de frente, os homens que fazem a grandeza de nosso Estado, pelo trabalho
honesto, criterioso e até desprendido no campo de suas atividades, naturalmente
que Bráulio Leite Júnior formaria nos primeiros lugares, tal a operosidade de seus
misteres, muitas vezes mais criativos do que técnicos, mas inteligentes do que
esquematizadores. Homem de agilidade mental surpreendente, não dispensa o calor
humano aos seus empreendimentos, empolgando, contagiando e cativando a todos
nós pelo poder de convencimento, pela mobilização que faz em favor de suas
iniciativas, pela persistência com que sabe lutar pelos seus ideais.
Dois dedos de prosa
Sem
dúvida, Bráulio Leite Júnior foi um dos mais importantes alagoanos durante o
correr de todo o século XX. Homem simples, honesto, inteligente teve uma vida
digna ao lado de sua família. Fomos
íntimos amigos. Certo ou errado (também, como qualquer um, ele errava) jamais deixou de ter coragem para defender
suas posições e sempre na vida jogou limpo, jogou de frente.
Ele
não precisa de homenagem, mas o reconhecimento permanente, sem dúvida, nós
devemos dar.
Este
suplemento foi realizado pela diligência de sua filha Duce Pontes e através
dela quero abraçar a Edna.
As
crônicas reproduzidas foram retiradas do seu livro Algumas crônicas escolhidas,
publicado em Maceió no ano de 2005.
Vamos ler.
Sávio
Bráulio, uma grande
figura e um grande amigo
Luiz
Sávio de Almeida
Bráulio Leite Júnior foi um dos meus
grandes amigos; não éramos de viver encangados, mas era daquela amizade em que o espaço e o tempo não incomodavam e
quando nos víamos, tudo fluía como se nada tivesse mudado. Sabíamos do outro o
que bem desejássemos e nos abríamos sem qualquer escondido, quando desejávamos
desabafar a vida. Não foram poucas as vezes em que ficamos os dois, três,
quatro horas falando.
Tivemos algumas aventuras juntos e
lembraria de muitas, mas no momento, bateu uma na cabeça. O Teatro Deodoro tinha uma divisão diferente:
o gabinete dele, ficava do lado esquerdo, onde hoje fica a bilheteria, Ele
mandou me chamar e pediu para não sair do lado dele no gabinete. Iria passar no palco, a famosa Liberdade,
Liberdade dirigida pelo Flávio Rangel. O presidente do DCE da UFAL era Radjalma
Cavalcante e o DCE havia intermediado a vinda do espetáculo. E eles tiveram papel essencial; eu somente
estou falando da parte do Bráulio, com a qual convivi dentro daquele gabinete
simples mas limpo e preservado..
Pauta reservada, anunciado e de repente
chega a ordem: o espetáculo não poderia ser apresentado. É quando Bráulio manda me chamar e nos
trancamos e vi a firmeza como, depois de telefonemas sucessivos, aquela figura humana
imensa, dizia que jamais faria isto, que a pauta havia sido dada e era sagrada.
Foram cinco a dez telefonemas e a expectativa era grande. No silêncio que
ficamos depois de um período mais conturbado, talvez pelo nervoso do quadro,
começamos a rir e a hora do espetáculo chegando. O que poderia acontecer?
Jamais a ordem para cancelar o espetáculo partiria do Teatro Deodoro.
A quebra de braço continuava; em nenhum
momento Bráulio abriu mão. E foi e foi e
o Deodoro ficou aberto. Tudo resolvido. Ele me pergunta para onde eu iria.
Disse que ver o espetáculo. E ele me
pediu: quando terminar passe aqui. Pois bem, vi o espetáculo e passei no
Gabinete. Saímos para jantar: o Flávio, o Bráulio e eu. Acho que ainda era o
tempo da Churrascaria Galo de Campina. O papo não parava e lá pelas três da
manhã o garçom dormiu. Flávio Rangel foi lá e deixou um bilhete: “Jacaré que
dorme no ponto, quando acorda é carteirinha!”.
O do Bráulio dizia para não se
preocupar: iríamos pagar no outro dia e de safadeza deixou meu telefone. Fomos
pagar e com isto, demos por fim o dossiê Liberdade, Liberdade no Teatro
Deodoro. Um homem profundamente
emocional teve uma paciência imensa e não arredou o pé do lugar.
Esta é uma das que vivi com Bráulio
Leite Júnior, vi e partilhei inúmeros sonhos do Bráulio. Ele queria sempre uma
Alagoas boa, e, embora pareça exagerado,
não fosse ele, o Teatro Deodoro talvez não existisse. Foi ele quem construiu o Teatro de Arena,
quem estruturou a Fundação Teatro Deodoro, quem inventou de fazer e fez o Museu da Imagem e do Som. Foi
ele quem deu vida a Os Dyionisios. Criou muita coisa.
Pois este homem, aos 81 anos de
idade, sem pedir permissão à cidade e aos amigos, faleceu e com toda a certeza,
deixou-me com uma permanente saudade. Sei que levou muitas aventuras e muitos
passos de vida comigo. Era turrão e não escolhia palavra. Nunca brigamos, nunca
discutimos, nunca aconteceu a mínima farpa.
Tem dia Bráulio que lembro de você e começo a sorrir. Lembra
de quando a gernte vendia máquina de lavar roupa, que se telefonava para hotéis
e restaurantes oferecendo uma máquina já esqueci a marca inventada? Era Brascheta... E se explicava as maravilhas
que ela fazia? Tou morrendo de rir agora. Pois é: os grandes heróis como você
foi, não esquecem do menino que foram. Muitos hotéis ficaram sem a miraculosa
Beascheta.
Eu escrevi estas linhas com o
coração. Poderia ter escrito de outra maneira, algo formal e intelectualizado.
No entanto, jamais conseguiria, pois o grande apelo do Bráulio para mim, é a
recordação da amizade que sustentamos e ela foi isso: alegria, cumplicidade e
extrema confiança pessoal. E isto para mim é um orgulho, pois considero Bráulio
a grande figura do teatro de Alagoas no século passado. É mentira que Bráulio
esteja esquecido; isto jamais acontecerá, o tempo e as evidências sempre
estarão lembrando o seu nome.
Prefeitura de Maceió! Que tal um bronze
do Bráulio, olhando para o porto como gostava de ficar ou da Praça Deodoro
olhando os dois teatros: um que ele construiu e outro que perseverou em manter
e conservar? Claro que outros fizeram isto: conservar. Mas Bráulio foi uma vida
inteira. Marechal Deodoro precisa de companhia naquela praça, que é uma
das desditas urbanas de Maceió.
Que tal uma placa na entrada da rua
onde ele morou, Prefeitura? Coisa assim:
Como esta rua é minha
Mandei ladrilhar
Com pedrinha de
brilhantes
Para o Bráulio Leite
Júnior passar!
Cidade de Maceió.
Dr.
Biu
Desde aquela época até agora
centenas de estórias, piadas, chistes foram inventadas ou realmente vivenciadas
por uma das mais singulares figuras da nossa Maceió. Pintor de paredes e
contratante de serviços por profissão, o vivente Benedito Alves terminou por
largar as tintas e embrenhar-se, por vocação, no mundo do lenocínio,
tornando-se no mais famoso proxeneta das noites alagoanas. Seu nome de guerra –
Mossoró – tornou-se referência no submundo da cidade, como aconteceu com certa
cervejaria ou com um dicionário da nossa língua. Como se pede uma “Brahma” ou
um “Aurélio”, se diz em Maceió, “vou ao Mossoró”, querendo dizer que se “vai à
zona do meretrício”...
Personalidade multifacetada, o
cidadão Benedito Alves tinha heterônimos que o distinguia em cada setor de
atividades. Como já dissemos, Mossoró era sinônimo de cabaré. “Biu” era
tratamento dos seus auxiliares e empregados, e “pai véio” era o chamamento
respeitoso, feito pelas quengas, ao seu hospedeiro, guia e empregador, do
mundo. Embora fosse “duro” no cobrar as diárias de suas “hóspedes”, dizia-se
que sustentava dezenas de prostitutas decaídas e doentes, dando-lhes tudo que
necessitassem, até o funeral.
Suas estórias, e linguajar de
arrepiar gramáticos, percorreram o Brasil inteiro, sendo contadas nos salões,
barbearias, bares, boates e até mesmo na Academia Brasileira de Letras.
Conhecia segredos de alcova de muitos políticos, empresários e autoridades
importantes e os guardava com avareza e um discreto sorriso acumpliciador e
matreiro. Durante muitos anos foi personagem e foi autor, povoando as noites
maceioenses de sons, alegria, sexo, tilintar de taças e esvaziar de garrafas
madrugadas a fora. Quem não o conhecia pessoalmente, já ouvira falar no seu
nome e na sua decantada “Areia Branca”. Eu mesmo, durante os meses que titulei
uma coluna no saudoso “Jornal das Alagoas”, reservava, dia sim dia não, um
tópico para as proezas do meu simpático e humano “dr. Biu”. Relembro com
nostálgica saudade seus meneios, seu riso largo, seu arquear de sobrancelhas,
seus gestos acolhedores, quando numa noite de boemia errávamos o caminho de
casa, ele pressuroso nos recebia, em se reservado, puxando cadeiras e chamando
o garçom: - Vem cá menino... tá chegando Dr. Bralis, Dr. Jambris, professor
Dinô , seu Druvá, e o Dr. Emis Vasconselvas... E acrescentava: - Tem umas
francesa, umas americana e umas russa... Tudo da Bahia.
Era assim o velho Mossoró. O homem
que, perguntado pó uma incauta missionária, porque deixara de ser pintor para
se dedicar à exploração de mulheres, respondeu: - “A gente tem que escolhê o
mió negoço”... E batendo no baixo-ventre de uma prostituta mais próxima
arrematou: - “Isso que dá dinheiro, irmã, porque lavou tá novo”... A religiosa,
horrorizada, escafedeu-se e nunca mais tentou salvar aquela alma...
Queira Deus que ele ao chegar lá no
céu, não aperreie São Pedro atrás de um banheiro com paredes cobertas por
“branculeijos” e “vermeleijos”, pois “azulejos” ele não queria de jeito nenhum.
Afinal de contas, o nosso Mossoró, até morrer na semana que passou, era
torcedor fanático do Clube de Regatas Brasil...
A nossa Maceió ficou mais triste sem
você, dr. Biu. Descanse em paz.
23/12/1994
– O J
O
Risadinha
Fazia questão de comprar ingresso,
embora fosse amigo de todos os diretores e artistas, mas sua reação espontânea,
sem premeditação ou desejo de perturbar, com voz de riso inconfundível,
transformavam os dramas mais pungentes em ações burlescas, provocando a plateia
mais atenta e séria, em participante do verdadeiro pandemônio de risadas
abafadas e dobradas gargalhadas que aconteciam depois do seu:
- Eh, eh, eh, miseráve... Eh, eh, eh, miseráve…
Cuja entonação ia
aumentando de volume à proporção que ele se emocionava ou ria com a cena
representada...
A princípio, era um susto. Depois um
contágio incontrolável que atingia a todos, inclusive aos artistas, no palco,
parados, mudos, desorientados, tentando conter o riso e, muitas vezes, sem
conseguirem continuar representando, rindo, rindo, todos, plateia e artistas...
Um inferno hilariante!...
Ele, o autor da risadinha, sério,
atônito, olhando para um lado e para o outro, depois encolhido na poltrona,
cabeça baixa, envergonhado, quase sempre abandonado a sala depois de recomeçado
o espetáculo... Um doidera...
Contam que certa feita, no Recife,
durante a Semana Santa, assistindo a cena do enforcamento de Judas, feita pelo
ator Clênio Wanderley (que também fazia o Judas da Paixão de Cristo, em Fazenda
Nova), Agnelo me pleno apogeu cênico, largou a sua casquinada e o seu miseráve bem alto, enquanto o Clênio se
debatia pendurado pelo pescoço. E quanto mais se debatia o personagem, mais
gritava Agnelo e ressoava mais alto sua risada de aprovação e emoção... O povo
ria às bandeiras despregadas, até que o ator desesperado, soltou-se da corda,
pulou do palco para a plateia e esmurrou furiosamente o pobre Risadinha,
quebrando-lhe a dentadura e pisoteando os seus óculos que caíra pelo inópino da
agressão... Acho que não é preciso dizer que nessa noite o espetáculo terminou
ai...
Em Maceió, que eu saiba, o meu bom
Agnelo só esteve por duas vezes. Graças a Deus, naquelas noites exibiram-se
artistas da musica erudita, gênero pelo qual ele não tinha maiores ou menores
predileções. Fomos jantar no Bar das Ostras, quando falou-me do seu
constrangimento e do ocorrido no Teatro Santa Isabel. Depois não o avistei
mais...
Por onde andará, o hoje lembrado e
impagável Risadinha?...
24/04/1995
– O J
Os
alados artistas do Teatro Deodoro
Muito pouca gente, sabe disso.
Somente alguns velhos criadores de pássaros ou os mais antigos frequentadores
da Praça Deodoro.
Quando assumi a direção do Teatro em
1957, o tema já servia para motivar os encontros, todas as tardes, dos
funcionários aposentados e moradores das adjacências. Todos sabiam que naquela
praça viviam os melhores sanhaços canoros de Maceió. Era um bando de mais ou
menos uma dezena, entre o cinza, verde e o azul, encanto dos fiéis ouvintes que
os protegiam contra os moleques e os inúmeros pegadores, aparecidos com
gaiolas, armadilhas e alçapões.
“Seo” Morais, o antigo mordomo do
Tetro, era uma espécie de coordenador do grupo de amigos, reunidos todas as
tardes para jogar gamão, dama e firo, no saguão da velha casa d espetáculos
seus porões transformados em sede de um “clube de caça e pesca”. O magnífico
prédio construído no Governo Euclides Malta em 1910, era um casarão em ruínas,
praticamente sem cumprir suas finalidades especificas. E o saudoso João Siqueira
de Morais, que li residia, era o guardião de sues móveis e material cênico,
composto de 4 varas de gambiarras, 3 refletores quebrados e sem lentes, além de
2 ou 3 telões e rompimentos pintados por Eurico Maciel e Alfredo Dacal. No meio
dessa precariedade e semidestruição trabalhavam o Morais e o Zé Cabral, este,
até hoje graças a Deus vivo e o mais fiel servidor daquela casa. Para mim o
melhor servidor público que conheci e que depois de quase 50 anos ali
trabalhando, nunca foi escolhido o Funcionário Padrão do Estado, como sempre
mereceu.
Um dia, lembro que o Morais, após
receber ordem para mandar limpar o forro do salão de espetáculos, procurou-me
para dizer, reticente, que ali moravam os sanhaços mais admirados da cidade. E
ajuntou: Não queria espantá-los, pois já faziam parte da casa sendo os seus
moradores mais apreciados. E dizia com os olhos brilhando, quase molhados:
- E os bichinhos, diretor, já moram
ali há muito tempo... Os velhos morrem e os pelancos continuam morando, pois
nos oitizeiros da praça os meninos sacodem pedras.
Fiquei sem saber como decidir. Na
minha frente o antigo funcionário de cabelos brancos, olhos aflitos, velho
caçador de tantos animais de grande porte a pedir pelos pássaros; na contramão
a necessidade de limpar o entulho, a
sujeira. Pedi tempo para pensar. Fui para casa maturando o assunto. No outro
dia mandei chamar o Morais.
Limpe até onde for possível... Fiz
um silêncio e acrescentei: E vigie para que nada aconteça aos nossos
hospedes... . E que ninguém saiba do nosso trato, ouviu? – adverti convincente.
O Morais, dentes alvos e certos à
mostra, sorria satisfeito. Quando foi saindo, lembrei-me do seu gato:
- E o gato?...
O
morais tornou:
-
Deixe comigo diretor, ele não mexe não...
Recomendei
ainda:
-
Cuidado, e quando puder, bote pra eles frutas e água...
E
o Morais falando mais baixo:
-
Isso, eu já faço há muito tempo...
Durante
alguns anos ainda, o segredo permaneceu entre nós. Os sanhaços cantavam na
praça, nos jardins laterais e moravam e procriavam no forro do Teatro Deodoro.
Depois
que o Morais foi aposentado e morreu, deixando grande lacuna na administração
do Teatro, os passarinhos desapareceram, sumiram, sem que eu nunca mais ouvisse
falar deles.
E
hoje quando lembro os inquilinos, artistas voadores do Deodoro, recordo também
os versos do poeta Raul Machado que, num poema imortal, na primeira e terceira
estrofes, de Pássaro Morto, diz assim:
Eras, talvez, com tua alma
cristalina,
Nas manhãs em que a terra andava em
festa.
E nas tardes ensolaradas de verão,
O mais sonoro poema da campina.
O Caruso emplumado da floresta.
O Bethoven boêmio da amplidão.
Desdenhoso de glórias e de reclamos.
Amavas a arte com pureza d’alma.
E prescindindo de estímulos alheios.
Cantavas só nas cúpulas dos ramos.
Para o seu gênio não pedias palmas
Nem auditório para teus gorjeios...
Eram assim, os alados cantores do
Teatro Deodoro.
06/07/1992
Os
natais de outrora
O barulho das “rodas-gigantes”,
“carrosséis”, “sombrinhas”, “polvos” e “ondas” misturavam-se às vozes e danças
das pastorinhas e baianas que gingavam em palanques enfeitados, reunindo, em
derredor, torcedores entusiasmados que tudo faziam pelos “cordões” azul ou
encarnado...
As barracas de prendas e de jogos
com seus prêmios expostos, ouvindo-se as falas dos banqueiros determinando começo
e fim das apostas, seguidos dos ruídos das palhetas batendo entre as traves da
roleta, e estalar de tiros secos das espingardas de setas coloridas, espetando
os círculos do “tiro ao alvo”...
As vozes masculinas das cheganças
anunciavam “terra à vista”, enquanto os guerreiros duelavam e cantavam sob a
“proteção de Nossa Senhora”, e os reisados sapateavam e entoavam versos sobre
um “buquê de boninas” e uma “menina, linda flor da madrugada”...
Passeando em torno da praça, moças
de braços dados olhavam de esguelha para os rapazes que se postavam à beira das
calçadas, dizendo galanteios ou cravando olhares demorados sobre as suas
escolhidas. No alto falante, os “telegramas” anunciavam mensagens de elogio ou
marcavam encontros em locais discretos, início, talvez, de uma amizade que iria
perdurar por toda vida... No ar, o cheiro convidativo do cachorro quente, peixe
frito, rolete de cana, algodão doce, farinha de milho, amendoins cozinhando ou
torrado e do caruru e vatapá do velho “baiano”, de pele muito negra, roupa
branca e óculos de lentes bem limpas, refletindo as gambiarras iluminadas.
E acima de tudo, um cheiro bom de
mulher, de moça-virgem que recendia a leite, pó de arroz e colônia, e das
outras, casadas ou não, que traziam entranhado nos corpos o odor do perfume
caro ou do “óleo de mutamba” misturado com pecado, suor de coito, visão
imaginativa de lençóis e camisolas amarfanhadas num só espaço de prazer e
paixão...
Os bondes, nesses tempos usando
sempre “reboques”, passavam apinhados; com trabalho dobrado para os cobradores
que não conseguiam receber todas as passagens. De hora em hora, o apito dos
trens especiais acautelavam a todos, trazendo no comboio centenas de usuários
que a “great Western” transportava da estação central até Bebedouro – “a república
da alegria” do Major Bonifácio da Silveira – com breve parada no parque Rio
Branco (onde construíram o antigo mercado público e hoje se instala o “Mercado
do Artesanato” cheio de pés de eucaliptos, e onde foram realizadas concorridas
festas natalinas).
Nas igrejas iluminadas, abertas
durante toda á noite, os sinos dobravam alertando os muitos fiéis para a “missa
do galo”, rezada impreterivelmente à meia noite. Nas fraldas do morro do farol
podíamos ouvir os ecos das festas distantes, vindos de todos os bairros como da
Pça. Da Liberdade na Pajuçara, da Pça. Raiol em Jaraguá, da Pça do bomfim, no
Poço, da Pça. Bom Conselho, na levada, da Pça. Dos Martírios, no Centro, dos
Largos Stª. Terezinha e Stª. Rita no Farol, e outras muito distantes que não
conseguíamos distinguir, como da Pça. Dos Pobres, no Vergel do Lago, da Pça.
Mané Caixão, na Ponta Grossa, e da Pça. Santo Antônio em Bebedouro, onde se
reunia a melhor sociedade de Maceió, para participar da festa organizada pelo
homem que tanta falta faz a esta cidade inquieta, escura, despoliciada,
crescendo desorganizadamente, que não pode bem comemorar a data maior de toda
cristandade.
Ao relembrar tudo isso nos enchendo
de saudade e de gratidão por todos aqueles que fizeram os Natais de Outrora,
pleno de luzes, cânticos e cores, costumes e tradições, gestos e falas que se
perderam no tempo, quando a nossa querida cidade cantava hinos e se perfumava
de incenso para anunciar o nascimento do Menino-Deus.
Bons tempos aqueles...
24/12/1995
– OD
Tipos
inesquecíveis
Maceió,
como acontece em outras capitais e cidades antigas do Brasil, possui uma
galeria interessantíssima de tipos populares que marcaram época e registraram
aspectos da paisagem humana e social do nosso burgo.
Quando falamos em cônica anterior do
cidadão Benedito Alves – o Mossoró – não pensávamos que houvesse tanta
repercussão e interesse pelo tema. Recebemos mensagens que nos incentivavam e
sugeriam fazermos uma possível retrospectiva dos tipos populares que viveram em
Maceió. De fato, não conhecemos nenhum trabalho de fôlego sobre tão singular
assunto, ao contrario do que ocorre em vários municípios brasileiros. A
história de cada cidade exibe sempre referências pitorescas ou tristes desses
viventes que fazem parte, quase sempre, do universo brincalhão da garotada ou
servem de chacota para outros tantos, disfarçados, semelhantes.
Claro que não se pode numa crônica
detalhar ou descrever tão originais e especiais criaturas. Mas para rememorar,
podemos dizer que Maceió teve entre muitos tipos populares um a quem chamavam
“Guabiraba” que foi uma espécie de “bobo da corte” do Governo Costa Rego. Todos
riam dele, mas o temiam pela simpatia que despertava no jornalista-governador,
homem austero e contrário a intimidades, que não admitia que o aborrecessem ou
criticassem. Só o “Guabiraba” lhe fazia os reparos e recomendações que
quisesse, obtendo como respostas sonoras gargalhadas e, quase sempre,
atendimento. Outro tipo interessante foi um tal de “Dominguinhos”, frequentador
diário das igrejas e solenidades de casamentos, batizados, funerais, missas de 7
dia, com os bolsos do paletó enfeitado com medalhas e santinhos que ia
recolhendo e distribuindo de acordo com o acontecimento; o “Habitante da Lua”,
que ficava sentado no batente lateral da Delegacia Fiscal, com uma serie de
pauzinhos entrançados em curiosos desenhos, pelos quais ele dizia se comunicar
com os extraterrestres; outro mais, o “Ariston”, o negro bom e serviçal que ao
tomar uma carraspana saía com o braço dobrada à altura da boca, o polegar e o
indicador apertando o nariz, tocando fanfarra e imitando o ruído de bumbos
atrás das pessoas que ele desejava homenagear; nesta galeria, incluí-se também
“seu Fortes”, pequeno proprietário de um sítio na antiga Buarque de Macedo, que
andava ligeiro, um cacete na mão, acompanhado de um cão a quem chamava
constantemente com assovios e apitos. Ficava “brabo” quando a molecada o
alcunhava de “comunista” ou “assassino de Getúlio Vargas”; “Augusto Doidinho”
que dizia-se parente de uma autoridade local, se constituía no terror de seus
desafetos e contrários políticos, pois a todos chamava de “cornos, veados e
ladrões” em altos brados e em plena Rua do Comércio; recordo também um a quem
chamavam “Piupiu”, portador de frondoso bigode branco que por ter criticado
Costa Rego, teve o seu bigodão arrancado, fio a fio, por policiais munidos de
alicates, em pleno Relógio Oficial; outro autointitulado “Dr.. Freitas” tomava
porres para contestar políticos, pastores evangélicos e propagandistas comerciais,
negando e desmentindo tudo quando os oradores diziam, provocando anarquia e
confusão nos comícios e assembleias religiosas; vindo do sertão, apareceu um
tipo curioso: trajava farda caqui, capacete “canoa” riunas e óculos de vidro
comum, além de fitas coloridas presas à roupa como se fossem “condecorações”;
falava devagar e guturalmente, dizendo-se chamar “Catrevagem”. Um dia, levado
para se confessar, ao ouvir do padre: - Diga os seus pecados, meu filho... deu
um muxoxo e respondeu: - Diga os do sinhô primeiro; lembro ainda o mulato
pintor de parede, cabelo empastado de brilhantina, dentes separados e anéis de
latão nos dedos, que gostava de cortejar políticos... Contava-se que um dia
perguntaram-lhe como se soletrava “pincel” e ele com ares de “filósofo” foi
dizendo: P-I-N/pin-c-h-e-l/cel, por isso como “chexeléu” ficou conhecido até
morrer. E tantos outros como o “Espinhaço de Gato”, magríssimo cidadão que nos
morros do Farol ficava chorando olhando para os navios no porto e gritando que
haviam lhe roubado a fortuna e as embarcações... “Otília Cascavel”, doida-mansa
que só saía acompanhada de sete ou oito cachorros amarrados à cintura... “Nega
Elefante”, gorda e de beições deformados que corria atrás da meninada ao ouvir
o apelido... “Zarcan”, funileiro no beco da marabá, que corria atrás dos
moleques, com um espeto na mão ameaçando e falando nas santas mães daqueles
endiabrados... “Moleque Namorador”, jornaleiro viciado em maconha, considerado
um dos maiores passistas do Nordeste, que morreu tuberculoso aos vinte e poucos
anos de idade... E muitos outros benditos tipos populares, que se perderam no
passado, mas que serviam para enriquecer o nosso acervo folclórico, de
tradições e costumes, lições de vidas humildes e mosaicos vivos das nossas deficiências
e intolerâncias.
Além do escritor e saudoso cronista
da cidade, Feliz Lima Júnior, poucos literatos se ocuparam do assunto. Seria o
caso de pesquisadores de dedicarem a esse trabalho tão necessário à
historiografia da nossa Maceió, já tão desfigurada e com seus monumentos e
logradouros públicos tão abandonados. Sem dúvida, esse é um assunto que fascina
e merece melhor atenção e maiores cuidados.
Quem se habilita?...
11/02/1995
– J O
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