Francisco Ferraz, um amigo do blog recentemente falecido |
Leila é formada em
Ciências Sociais, Licenciatura pela Universidade Federal de Alagoas, especialista
em Antropologia e mestranda pela mesma instituição. Como especialista defendeu
a monografia intitulada “Veio a ordem de andar”: espaço e família entre os
ciganos Calon no município de Carneiros/AL”. Aproximou-se dos estudos sobre
ciganos ao integrar, como bailarina, o grupo de música e dança cigana
LeshjaeKumpanja. É professora de Sociologia no Ensino Médio na rede estadual de
educação de Alagoas. Tem se dedicado aos estudos sobre etnicidade, processos
identitários e desenvolvimento turístico.
Dois dedos de prosa
Este trabalho de Leila
é um resumo de texto que escreveu e defendeu para título de especialista na
área de Antropologia. É inédito e trata de assunto virgem em Alagoas: nossos
ciganos, aqueles que estão aqui conosco. No caso, Leila estuda e informa sobre
os Calon que se encontram na cidade de Carneiros, adentrada no oeste alagoano.
Preferimos que o texto
não contivesse um largo trato teórico, sendo bem mais informativo nesta sua
versão para nosso suplemento. Pela sua importância, por trabalhar a
diferenciação de uma etnia, por estar contra uma ordem de preconceitos, publicaremos
o trabalho de Leila em quatro números.
Trata-se de uma jovem e
pesquisadora e que muito poderá contribuir nas discussões sobre Alagoas. Foi orientada pela professora (doutoranda) Jordânia
Souza. Fomos com autorização da autora,
responsáveis pela preparação do texto para jornal. Havendo erro, a
responsabilidade é nossa.
Luiz Sávio de Almeida
O MUNICÍPIO DE
CARNEIROS – UM POUSO EM MEIO AOS JURON
Leila Samira Portela de
Morais
Uma vista do rancho |
Um pouco sobre os ciganos
Os povos denominados ciganos,
possuem uma rica cultura e uma longa história de resistências. Não é a toa que
alguns estudiosos afirmam que o maior feito da cultura cigana foi ter
resistido. De acordo com as leituras e pesquisas que realizei,
não existe consenso quanto à origem dos povos ciganos, mas de acordo com
estudos de historiadores e linguistas, levando em consideração o romanês,
língua falada por esses grupos (que apresenta modificações de acordo com a
etnia), os ciganos são oriundos da Índia e se dispersaram pelo mundo há cerca
de 1000 anos (SEPPIR, 2013).
Aqui no Brasil há a presença de três etnias: Calon (oriundos da Espanha e Portugal);
Rom (pertencentes ao subgrupo
Kalderash, Machwaia e Rudari, originários da Romênia; aos Horahané, oriundos da
Turquia e da Grécia e aos Lovara) e Sinti
(chegaram ao país principalmente após a 1ª e 2ª Guerra Mundial). Os Calon detém o maior número de grupos e
estão espalhados por todo o Brasil.
Eles foram a primeira etnia a chegar ao País e, de
acordo com dados da SEPPIR (Secretária de Políticas de Promoção da Igualdade
Racial), os Calon são a etnia cigana com maior número de famílias espalhadas
pelo Brasil; eles vivem em acampamentos, em sua maioria, discriminados e
distantes das políticas públicas, quadro
que tem se alterado nos últimos anos, devido, principalmente, à inclusão dessas
famílias em programas do governo. Os ciganos começaram a ter acesso a serviços
básicos como atendimento nos postos de saúde. No entanto, ainda esbarram no
preconceito e falta de informação das pessoas sobre sua cultura, seu modo de
viver.
Em sua maioria os ciganos vivem em
situação de pobreza e invisibilidade social pela ausência de políticas públicas
destinadas a esses grupos. De acordo com dados da Pesquisa de Informações
Básicas Municipais (MUNIC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE), em 2011 foram identificados 291 acampamentos ciganos, localizados em 21
estados. Desse universo somente 40 prefeituras afirmaram que desenvolviam
políticas para os povos ciganos (SEPIR, 2013). A falta de conhecimento e
respeito às suas práticas e costumes socioculturais também os exclui. De acordo
com dados do disque 100 da Secretária de Direitos Humanos da Presidência da
República (SDH/PR), a principal violação sofrida pela comunidade cigana é a
violência psicológica (preconceito sofrido nas ruas), seguida da violência
institucional (falta ou dificuldade na obtenção de serviços de atendimento aos
cidadãos). Segundo a referida
Secretaria, os Estados com maior concentração de acampamentos ciganos são:
Bahia, Minas Gerais e Goiás. Apesar dos dados oficiais sobre esses povos serem
incipientes, estima-se que há mais de meio milhão de ciganos no Brasil. (SEPPIR,
2013).
A família de Seu Ferraz |
Os colon em Carneiros
Meu trabalho se concentra no município de Carneiros
que se localiza no sertão alagoano a 246 km da capital, Maceió. Com 52 anos de
emancipação política de Santana de Ipanema, possui população estimada de 8.758
habitantes numa área de 113,061 km. O
principal objetivo é buscar levar o leitor para dentro do Rancho Calon
localizado em Carneiros, a fim de conhecermos um pouco as formas de viver e
conhecer o mundo, de construir e reconstruir identidade, diferenciando-se da
população local e de se relacionar com o espaço que esses Calon, da família
extensa Ferraz empreendem.
A relação entre Calon e Juron em
Carneiros
Os
Calon encontram-se arranchados há 9 anos, no município de Carneiros. Chefiado por Francisco Ferraz, o homem mais
velho do rancho (95 anos) que veio à falecer essa semana, residem na comunidade
cerca de 200 pessoas, em grande parte vindas da Bahia. Na comunidade existe em
torno de 60 crianças. Devido às
condições financeiras e ao preconceito que ainda é forte e, também,por diversas
características culturais, vivem de pequenos negócios como trocas, venda de
patuás e amuletos, leitura da sorte em feiras,além de bolsa família e doações.
O
acampamento fica situado na cidade. Na frente da praça principal, onde fica a
Igreja Católica (Igreja Nossa Senhora da Conceição), há uma entrada que, em
menos de 6 metros de caminhada, dá acesso ao rancho. Cada família mora em uma
barraca e no centro do terreno há uma espécie de “palhoça”, local coberto,
espaço de socialização do grupo e onde as visitas são recebidas. Durante o dia,
enquanto as mulheres realizam os afazeres domésticos, os homens ficam reunidos,
na maioria das vezes, nessa palhoça. Marido e mulher só ficam juntos na hora de
dormir, em torno das 20 horas.
As
barracas são grandes, o local onde dorme o casal é separado por cortinas ou tecidos.
A quantidade de tecidos e cortinas é grande em todas elas, a maioria dos
objetos estão sempre cobertos por tecidos de variados tamanhos. Esses tecidos
são trocados com frequência e as barracas estão sempre enfeitadas com diversos
tipos de materiais, como papéis, plásticos, bandeirinhas, embalagens de picolé;
esses ‘enfeites’ também são trocados frequentemente. Durante o dia, há o
intenso fluxo de entrada e saída das barracas, mas os espaços fora delas são os
mais ocupados pelos Calon. A sombra das
árvores certamente constitui um dos mais procurados espaços de
socialização. São poucas as barracas que
possuem fogão, geladeira, mesa, armário, guarda-roupas. TVs, DVDs e aparelhos
de som são comuns nelas. Na maioria só há cama para o casal; as crianças dormem
em colchonetes ou colchões.
A
movimentação no rancho começa cedo; acordamos por volta das 5:30 h da manhã.
Tomamos café e o almoço sai às 10. Os homens comem primeiro (e eu por ser
visita),por último as calin (como se identificam as mulheres ciganas da etnia
Calon) e as crianças. Nas tardes, não
falta café com pão, margarina e biscoito; jantamos as 18:30. Acordando tão
cedo, é comum todos estarem recolhidos até as 20 h. As crianças transitam livre
o dia inteiro pelo acampamento, entram em todas as barracas e fazem as
refeições em qualquer uma delas. O entra e sai é comum, assim como a música
sertaneja que é ouvida quase sempre alta.
A língua que falam
Moradores de Carneiros e
preconceito
Buscando
entender as relações não só internas do rancho, mas também suas relações com o
entorno, realizei entrevista com alguns moradores de Carneiros na própria
cidade, em Maceió e durante o trajeto de Maceió até o município. Alguns
moradores de Carneiros mostraram-se favoráveis à permanência dos Calon na
região. Um deles contou as impressões que as pessoas da cidade possuem em
relação aos ciganos:
Tem gente que tem
preconceito... o povo tem muito... e eles também não tem muita aproximação com
o povo da cidade... que falam que eles deviam já ter ido embora, que não era
pra ter deixado eles ficar, que o prefeito acolheu eles num sei porque, que não
era pra ter vendido terreno pra eles... mas eu mesmo, não tenho nada contra
eles não... nesses dias eu comprei um som de carro a um deles, tinha vendido o
meu, fui e comprei um dele... eles sempre tão em Tapera numa feira de troca que tem lá... eu fui pra
lá pra ver se aparecia um sonzinho melhor daquele que eu tinha, aí ele apareceu
vendendo e eu comprei... sempre compro alguma coisa a eles na feira... eles
vendem de tudo... (E. S. – morador de Carneiros).
Como percebi, as relações com as
pessoas da cidade de Carneiros revelam conflitos, como já esperado. Nos dias
que passei no rancho percebi que os Calon evitam “andar à toa” pela cidade; nos
momentos em que deixam o rancho estão sempre em grupo. Entrevistando algumas pessoas da cidade pude
descobrir alguns dos “costumes” ciganos que mais incomodam aos moradores: o
“nomadismo”; a prática da cartomancia e quiromancia que é associada à mentira e
enganação (essa atividade, na grande maioria das vezes,é praticada pelas Calin
e a única fonte de renda que elas possuem, pois, de acordo com seus costumes
não podem trabalhar); o imaginário do “cigano ladrão”, que gosta de levar
vantagem; o costume de andarem sempre juntos, em família, fato este que em
situação de repressão faz com que sejam associados a uma “quadrilha”, a visão de
que são preguiçosos e desocupados. Notei como é grande a influência de
representações negativas em torno dos ciganos, fazendo com que seu
comportamento seja, quase sempre, associado a algo desviante e suspeito.
Quando
as pessoas da cidade se referiam ao “nomadismo”, demonstravam certo incomodo no
que tange ao fluxo de famílias partindo e voltando ao rancho. Outra associação frequente
à etnia cigana é o de roubo (Teixeira, 2008) marcando nesses povos outro
estigma: o de ladrão. Roubar de acordo com essa visão é um traço de caráter,
algo inato a um indivíduo de etnia cigana. E essa associação também continua
viva no imaginário das pessoas entrevistadas por mim em Carneiros; quando
falamos na convivência com ciganos, esta característica logo se manifesta.
Nós e o “inimigo”
Podemos
perceber que foi construída uma imagem do sujeito de etnia cigana como inimigo.
Seus valores e costumes são vistos como suspeitos. Analisarmos esse ponto de
vista é importante para entendermos a atual situação dos povos ciganos no
Brasil e no mundo. Mas, até que ponto o conhecimento desse “inimigo” também não
nos explica a nós mesmos? Isto nos conduz à reflexão sobre como se dá a
construção desses inimigos. Assim,
considero que os estereótipos em torno da “cultura cigana” dita
sem raízes, errante e liberta diz mais sobre nossa visão de mundo do que sobre
como pensam os “ciganos”.
Outro
costume que me relataram causar incômodo é o fato de andarem em família; raramente
vemos um cigano sozinho, “eles só andam em bando... isso trás falta de
confiança... penso que é pra meter medo, né?... pra que isso, né? Quem não
deve, não teme”, conta um morador. As pessoas ignoram a característica cultural
dos ciganos de andarem em família, um Calon não existe “sozinho”, mas sim envolto
em suas relações familiares. Em Carneiros, os ciganos também são constantemente
associados à violência e à valentia. O momento que os ciganos mais circulam
pela cidade é no domingo, dia de feira;eles também frequentam feiras em outros
municípios próximos,como São José da Tapera e Santana do Ipanema. Durante minha
pesquisa só tive a oportunidade de acompanhar algumas Calin na feira em São
José da Tapera, pois em Carneiros elas evitam pedir e ler a sorte.
O estigma da preguiça
A
não subordinação dos Calon a empregos formais também causa estranhamento e
revolta por parte da população local “são tudo uma cambada de vagabundo... não
quer trabalhar, arrumar emprego.”, em seguida eu questiono: mas eles trabalham
nas feiras fazendo troca, não é? Em seguida, o morador me responde:
só
conversa, enrolada... repara se todo domingo eles tão na feira? Se tem horário
e dignidade igual os outro que trabalha na feira? Tem nada... ganha dinheiro do
governo, ganha dinheiro de coisa errada por aí... (morador de Carneiros).
Para Erving Goffman (1963) a sociedade
estabelece os meios para classificar as pessoas através de atributos tidos como
naturais, comuns e desejáveis. Alguns indivíduos ou indesejáveis, por isso,
lhes são atribuídos uma série de estigmas, atributos depreciativos. Visualizei muitos estigmas direcionados aos
Calon em Carneiros, estes por sua vez, demonstram uma clara consciência do modo
como são vistos pelos brasileiros e algumas vezes usam esses estigmas, manipulando
o “medo dos juron”. Eles também tentam desconstruir os discursos preconceituosos
a seu respeito, suas falas constantemente condenam “quem pega no que alheio”.
A criança e a escola
As
crianças também costumam andar juntas, vão e vêm da escola. A relação entre
ciganos e não ciganos na escola, também é complexa e revela o despreparo dessa
instituição para lidar com o diferente, com a diversidade cultural. No dia 15/09/2013 em uma das minhas visitas
acompanhada de membros do Grupo Leshjae, no lugar da calorosa recepção que era
de costume, fomos recebidos e surpreendidos com diversas reclamações ao que
dizia respeito à estadia das crianças na escola. “As crianças estão apanhando”
– gritavam as mulheres e continuaram: “Já fui na escola reclamar, mas não teve
jeito e agora piorou, o menino chegou todo latanhado”.
Quando
vimos a criança, pudemos entender a indignação dos pais. O menino Ariel de 6
anos de idade (neto de Seu Francisco), estava com o rosto completamente
arranhado, também tinha arranhões nos braços e na barriga, as agressões foram
cometidas dentro da escola por alunos não ciganos. As outras crianças maiores
então começaram a se manifestar falando que eram vítimas de preconceito na
escola, onde além das agressões físicas eram xingados pelos colegas que os
chamavam de “ciganinhos” e mandavam a toda hora eles irem tomar banho.
As
crianças maiores contam que as professoras nunca viam as agressões e que a ida
à escola estava cada dia mais difícil e que sócontinuavam frequentando a escola
pela importância que o benefício do Programa Bolsa Família trás para a
comunidade. As meninas também narraram que são discriminadas pelos vestidos
coloridos que usam para frequentar a escola.
O
jornal virtual Repórter Alagoas do dia 19/09 de 2013 publicou uma pequena
matéria onde Anne Khelen (cigana da etnia Rom e uma das fundadoras do grupo
Leshjae) desabafou:
O
primeiro menino do lado direito chama-se Ariel, está há 15 dias fora da sala de
aula, pois sofreu agressão física de um colega de escola, chegando a ter seu
rosto arranhado. Com medo Ariel não quer voltar à escola e seus primos também
não, pois alegam sofrer perseguição e agressões físicas por serem ciganos. Os
pais de Ariel foram na escola,falaram com a professora que disse não ter visto
isto acontecer e que da próxima vez ela vai ficar de olho. Agora eu me pergunto e se da próxima vez ao
invés de unhas for um estilete? E se da próxima vez, Ariel não consiga chegar
em casa? Por que este ódio gratuito pelos ciganos? E estamos falando de
crianças de 6 anos. A família de Ariel está apreensiva, pois recebem bolsa família
e tem medo do recurso ser cortado, pois o mesmo esta traumatizado e não quer
voltar para a escola. Agora eu me pergunto e se fosse o contrario? Se Ariel
tivesse agredido o coleguinha? Como seria a abordagem dos pais e da escola, em
defesa do aluno agredido? Até quando vamos ver as nossas crianças sofrendo na
escola? Até quando vamos ter medo do brasileiro e nos entocar em nossos
ranchos? Até quando vão nos hostilizar por sermos quem somos e mesmo sem ter
cometido nenhum pecado, não ter roubado e nem matado ninguém vamos ser odiados
pelo folclore popular?
De acordo com os relatos de Sielma e
Miranda (15 e 16 anos de idade, respectivamente), a vida na Escola Estadual de
Educação Básica Genivaldo Novais Agra, que fica localizada no centro da cidade,
bem próximo ao rancho, é bem difícil:“O povo aqui ainda tem muito preconceito,
dizem que cigano engana... que é ladrão...” (Miranda, 16 anos).
Referências
Censo
Populacional 2010. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (29
de novembro de 2010). http://cidades.ibge.gov.br/painel/painel.php?codmun=270180#
SEPPIR.
Brasil Cigano – I Encontro Nacional dos Povos Ciganos, 20 a 24 de maio de 2013,
em Brasília-DF. Disponível em www.seppir.gov.br.
GOFFMAN,
Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4.ª ed.
Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1963.
TEIXEIRA,
Rodrigo Corrêa. Ciganos em Minas Gerais: uma breve história. Belo Horizonte:
Crisálida, 2007.
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