Gian Carlo de Melo Silva é doutor em História pela Universidade Federal de Pernambuco-UFPE e professor da Universidade Federal de Alagoas-UFAL. Ainda é docente nos cursos de pós-graduação em História da Universidade Federal de Alagoas-UFAL e da Universidade Federal Rural de Pernambuco-UFRPE. Organizador de coletâneas como: Cultura e Sociabilidades no Mundo Atlântico (2102), Políticas e Estratégias Administrativas no Mundo Atlântico (2012), ambas pela Editora Universitária da UFPE; Os Crimes e a História do Brasil (2015) publicada pela Edufal e premiada pela VII Bienal do Livro de Alagoas; História da Escravidão em Alagoas (2017) lançada pela Edufal e Imprensa Oficial, com premiação nos 200 anos de emancipação política de Alagoas. Além disso, publicou Um só Corpo, Uma só Carne (2010, EDUFPE e 2014, Edufal) e sua tese de doutoramento com o título Na cor da Pele, o Negro (2018, Edufal). Em 2018 também organizou e publicou com Wilma Nóbrega a obra Olhares de Maceió por Luiz Lavenère, um catálogo com fotos de Maceió no início do século XX (Graciliano Ramos).
Brazilian hisrory: slavery / Histoire brésilienne: l'esclavage / Storia brasiliana: schiavitù / Brasilianische Geschichte: Sklaverei
Uma pequena introdução
Danilo Luiz Marques, Gian Carlo de Melo
Silva & Luana Teixeira
O livro História da Escravidão em Alagoas reúne uma nova geração de historiadores que vem pesquisando e inovando a historiografia alagoana sobre escravidão. Propomos presentar ao público leitor, estudos sobre a escravidão em Alagoas que privilegiam as experiências de vida de sujeitos históricos marginalizados pelo poder e que resistiram à instituição escravista. Também faz parte desta coletânea, reflexões acerca da historiografia alagoana sobre o tema e o local da população afrodescendente nessas narrativas. Esta produção vem, desde o século XIX, privilegiando uma história de homens brancos, escravocratas e católicos.
Nas
primeiras décadas do século XX, os estudos sobre o negro na historiografia
alagoana se concentraram no folclore e na negação de suas resistências durante
a escravidão. Em 1934, durante o 1º Congresso Afro-Brasileiro, realizado em
Recife, Alfredo Brandão, ao apresentar sua pesquisa intitulada Os Negros na
História de Alagoas, expôs que estes eram “conformados com a sorte” e, apesar
de serem obcecados com a ideia de liberdade: “nos tempos posteriores ao
quilombo (Palmares) a obsessão não o levava a revoltas e a reações a mão
armada” (BRANDÃO, 1988, p. 45). Nesta concepção, nega-se todo um histórico de
lutas e resistências protagonizados por povos da Diáspora africana e seus
descentes na região, algo que se tornou bastante característico entre os
pesquisadores da temática em Alagoas. Alfredo Brandão desenvolveu seus estudos
influenciado pelo pensamento de Gilberto Freyre, assim como Manuel Diégues
Junior, que pertencia ao grupo de pesquisadores liderados pelo sociólogo
pernambucano na década de 1930, na cidade do Recife. A obra de destaque do
autor é O Banguê das Alagoas (1949), onde analisa a vida social alagoana tendo
como eixo norteador o sistema açucareiro, uma escrita que mescla factualismo
com folclorismo.
Abelardo Duarte, outro pesquisador alagoano
que se debruçou nas chamadas “culturas negras”, se concentrou em documentar a
presença africana em Alagoas, publicando livros de referência, como: Episódios
do contrabando de africanos nas Alagoas (1966), Os negros muçulmanos nas
Alagoas: os Malês (1958) e o Folclore negro das Alagoas (1974). O autor
integrava um grupo de folcloristas conhecido como Escola de Maceió, que se
caracterizou pela retomada do modelo culturalista de Arthur Ramos, alinhavada à
Escola Nina Rodrigues. Felix Lima Junior também foi dessa geração e escreveu o
livro A escravidão em Alagoas (1975), o qual nos oferece informações sobre os
costumes da sociedade alagoana e os processos de alforrias ao longo do século
XIX.
Nos
anos de 1960, o renomado historiador alagoano, Moacir Medeiros de Sant’Ana
começou a publicar suas pesquisas, onde muitas delas, trataram diretamente da
temática da escravidão. Este autor foi diretor do Arquivo Público de Alagoas
durante décadas, conhecendo como poucos o acervo da instituição. Desta maneira,
seus trabalhos possuem um denso arcabouço documental. Em Uma Associação
Centenária (1966), uma obra feita por encomenda para celebrar o centenário da
Associação Comercial de Maceió, o autor fez uma breve análise histórica da
capital alagoana em 1866, descrevendo ruas e bairros. Também expôs alguns
aspectos da escravidão, sobremaneira acerca das fugas e anúncios em periódicos
locais e leilões de escravizados. Ao fazer uma história econômica da produção
do açúcar na região alagoana, Sant’Ana em seu Contribuição à História do Açúcar
em Alagoas (1970) dedicou algumas páginas aos trabalhadores escravizados,
trazendo dados estatísticos importantes. No final dos anos 1980, em virtude do
centenário da abolição da escravatura no Brasil, publicou três livros sobre a
temática. O primeiro deles: A Queima de Documentos da Escravidão (1988) tratou
da portaria de Rui Barbosa de 14 de dezembro de 1890 para queimar todos os
papéis, livros e documentos do Ministério da Fazendo acerca do “elemento
servil”. Em 1989, Sant’Ana lançou um levantamento bibliográfico sobre
escravidão em Bibliografia Sobre o Negro. No mesmo ano, publicou o Mitos da
Escravidão (1989), onde questionou as ideias do senhor bondoso e do negro
submisso e intelectualmente inferior.
Um
dos principais problemas enfrentados pelos historiadores que decidem dedicar
seu trabalho a pesquisar escravidão em Alagoas diz respeito ao acesso e às
condições dos arquivos existentes no Estado. Fontes existem, bem como uma
sólida legislação que prevê sua preservação por parte dos órgãos competentes e
garante o acesso à comunidade científica e ao público geral. No entanto, quando
se trata de instituições que detêm acervos relacionados ao período de vigência
da escravidão no Brasil, apenas o Arquivo Público de Alagoas, que vem se
modernizando e aperfeiçoando na gestão de seu valioso acervo, e o Instituto
Histórico e Geográfico de Alagoas, histórica instituição de coleção e guarda de
documentos e lócus de pesquisa de gerações, cumprem adequadamente o papel de
proteger e fomentar o patrimônio histórico e cultural representados pelas
fontes documentais. Muitos outros acervos serão citados ao longo desta
coletânea, mas nenhum deles possui uma política arquivística adequada de
preservação e guarda dos documentos, sendo que o acesso aos mesmos precisa
sempre contar com uma boa dose de paciência, negociação e até mesmo
encaminhamento de processos administrativos demorados, que nem sempre
correspondem aos cronogramas exigidos pelas agências de fomento. Espera-se que
a divulgação das pesquisas atuais possa sensibilizar um maior número de
gestores públicos para a importância de preservação e organização de seus
acervos institucionais, viabilizando cada vez mais a ampliação da pesquisa
histórica em Alagoas e a valorização do profissional de história no Estado.
Escravidão e Possibilidades de Alforrias no
Período Colonial: Capitania de Pernambuco – Comarca das Alagoas
Gian Carlo de Melo Silva
A presença dos primeiros africanos em território Pernambucano data do século XVI. Em tese só foram desembarcados a partir do alvará de D. João III de 1549 autoriza a entrada de cativos vindos da Guiné e São Tomé, limitados a 120 peças para cada engenho montado e com capacidade de produção (SILVA, 1988, p. 107). Antes disso, Duarte Coelho já tentava conseguir o contrato para importação de africanos, algo que não foi concedido pela coroa, porém não é possível saber a quantidade que foi desembarcada antes de 1549.
Tal período coincide com as informações
fornecidas por Diégues Júnior que afirma ser da segunda metade do XVI a
introdução do homem negro em Alagoas (2012a, p. 164). Se a lei de D. João III
foi realizada à risca, os primeiros africanos chegaram aqui para os engenhos
fundados por Cristóvão Lins, seus descendentes e os “colaboradores da obra de
colonização”, como foi Rodrigo de Barros Pimentel, que construiu engenhos de
açúcar. A expansão dos canaviais se estendeu desde a parte norte de Alagoas e [...] continuou estendendo-se; ocupou a
zona das lagoas, marginando os rios Mundaú e Paraíba; atingiu São Miguel. Ao
iniciar-se o século XVII, o litoral alagoano estava colonizado; os bueiros de
engenhos se espalhavam pelos vales dos rios Manguaba, Camaragibe, Santo Antônio
Grande, Paraíba, Mundaú, São Miguel e também pelas duas lagoas: a do Norte, ou
Mundaú, e a do Sul, ou Manguaba [...] (DIÉGUES JÚNIOR, 2012b, p.34-35).
Essa expansão da cana em Alagoas
necessitava do trabalho do homem e da mulher negra. Como lembra Alfredo Brandão
“o primeiro negro apareceu em Alagoas quase com o primeiro branco” (1988,
p.19). Foram os negros um dos atores
primordiais para o processo de colonização, sem o seu suor e esforço físico, a
cana, o engenho, a moenda, a sociedade não teria se desenvolvido. Como lembra
Freyre, algumas das ocupações dos negros no Brasil colonial foram músicos,
sangradores, dentistas, barbeiros e “não apenas negros da enxada ou de cozinha”
(FREYRE, 2006, pp.499-553). Os africanos e seus descendentes são parte
fundamental, um alicerce da sociedade que se formou no Brasil de outrora.
Com o passar dos anos e a presença cada vez
maior de escravos surgem às primeiras libertações, que vão dar origem a um
elemento novo, com uma condição diferenciada entre os negros, são os homens e
mulheres forros. O registro mais antigo de alforrias na Capitania de Pernambuco
que temos conhecimento é o da “negra Anna”, que ocorreu no ano de 1656. O seu
senhor Pero Barrozo disse em testamento que deixava “Anna forra, livre, e
isenta, por ser velha, e me ter feito muito serviço, com muito cuidado de minha
fazenda”.
O ato de alforriar algum escravo, talvez
viesse preencher a vontade descrita por Azurara na epígrafe deste artigo, porém
tinha um significado que mudava a ordenação social, cirando uma geração de
novos homens e mulheres que viviam em uma condição jurídica e social diferente.
Afinal, eram negros, pardos, crioulos, cabras, angolas, minas e tantas outras
designações que passaram a existir nos registros acompanhados do termo forro
após o seu nome.
Sobre a situação do forro, ele passou a ter
um status diferenciado na sociedade colonial, seja em Alagoas ou no resto do
Brasil. Conforme Russel-Wood, os “escravos negros nascidos no Brasil tinham
vantagens visíveis , quando libertados, sobre os negros nascidos na África”
(2005, p. 86). Essa diferenciação ocorria, por exemplo, por ser mais fácil aos
escravos nascidos no Brasil conseguirem alforria do que os que vieram da
África. (SILVA, 2014b & LARA, 2007, p. 128).
Ampliando nossas observações vale lembrar
que no mundo colonial os forros tinham um papel significativo, seja simbólico
para os demais cativos que poderiam ter esperanças de alcançar a liberdade, ou
como uma massa que legitimava o poder, como lembra Mathias ao afirmar que “para
obter sua legitimação social, a elite necessariamente deveria interagir com
todos os segmentos da sociedade” (MATHIAS, 2012, p. 299). Neste processo de
interação é que podemos vislumbrar as negociações dentro da escravidão, que
favoreceu os cativos e seus descendentes a participarem mais ativamente da
formação social do Brasil.
Em sua definição do termo alforria, Sheila
Farias (In: VAINFAS, 2001, p. 30) apresenta a existências de três maneiras para
o ex-escravo asseverar sua condição de forro na sociedade. São elas: a carta ou
o “papel de liberdade” devidamente estruturada com assinatura do senhor ou de
alguém por ele outorgado e que poderia ser registrada em cartório; A outra
maneira era o registro nos testamentos, em que ocorriam as divisões dos bens e
algumas alforrias podiam ser concedidas como reconhecimento da companhia e
trabalho exercido pelo cativo. Por fim a pia batismal, local em que no momento
do batismo o senhor anunciava que forrava a criança.
Assim, a alforria foi uma prática social
corrente no período colonial e era um mecanismo inserido dentro de contextos
próprios e que poderia ser concedida,
[...] solenemente ou não, direta ou
indiretamente, expressamente, tacitamente ou de maneira presumida, por ato
entre vivos ou como última vontade, em ato particular ou na presença de um
notário, com ou sem documento escrito [...] (MATTOSO, 2003, p.177).
Tal prática social foi vivenciada em
Alagoas e, nos servem de exemplo, para observarmos como os senhores e, alguns
escravos, foram atores do cotidiano vivenciado nas terras ao sul da Capitania
de Pernambuco.
Nossas fontes percorrem parte do período
colonial nas localidades de Penedo e Santa Maria Magdalena de Alagoas do Sul.
Cada localidade nos fornece fontes que apresentam alforrias de homens e
mulheres, sejam em cartas de alforrias, testamentos ou registro de batismo.
No início do século XVIII já encontramos
uma prática de alforria que ficou conhecida como coartação , nela, o escravo
alforriado tinha parte fundamental para alcançar sua nova condição jurídica. A
coartação exigia dele um algo mais, que poderia significar alguns anos de
trabalho para completar o pecúlio exigido ou ainda, exercer algumas funções até
a morte do seu senhor. Só após tal exigência é que ele teria de fato sua carta
de liberdade.
Na Vila do Penedo, no ano de 1713 o padre
Manoel Pereira usou de tal artificio em seu testamento. Escreveu que deixava o
meu mulatinho Francisco filho de Izabel coartado em quarenta mil réis que
dando-os será, o valor não seria pago pelo mulatinho, e o cotidiano urbano de
Penedo é que iria possibilitar o acumulo de tal quantia através do trabalho de
sua mãe Izabel ou outro parente da criança.
O mesmo padre ainda era possuidor de alguns
escravos, e trabalhando dentro das lógicas de gratidão e bons serviços
prestados declarou que entre
os escravos que nosso senhor por sua
infinita piedade e misericórdia me tem emprestado e conservado até o presente ,
há Ambrozio Luiz, que foi do Goes o qual na perda do barco que tive, pós
bastante cuidado em me aproveitar a fabrica dele, e há bastantes anos me tem
ganhado com que me ajudou a viver, e assim o deixo forro, livre, e isento de
toda a servidão e cativeiro: e lhe mando viva bem com sua mulher e como
verdadeiro cristão. E Declaro que outro escravo que tenho é Miguel Gomes que
foi do Hermitão de S. Gonçalo, o qual desde que o comprei me serviu, e servio
assistindo-me sempre de noite, e de dia com bastante diligencia, e zelo, e
assim o deixo forro, livre, e isento de toda a servidão e cativeiro: e lhe
mando que nos primeiros três anos depois do meu falecimento me mande em cada um
deles dizer duas missas por mim segundo a disposição da irmandade de Nossa
Senhora do Socorro, em que há muitos anos estou assentado por irmão.
O exercício da piedade cristã ao alforriar
dois escravos seguiu um contexto maior e que acompanhava durante alguns anos o
cotidiano dos escravos e de seu senhor. O primeiro dos forros foi Ambrozio, que
era um escravo casado - obedecendo à lógica de inserção nos preceitos do
catolicismo tridentino , estava ao lado do Padre desde a perda de um barco e
graças ao fato de ter “ganhado”, num possível trabalho de escravo de ganho nas
ruas da Vila de Penedo “ajudou a viver” o seu senhor.
Com sua dedicação cotidiana, Ambrozio
conquistou o reconhecimento do Padre Manoel e foi alforriado em seu testamento,
mas não sem antes prestar a atenção na ultima ordem de seu senhor que era viver
“bem com sua mulher e como verdadeiro cristão”.
Depois foi a vez de Miguel, que tinha nome
de anjo, mas era mais um escravo do Padre e tinha certa vivência no mundo
religioso, pois seu antigo proprietário era um ermitão de São Gonçalo Garcia,
uma das irmandades com maior influência na região (ALVES, 2016). Miguel
acompanhou desde a sua compra o seu senhor com bastante “diligencia e zelo” e
por isso conquistou sua alforria em testamento.
Os detalhes da vida destes dois escravos
podem ser compreendidos ao analisarmos o discurso do seu senhor no momento em
que os deixava forros. Vemos que uma vida de dedicação e obediência ao seu dono
era algo primordial e bastante valorizado, talvez, observando isso tais
escravos conquistaram inserção através da fé católica, seguindo suas regras,
diferenciando-se dos demais e agradando ao Padre Manoel. Por fim, e aqui mais
um momento de realização de ordem, os alforriados ficavam encarregados de “nos
primeiros três anos depois do meu falecimento me mande em cada um deles dizer
duas missas”. Nada mais “justo” para demonstrar a gratidão que esses homens
tinham com seu antigo senhor.
Já em Santa Maria Magdalena de Alagoas do
Sul encontramos a alforria de Maria, que foi libertada pela sua senhora Maria
Joaquina no ano de 1788. Um ato que ficou registrado em cartório, como deveria
ser feito em todos os casos para garantir a segurança do ex-escravo. Consta na
carta de alforria que
Eu Maria Joaquina, que entre os mais bens
que possuo de herança e pacífica posse, e bem assim huma mulatinha de peito por
nome Maria, a qual a forro, e como com efeito forrado a tenho de hoje para todo
o sempre, para que se utilize de sua liberdade de hoje em diante, como se fora
de nascimento, cuja alforria me obriga a fazer boa, firme e valiosa, a custa da
minha fazenda, pois a faço de minha livre vontade e sem constrangimento algum
[...].
Como é possível ver, a mulatinha não foi
alforriada na pia batismal, sua senhora concedeu a liberdade posteriormente e
fez questão de ratificar que sua vontade estava sendo realizada de forma
“espontânea” por sua “livre vontade”. Ressaltam os termos usados por Maria
Joaquina para com Maria, o desejo de “que se utilize de sua liberdade de hoje
em diante, como se fora de nascimento”, podem significar uma relação que
extrapolou os limites entre senhora e escrava. Fazia, no momento da morte, o
reconhecimento de que a mulatinha tinha o direito de ser liberta e viver sua
liberdade como se fosse desde o nascimento.
Outras possibilidades de alforria ocorreram
na pia batismal, em Santa Maria Magdalena de Alagoas do Sul encontramos dois
exemplos de crianças com poucos dias de nascimento que tiveram sua liberdade
registrada. A existência de registros dessa natureza,
as fontes eclesiásticas podem nos ser
extremamente úteis, pois a sociedade construída na conquista americana foi
montada em meio à chamada Contra-reforma Romana, o que significa afirmar que
aquelas gentes, da nobreza da terra aos escravos da Guiné, produziram registros
dando conta a Deus de seus compromissos e atos” (FRAGOSO, 2014, p. 27).
Para dar conta a Deus de seus atos, temos o
primeiro exemplo de batismo com alforria que ocorreu no domingo, dia 14 de
outubro de 1810, quando na Igreja Matriz Joaquim de Oliveira Barros “pôs os
santos óleos” em Marcos, que era filho de Manoel e Joaquina, todos eram
escravos de Maria Francisca e moradores da freguesia. Os padrinhos eram Jozé
Barboza e Antonia Maria, ambos solteiros e juntamente com os demais disseram
que o “dito batizado o havia por forro de hoje por diante”.
Já no ano de 1811 foi à vez de Januária
conseguir ser alforriada. Na quarta-feira, dia 31 de julho do referido ano ela
esteve presente com sua mãe Maria, o seu senhor Joaquim de Santa Anna, seus
padrinhos Jozé Ignacio e Francisca Rodrigues na Igreja Matriz. Lá o padre José
Ignacio do Rego a batizou, inserindo-a no mundo cristão, e logo após o senhor
Joaquim “disse que a dava por forra liberta de hoje para sempre” tirando o
cativeiro do destino da pequena Januária.
Ser alforriado no momento do batismo, como
ocorreu com Marcos e Januária, tem um significado maior para os seus pais, pois
é o fruto do esforço deles que será recompensado com a alforria do rebento. A
próxima geração familiar não teria mais o cativeiro como morada. Alcançavam
através do filho forro, algo que talvez não fossem concretizar tão rapidamente.
Além disso, os pais e os filhos ampliavam os laços existentes na sociedade, os
padrinhos agora eram parte da família e tinham a obrigação de proteger e zelar
pelos seus afilhados. Eles eram uma extensão da base familiar (SILVA, 2014b).
A observância das práticas de alforria na
Alagoas do século XVIII mostra um pouco da vivência cotidiana de homens e
mulheres que conseguiram mudar sua condição ou a de seus filhos. Estavam sendo
inseridos numa nova perspectiva social, saindo da escravidão para uma
liberdade, conquistada muitas vezes a partir da dissimulação.
Os casos aqui apresentados são apenas
possibilidades para entendermos o desenrolar de um processo que começou no
século XVI em Alagoas e que perdurou até finais dos Oitocentos. Marcando a
construção de uma sociedade patriarcal, com o lastro na grande lavoura
canavieira e na exploração da mão de obra escrava. Mão essa que não existiu
voltada só para o trabalho pesado, viveu e contribuiu para formação social,
para cultura, para economia e que hodiernamente precisa ser cada vez mais
valorizada em sua existência e sua história.
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