Pequena
explicação sobre um texto provisório
Luiz Sávio de Almeida
Drought and popular literature
Este texto é uma nota escrita para ser
colocada em texto sobre a seca em Alagoas no século XIX, em continuidade ao que
fizemos com o cólera, trabalhando uma história sociológica, campo que ligamos
em grande parte à discussão encaminhada por Lucien Goldman. No fundo da
questão, existe uma relação forte entre o cólera e a seca no decorrer do século
XIX: em ambos se vive os tremores e pavores e horrores em uma sociedade
fragilizada sem possibilidade efetiva de libertar-se. O cólera fazia parte do
grande universo das epidemias, que tanto marcaram a nossa formação histórica.
Foi um inesperado para um conjunto da população que, de uma hora para outra,
viu-se em face de um poderoso inimigo, uma doença que aparecia, varejava a morte
e era diferente do que se tinha no comum das mortes.
O cólera era uma surpresa e a seca
nunca poderia ser considerada como tal, pois nunca poderia deixar de existir,
de ser atual e inerente ao modo da organização da sociedade; o cólera foi o que se poderia chamar de exótico, mas
ambos passaram pelo mesmo caminho de dores. Existiria uma história sociológica
destas dores? A resposta é afirmativa na medida em que se resguarde o modo como
a sociedade está, recebe, vive este horror.
A escrita não seria suficiente para representar a crônica destes
momentos; ela é insuficiente e, então, para que se comunique este horror, em
nosso modo de ver, ela tem que aliciar quem estará lendo convidando para soltar
a imaginação e seria com ela que se completaria a leitura e não apenas na
análise que ela estaria propondo.
Sempre fiquei me perguntando, o que havia sido produzido pela seca;
a curiosidade sobre ela se instalou, ainda menino, com a convivência com
um professor: Oto de Brito Guerra, em Natal, no Rio Grande do Norte. Era, junto
com Cascudo, um antigo integralista que repassou a posição, ficando ligado à chamada
Doutrina Social da Igreja. Foi uma pessoa de altíssima influência em minha
vida e eu estudava na biblioteca dele,
pois era amigo íntimo e colega de classe do filho dele: Marcos de Brito Guerra.
O professor especializava parte de sua biblioteca em livros sobre
seca e, vez em quando, eu pegava um e
folheava. Isto foi chamando minha atenção e, também a curiosidade que me dava a
coleção de Vingt-Un Rosado que saía
publicada em Mossoró, também no Rio Grande do Norte. Isto junto às músicas do Luiz Gonzaga foram
fazendo a seca crescer em minha cabeça e sempre estive pensando em escrever
algo sobre ela.
Daí, foram anos e anos tomando notas e sempre achei que poderia ser
um pachorrento trabalho: seria feito sem pressa e englobando alguns assuntos
sincronizados, mas, sobretudo, deveria dar prosseguimento ao que havia sido
ensaiado no texto que escrevi sobre o acontecimento cólera, com o horror
fazendo a ponte entre dois séculos: o XIX e o XX.
O livro seria Breve notícia
sobre a seca nas Alagoas e aos poucos foi tomando forma, mas ainda passará
um bom tempo em elaboração, quem sabe uns dois anos. Havia, contudo, um
capítulo que pouco sofreria alteração e tratava de uma rápda passagem sobre a
chamada literatura de cordel ou sobre os chamados folhetos de feira. Sempre
tratei um folheto de feira com o máximo respeito e sempre considerei seus
autores, pessoas que mereciam ser consultadas, especialmente, em nosso caso,
por montarem uma fala constante sobre a seca,
dando evidência e ressaltando alguns de seus elementos essenciais.
Considero que são uma fala que vem de baixo, numa forma
aproximadíssima ao que fala Thompson sobre uma history from bellow. O que eles teriam dito sobre a seca? Uma
pergunta que satisfazia outra curiosidade. Os dois primeiros textos que
publiquei na minha vida, eram folhetos de feira; um deles para a Campanha da
Fraternidade da CNBB e se chamava Voto
não se vende e consciência não se compra. Este ainda se localiza um
exemplar. O segundo foi escrito com um Compadre meu, infelizmente falecido,
chamado Chico Traíra, famoso cantador no Rio Grande do Norte: As dores do gigante ou a fachada do Brasil.
Deste nada mais tenho, nem mesmo sei o texto, embora de tanto ler vendendo
na feira, a primeira estrofe ficou gravada.
O primeiro era ligado à Arquidiocese de Natal e o segundo era para tomar
cachaça, mas eram folhetos de feira:
Desperta Brasil desperta,
Oh gigante adormecido
Verás que teu povo sofre
Escravizado e ferido
Em cada alma um soluço
Em cada peito um gemido!
Jamais procurei estruturar um livro e sempre deixei que corresse
livre, uma espécie de metodologia trabalhada pelo folheto que sabe aonde quer
chegar e chega; depois de passar por Ceca e Meca, estaremos, sem dúvida no
semiárido das Alagoas. Não esqueço da implicação de Nietsche com os livros que
são escritos para serem livros e que, aliás, Mariategui terminou por adotar. Os desvios aparentes acentuam o sentido da
direção e tudo se encaminha em espécie de carpintaria também aparentemente
caótica à objetividade de um fim que sempre pede continuidade.
O fato é que estamos diante
de anotações em torno do que falam os folhetos de feira e não serão exatamente
sistematizadas desta forma que entrarão no texto maior, mas julgamos que elas
teriam suficiente condição de fecharem como um artigo que não seria
propriamente sobre os folhetos, mas como teriam posição na cultura nordestina, muitos
dizendo que expressam uma visão conservadora e o artigo defendendo que a
crônica e a narrativa parecem encontrar na ordem estratégica da denúncia, o
espaço possível.
Faz sentido? É sem dúvida, um filão a seguir mas o trato da questão
em profundidade, teria de ser em outro trabalho; neste cabe apenas a enunciação
da possibilidade. Por outro lado, a defesa de alguns princípios de honra pode
ser metafórica, referindo-se, a partir dela e com facilidade estratégica, a uma
demonstração cabal de relação dominadora e ai muito além do que aparentemente
significa. Não se trata apenas de uma velha noção de honra, mas a demonstração
de que ela pode ser pisada e, em grande parte, no que lemos, o folheto a ela se
refere quando trata dos desníveis entre senhor e, no caso, flagelado que
simboliza o desfavorecido. Isto pode ser colocado em evidência em diversos
casos; sempre a honra é atingida pela prepotência que é narrada.
Na medida em que falamos de narrativa, admitimos que a arte enuncia
a vida de uma forma, de uma determinada maneira e, ao narrar, se pode
introduzir a análise e incorporar um ensaio que está, sobremaneira nas
entrelinhas. Talvez este seja o melhor caminho para ler-se o folheto: andar
pelo que não está implícito, pelas grandes sinalizações escondidas. Não se pode, simplesmente, acentuar o folheto
de feira como catalizador de uma ideologia conservadora, sem antes perguntar e
discutir o espaço que tem para falar e como falar. É impossível deslocar o folheto do contexto
a que pertence e ele vai ter de encontrar maneiras de estar presente em um
universo que não é por ele acompanhado.
O que está anotado aqui, deve ser considerado como um primeiro
esboço do que poderia estar sendo considerado como pronto para a publicação.
Então, poderia ser considerado como apressado. Talvez na continuidade do
trabalho vá crescendo, mas o texto nos parece guardar uma unidade e é isto que
nos anima a publicar.
A história vinda de baixo: o folheto de feira e a seca (I)
Luiz Sávio de Almeida
A permanente
ressurgência
A tarefa de listar as secas
que aconteceram é interminável pois, na realidade, ela existe todos os anos,
desde que tem o atributo da
perenalidade. Neste sentido, deve ser
entendida como algo que não acaba pois, dentre outros fatores, é
inerente ao semiárido, um conjunto físico. Apesar de parecer contraditório,
mesmo nas melhores chuvas ela existe em sua ancoragem e significado cultural e
político, vivendo uma dupla condição: a de estar latente e a de estar
manifesta. É claro, no entanto, que ela não se repete e, assim, cada seca tem a
sua particularidade e, portanto, cada uma se define por ser diferente na sua
forma de ser e de acontecer.
O ideal, por
consequência seria sempre expressá-la no
plural, salvo quando estiver particularizada e atribuída a determinado tempo. É
isto que fundamenta a historicidade: ela
é uma relação política, ligada ao
semiárido. O que muda nele, muda na seca. Neste sentido, a que ocorre no século
XVI jamais poderia ser considerada igual
à que se desenvolve nesta etapa do século XXI. É a contingência do tempo e do
movimento inerente à formação histórica.
Claro que estamos diante de
algo chamado água e sua contradição que seria a “nãoágua”; este é o dado
fundante das secas que são, por um lado, resultado e, por outro, construção. Em
última análise, ela decorre de determinado tipo de resposta em determinada
condição histórica e está ligada à construção do espaço. É no conjunto de
semiárido que se fundam os sertões e, com eles, um sentimento de pertença e de
possibilidade de individualização: existem os daqui e os dali como se vê no
sertão do Cariri, sertão do Moxotó, do Piancó, Bodocó, Caicó; a literatura
fabrica o alto sertão, o de fora e o de dentro e, por aí, identificações são produzidas dentro do
semiárido onde ocorrem os sertões do sertão.
Neste mesmo
entendimento, se pode indicar o sertão
das Alagoas, de Minas e tudo anda por
onde andar o semiárido que cobre, também, o agreste. Em um conjunto entendido
como sertão tem-se diversos, mas, nesta diversidade, ocorre a universalidade do: o sertanejo, elemento
chave para a construção de uma cultura que, entre outros fatores, ocupa-se da
seca com entendimentos, comportamentos.
Bem se pode dizer, como imagem, que a seca
vive o processo de ressurgência; se
encontra no profundo do cotidiano e interliga o semiárido, sendo, inclusive, o
primeiro grande pressuposto a informar sobre a constituição do que atualmente
se chama de nordeste. O que vamos chamar de ressurgência é simples: este componente do profundo, desesconder-se e
dar-se claro no dia a dia do sertanejo.
O presságio e a vida
Nestas terras sertanejas,
buscar sinais de como estará o tempo, e, portanto, a vida, é tarefa que se aprende desde criança, ao se
ver o olhar para o sol, as novenas, as conversas e modos de prever, atitudes
que entram e rompem ano. A seca é eterna
antecipação; além do drama humano que se desenvolve, está ligada a frágil funcionamento do setor
primário da economia. É quando, nesta fragilidade, o sagrado assume a posição
central das promessas e das procissões, a seca tornando-se um ritual religioso.
A religião e a ciência
estarão nesta seca; a primeira em busca de proteção e milagre e a segunda em
busca do conhecimento gerado no dia a dia da vida, na procura de sinais que indicavam
o rumo que o tempo correria e, isto, para uma sociedade organizada em produção montada sob o risco na
pecuária e na agricultura. Tratava-se de
uma sociedade vulnerável onde a seca não era e nem poderia ser
considerada perigo ou, mesmo, ameaça episódica a vir aleatoriamente pelo azar.
Ela jamais deixava de desesconder-se.
Seca, jamais seria uma surpresa.
Ela se anuncia de muita forma e de diversas
maneiras como nos pássaros, nos astros, no mundo sempre ao nosso derredor e não
é preciso muita ciência para vê-la, basta ter aprendido, saber observar, ter
olhos para ver e ouvidos para ouvir. O anum preto esta ali pousado, debaixo da
árvore verde e frondosa por mais de três dias, o que digamos é muito difícil:
então, o ano será bom, conforme Cascudo registrou[i].
Dizem que também o maribondi-enxum com sua casa imensa, indica sobre a chuva;
se a casa dele é no baixo, então vem seca[ii]
Uma pequena derivação para o Lunário
Ciência e religião na
circularidade que a cultura pressupõe deva existir, sempre souberam, por
exemplo, de São João, São Pedro, pucumã, o sal, o circulo na lua. E antigamente
no corpo das grandes leituras, entre os 12 Pares de França e a Missão Abreviada
tinha-se o senso erudito do Lunário Perpétuo. O Lunário
foi uma das grandes leituras na colônia, pontificando, inclusive, pelos anos de
Império, quem sabe derivado de textos que vinham se arrastando pela Idade
Média; existe Lunário publicado na
Itália em 1535, Espanha em 1606 e já estava em terceira edição com texto
revisto e aumentado pelo seu criador que era Jerônimo Cortes, nascido em
Valência. Como se pode notar, a ideia de Lunário
e de Perpétuo é antiga, inclusive
fora da Península Ibérica. O título que praticamente se repete em português,
espanhol e “italiano”; daí, se pode
notar a importância da lua no universo cultural que se forma no Brasil e tudo
deve convergir para um tronco que não está claro para estas anotações. É dito
que em 1703 aparecera publicação em Lisboa e, sem sombra de dúvida nesta
oportunidade ou antes, virá plantar-se em nossas leituras.
Sempre se teve a
necessidade destas indicações e sempre se desejou um instrumento perpétuo sobre as fases e vizinhanças da lua , o que
alcançou uma boa estirada pelo século XX, com os marca mês e folhinhas pregadas
nas paredes das casas. A lua sempre nos foi vital, não somente para os grandes
fenômenos, mas, inclusive, para os menores de nosso dia a dia o que está,
claramente, presente no termo aluado, na
expressão em que se diz que depende da lua e mesmo no mágico da lua beber a
água de coco e não poder bater no pescado salpesado, sob pena de se arruinar a
carne, da mesma forma que detiora a água do côco que foi por ela bebida.
Há, por exemplo, um lunário
publicado por Gaspar Cardoso de Sequeira, matemático nascido em Murça e
oferecido ao Senhor de Almada[iii].
Isto em 1626 e sendo uma nova edição. Havia consumo, havia utilidade e
popularidade. A lua era mercadoria,
tinha agregação de valor. Pensar como seria o tempo era e sempre foi básico;
imagine-se o que não estaria significando para um contexto agrário, mormente
onde o sofrimento coletivo estaria à espera de começar. Parece, então, existir
um tempo sempre assuntado e se viveria a carga da busca pelos sinais, como se a
leitura da natureza tivesse sido aprendida pela tarefa de pensar a
possibilidade de sofrimento.
É onde aparece a ciência da
pedra de sal a procurar a umidade, a queda da pucumã, o voo das formigas que
terminam por perderem as asas. Bem antes de chegar as novas chuvas, São
João, São Pedro são acionados, como se
da festa dos santos saíssem, também, as águas, numa espécie de continuidade desta
comunhão no sagrado; fisicamente, acabou o sertão distante, as distâncias foram
refeitas pela velocidade, mas ainda existe e existia no XIX um sertão
recôntido, um, sertão no profundo de sua construção cultural que precisava
saber da e sobre a seca.
O antigo coração
Paulatinamente foi acabando
o desconhecido, remontando-se o senso do espaço e o sertão deixando de ser “o interior, o coração das terras” e não
muito pode-se dizer que é “mato longe da
costa” conforme grifava Antônio Moraes Silva[iv],
natural do Rio de Janeiro, que atualizou e reformou o diccionário do Padre D. Rafael Bluteau. O sertão aproximou-se,
apresentou-se, mas continuou a ter as suas marcas profundas e a seca é uma delas no que as incertezas do
tempo indicam e indicavam o caminho ou os caminhos a serem seguidos, até mesmo
quando se tentava persistir em ficar; seria aquele que sairia por último, o que
era verdadeiramente expulso, o descrito por Luiz Gonzaga em o Último Pau de Arara e que somente
largaria a terra no fim do que não poderia terminar. Era um pouco diferente do
adeus à Rosinha de Asa Branca – do
Gonzaga e do letrista fantástico que foi Humberto Texeira – que ficou e tornou-se lembrança e depois resultado de retorno
quando o trovão redondo ou de chicote reboa em A volta da Asa Branca.
O lírico da Rosinha sempre
será sinal de volta para quem foi de um
mundo de seca para tentar a vida; ela
ficou em Propriá, na beira do São Francisco, no confronte do Porto Real do
Colégio e olhando São Braz. Asa Branca surge como marca sertaneja, a poética
nordestina a fez símbolo; existia de monte por aqui e um dos sinas dos tempos
aponta que sumiram; elas ajudam a demonstrar como a história fica na arte.
[i] CASCUDO, Luiz da Câmara.
Aves e pássaros no folclore brasileiro. Revista
do Livro, Ano V, Nº 19, 1960.
[ii] NOMURA, Hitoschi. Superstições
e crenças sobre abelhas, vespas e formigas. O Estado de São Paulo. São
Paulo, 14 jul. 1982, p. 5.
[iii] SEQUEIRA, Gaspar Cardoso de. Tesouro de prudentes novamente
tirado a luz, por Gaspar Cardoso de
Sequeira, matemático, natural da Vila de
Murça. 2ª ed. Lisboa: Nicolau Carvalho Impressor: 1626.
[iv] SILVA, Antônio de Moraes. Dicionário
da língua portuguesa recopilado dos vocabulários até agora impressos, e nesta
segunda edição novamente emendado, e mui acrescentado, por Antônio Moraes da
Silva natural do Rio de Janeiro. Oferecido ao mui alto, e mui poderoso Príncipe
Regente Nosso Senhor. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813.
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