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sábado, 2 de agosto de 2014

Elayne Pontual. A presença da leitura na capital que quer, mas não consegue ler

Esta matéria foi publicada no suplemento Campus do jornal O Dia, Maceió


Quem é quem








Currículo: Elayne Pontual é formada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela Universidade Federal de Alagoas. Idealizou o projeto Vidas Anônimas (www.vidasanonimas.com.br), que você acompanha todos os domingos em O Dia.


Dois dedos de prosa

Maceió tem uma extensa rua de livrarias e, aqui, o povo lê mais do que pensa. Uma grande atividade livreira, terminou por deixar marca e especializar uma boa parte da antiga  Rua das Verduras, especialmente no lado oposto ao chamado Paredão da Assembleia e onde o fluxo de veículos – que incorpora parte do que provém pela Rua do Imperador –  impede a utilização em pleno centro da cidade,  para localização de estabelecimentos de porte alto.  Este  e um conjunto formado por outros fatores levou a que fosse configurado um corredor especializado nos chamados sebos.  Aliás,  avança atualmente para o lado direito da Ladeira da Catedral, onde, também, começa a desenhar-se com ênfase, uma área de venda de material  musical e de eletrônica.
Campus convidou uma jovem e talentosa jornalista para escrever este texto. Trata-se de Elayne Pontual que se preocupa com o que chama de Vidas Anônimas, um projeto que se desenvolve acolhido por  O DIA. Vamos ler Elayne, a que estamos pedindo um novo texto, deixando que sua sensibilidade nos envolva ao falar desta miríade de pequenos e quase-anônimos livreiros que fazem com que Maceió leia.
Luiz Sávio de Almeida
Vazio, julho de 2014



 A presença da leitura na capital que quer, mas não consegue ler

Elayne Pontual







Somente quem passa pela rua Dr. Pontes de Miranda, conhecida também como Rua das Verduras, e presta atenção à quantidade de sebos existentes naquele lugar, consegue perceber o quanto é denso o comércio de livros em Maceió. Transpondo a órbita das grandes e raras livrarias da cidade, a venda de livros na capital alagoana parece contrariar a crença de que nós maceioenses não lemos. Mas o que dizer do imenso acervo de obras que preenche as barracas e lojinhas do paredão da Pontes de Miranda? Será que todo aquele estoque fica mofando em prateleiras empoeiradas?
Para entender como funciona a venda e a compra de livros usados em Maceió, percorremos a Rua das Verduras e entrevistamos alguns sebistas. Ao conversarmos com aqueles que vedem, pudemos entender e conhecer melhor aqueles que compram: quem compra, o que compra e por que compra.
Entre romances clássicos, livros de medicina, literatura brasileira e paradidáticos, batemos um papo com Benedito, José Augusto, Romildo, Ronaldo e Edvaldo, sebistas da Rua das Verduras.
Parte da história
No final da década de 70, Benedito Ferreira Lima, conhecido como Biu, saiu às ruas do centro de Maceió para recolher material reciclável. Com estômago e bolso vazios, o papelão não pesava o suficiente para sustentar suas necessidades. Precisando muito de dinheiro, o carroceiro resolveu acrescentar livros e revistas à sua carroça.
Certo dia, ao se sentir muito cansado, Biu parou na Praça Dom Pedro II para descansar e organizar seus pertences. Algumas pessoas perguntaram se os livros estavam à venda e ele, despretensiosamente, respondeu que sim. “E quanto custa esse aqui?”, apontou uma moça. Essa pergunta levou Benedito a pensar que poderia dar preços aos livros usados e, ao invés de vender por peso, passou a negociar as unidades. Foi assim que surgiu, segundo alguns sebistas do local, um dos primeiros sebos do conhecido Paredão da Assembleia Legislativa.
Esta é uma das versões sobre o início dos alfarrábios na Rua da Verdura. Ela conta que Benedito, ao ver que o negócio estava dando certo, decidiu expor sua mercadoria no paredão da rua Dr. Pontes de Miranda, no centro da cidade, onde, até hoje, se encontram a maioria dos sebos de Maceió. Os primeiros fregueses surgiram e vários funcionários e membros da Assembleia Legislativa passaram a procurar os livros e comprá-los de uma forma muito curiosa. De acordo com alguns sebistas do local, como os funcionários da Assembleia não queriam descer até onde Benedito estava, os clientes jogavam uma corda e o negociante amarrava os livros para que eles os puxassem para cima, tudo através das janelas do prédio da Assembleia.
Benedito casou, teve filhos e deixou seu estabelecimento aos cuidados de um deles. José Augusto da Silva Lima conta a história do pai com emoção, e em cada palavra o orgulho se destaca como o sentimento mais forte. Recorda-se, agitado, o tempo em que Benedito ainda era vivo e que o ensinava a administrar o negócio.
“Conheci muita gente importante por causa do meu pai”, lembra-se de Dona Elsa, mãe do autor alagoano Abelardo Duarte. “Ela me ofereceu várias obras escritas pelo filho quando eu tinha 19 anos”. José Augusto conta também que coleciona Gibis do Tex e que tem a edição nº 1 da Turma da Mônica.    
O herdeiro de um dos primeiros sebos de Maceió sempre teve pretensões de levar o mercado de alfarrábios para o interior do Estado. No entanto, a dificuldade para pagar o aluguel do estabelecimento não permitiu sequer que ele continuasse com seu negócio no Centro de Maceió.  E foi assim que um dos sebos mais antigos da cidade fechou suas portas.

Hoje José Augusto trabalha como manobrista no estacionamento vip do Parque Shopping Maceió, mas pretende voltar a vender livros usados o quanto antes. “Você pode não acreditar, mas muitos colegas de trabalho, funcionários do shopping, me procuram para comprar meus livros”. 

Augusto já pensou em vender todo o seu acervo, que mantém protegido em um espaço de sua casa, mas não consegue se desfazer porque gosta de trabalhar como sebista e, além disso, pretende manter o negócio que foi herança de seu pai. “Recentemente fui ao centro e encontrei um antigo colecionador, conhecido meu, e assim que ele me viu já foi entregando uma sacola cheia de livros. Tem muita gente boa que nos ajuda e esse é um dos motivos que me faz querer voltar”.

Herói dos livros

José Augusto fechou suas portas – não por muito tempo, ele garante –, mas existem outros sebistas que permanecem no paredão da Assembleia vendendo seus livros usados. Um exemplo é Romildo Silva, proprietário de um dos maiores sebos da cidade, o Herói dos Livros, que, de acordo com o comerciante, hoje conta com um acervo de quase 39 mil volumes.
Romildo entrou para mercado de alfarrábios no final de 1984: “Quando estamos sem dinheiro, pensamos logo em vender coisas que não usamos mais”, lembrou. Antes de abrir um sebo, queria ser cozinheiro, mas desistiu e resolveu investir na venda de livros usados montando uma pequena barraca no paredão.
O fato mais marcante que Romildo viveu durante esses anos como sebista, de acordo com ele, foi em 1992, quando um senhor parou com um caminhão cheio de livros na frente de sua barraca vazia. Apressado, o homem perguntou se havia alguém ali que estivesse interessado em comprar livros. Romildo alegou que não tinha dinheiro sequer para comer e que estava ali porque era o único lugar que tinha para dormir. O senhor respondeu que qualquer valor oferecido seria bem-vindo. Romildo prometeu que no dia seguinte iria depositar uma boa quantia de dinheiro, mas que, para isso, precisaria dos livros.
No dia seguinte, Romildo conseguiu vender muito mais do que esperava, depositando, como prometido, um valor considerável na conta do misterioso homem. Daí por diante, o sebista confiou em sua veia empreendedora e na sorte grande, passando a investir cada vez mais no mercado de alfarrábios.
Segundo Romildo, ele mesmo deu início ao comércio de sebos no interior de Alagoas, montando uma barraca em Santana do Ipanema, mas desistiu porque nunca teve muita oportunidade de continuar com o comércio de sebos na cidade, por conta da distância: “A mercadoria demorava pra chegar. Quando o produto se esgotava aqui [Maceió], é que começava a vender em Santana”.
Atualmente, Romildo está com a reforma de seu estabelecimento no centro da capital parada por questões burocráticas, já que o prédio é alugado. No entanto, o sebista pretende dar continuidade às obras com a intenção de deixar o local mais sofisticado e confortável para seus clientes.
Centralização e herança
Muita gente que já passou pela rua Dr. Pontes de Miranda ou Rua da Verdura já se perguntou o porquê de boa parte dos sebos da cidade estarem concentrados naquele local. Para Edvaldo Pereira, do sebo Escritos e discos, tudo começou com as barraquinhas no paredão. “O pessoal jogava livros em lonas e vendia. Depois a coisa foi crescendo e alguns vieram para as lojinhas. Eu não tenho certeza, mas parece que a mais antiga data de 72 ou 73, mas já passou de mão em mão”.
Além de considerar que os sebos estão concentrados na Rua das Verduras porque muitos foram passados de pai para filho, Ronaldo Augusto, do Alfarrábio Cultural, acredita também que o agrupamento na rua do Paredão da Assembleia “se dá por conta da centralização: quanto mais centralizado, melhor o comércio. E geralmente as bancas foram passadas de pai para filho, aí as pessoas dificilmente saem de lá”.
Acervo e dificuldades
Ronaldo Augusto Tenório dos Santos começou no mercado de sebos quando tinha 11 anos. Seus livros ficavam dentro de um caixote coberto por uma lona, no chão do Paredão da Assembleia. “Meu irmão precisou de ajuda e eu fui dar um apoio. Com o tempo alugamos um ponto e de lá para cá a gente foi se organizando até conseguirmos alugar uma lojinha”, conta o proprietário do Alfarrábio Cultural.
Assim como a maioria dos sebistas entrevistados, Ronaldo garante que sua maior dificuldade é adquirir um bom acervo, mantido por compra, troca e doações: “Quando não chega material, sentimos o aperto”. Edvaldo José Pereira, de 52 anos, dono do alfarrábio Escritos e Discos, também enfrenta este problema: “Temos muito contratempo para adquirir livros. Quando chega, nem sempre é um material que podemos aproveitar. Muitas vezes compramos um pacote, só que vem uns 10% a 20% daquele lote que pode se dizer que é aproveitável”, lamenta.
Para manter o acervo, os sebistas precisam aguardar por doações e ofertas. No caso da doação, na maioria das vezes, pouca coisa é aproveitável. “Os temas jurídicos, contabilidade, informática e medicina quase nunca são utilizáveis. No Direito, por exemplo, quando se trata de um código ou processo geralmente recebemos conteúdo defasado porque sempre existe uma alteração e quando as pessoas se desfazem desses livros normalmente já estão desatualizados. O romance demora pra sair, mas uma hora sai. A área de humanas, nível superior, tem uma busca e é um tipo de livro que quase nunca se torna ultrapassado, como história, filosofia, antropologia, sociologia ou política”, explica.
Apesar das dificuldades, de acordo com Edvaldo José Pereira, dono do alfarrábio Escritos e Discos, os sebistas do paredão não têm nenhuma associação ou sindicado, mas ele sente falta de uma organização e união da categoria. “Para isso é preciso que todo mundo queira. Sentimos falta pra fazer reforma numa barraca, empréstimo, capital de giro, enfim, viabilizar esse tipo de coisa”. De acordo com o comerciante, os proprietários dos sebos no centro da cidade também não têm nenhum incentivo do governo. “O poder público poderia nos ajudar na compra de livros por um preço acessível, por exemplo. Temos muita dificuldade para adquirir mercadoria”.
Com cerca de 3 mil livros em seu acervo, amante da poesia matuta de Patativa do Assaré, Edvaldo Pereira se mudou há dois meses para um corredor na rua do paredão e em breve vai colocar uma plaquinha para identificar o local. “O negócio está um pouco desgastado, porque as pessoas hoje têm a opção do mercado virtual, os sebos virtuais e muita gente compra pela internet. Mas temos um movimento que eu diria ser razoável”.
Para Edvaldo, a Livraria Leitura, a maior do Estado, aberta recentemente com o lançamento do Shopping Parque Maceió, não interferiu nas vendas dos sebos. “Apesar de ser uma alternativa para os alagoanos, não alterou a venda aqui. Aliás, nós alagoanos, estávamos precisando de uma livraria nesse porte. Talvez ela não tenha atendido às expectativas da população, mas de qualquer forma já é uma opção no mercado”, avalia.
Raridades
Mesmo com as possibilidades oferecidas pela internet, os sebos físicos continuam vendendo seus livros usados para uma clientela fiel. E, ainda que abram grandes livrarias na cidade, há quem rejeite o cheirinho de novo e ame as páginas empoeiradas dos antigos ou o mistério das edições raras.
Amanda Duarte, antiga frequentadora de sebos, diz gostar dos livros usados porque são mais baratos, se comparados aos best sallers encontrados nas poucas livrarias de Maceió: “Mas, principalmente, porque as raridades me seduzem. Encontrar livros que foram deixados para trás, são pouco procurados ou lembrados pela maioria das pessoas é um prazer para mim. Os apelos mercadológicos encontrados nos mais vendidos não me interessam”, afirma.
Entre os livros e discos presentes nas prateleiras dos sebos da Rua das Verduras, existem as raridades. Ronaldo Augusto, do Alfarrábio Cultural, garante que o livro mais caro vendido por ele foi o Terra das Alagoas. Segundo o sebista, o livro foi patrocinado pelo deputado federal e empresário João Lyra, que distribuiu suas cópias entre amigos. “Ele foi vendido por 1.500, já que se trata de um livro muito bom e que não foi para as livrarias, tornando-se raro”, conta.
Edvaldo Pereira, do Escritos e Discos, acredita que não é a data de impressão de um livro que define se ele é raro. “Tem que ser antigo e de cunho científico. No caso do romance tem que ser uma edição antiga muito procurada, questionada ou que tenha um fato que voltou à tona”. Ele adverte: É preciso ter cuidado, tudo deve ser analisado até se chegar à conclusão de que é uma obra rara. “Há quem acredite que porque o livro é antigo é também raro, mas não é bem assim. Existem livros com edições antigas, por exemplo, que não foram reeditados. Isso é um fator que encarece o preço, porque o pessoal continua a procurar, mas não existe mais no mercado, já está esgotado. ”
O contato com um objeto que já pertenceu a alguém, as marcas do tempo e o mistério por trás dos objetos antigos e usados são grandes atrativos para seus leitores e colecionadores.  “Os colecionadores costumam oferecer um valor muito alto por algumas relíquias. Eles querem, na verdade, é possuir algo que ninguém mais tenha”, conclui Romildo, dono do sebo Herói dos Livros. 

Sim, nós lemos

Em redes sociais como Facebook e Twitter, ou em mesas de bar e até mesmo no sofá de casa, pelo menos uma vez, você já deve ter ouvido alguém reclamar que Maceió poderia ter mais livrarias. Quantas vezes não somos forçados a comprar livros pela internet porque não conseguimos encontrar o título desejado em nossas livrarias e bibliotecas? “Se a demanda parece maior que a oferta, porque ainda temos que sair como os não-leitores do Brasil, como se a culpa fosse nossa? ”, pergunta Nathan Souza, estudante universitário.
Cursando Sistema da Informação, Nathan costuma frequentar os sebos não para comprar livros da sua área de estudo, mas para encontrar aventura e fantasia como nos livros do norte-americano George R. R. Martin, autor das Crônicas de Gelo e Fogo. “Eu gosto desses gêneros porque me prendem da primeira à última página. É uma narrativa que não me deixa entediado. Além disso, são livros que me levam para lugares diferentes, que não existem. É como se me teletransportasse”, explica entusiasmado.
Aos 22 anos, o estudante admite que adquiriu o hábito de ler um pouco tarde, com 14 anos, mas garante que desde então não parou mais. “A gente também pode se viciar em coisa boa”, brinca. Nathan lamenta por ter sempre que recorrer aos sites de grandes livrarias para adquirir lançamentos ou então pegar livros emprestados com alguns amigos que compartilham do mesmo “gosto” para leitura. “E quando pergunto onde meu amigo comprou, ele me diz que foi pela internet. Fora que, convenhamos, nossas bibliotecas passam longe de satisfazer nossas ‘necessidades literárias’. Daí fica complicado”.
Até aqui, ficou claro que para nossos entrevistados, entre sebistas, colecionadores e estudantes, ler não é tanto um problema, mas adquirir ou encontrar um acervo que proporcione a leitura. Com isso, podemos chegar à conclusão de que queremos ler, sim, mas infelizmente faltam livros em Maceió.
Evidentemente, os sebos vendem material que tendem a não ser corrente e nisto bem que poderiam ser considerados como espécie de sítios arqueológicos de textos. Maceió então, em matéria de livros, viveria a contradição de ter um copioso estoque de passado e uma radical ausência de presente, pela falta de livrarias de peso e isto, em um universo alagoano de mais ou menos 80.000 matrículas universitárias.
Talvez a sensação de que a qualquer momento é possível encontrar algo extraordinário esquecido numa prateleira empoeirada seja um dos maiores atrativos dos sebos, mas é certo que muitos clientes chegam já sabendo o que querem. As pessoas não buscam nesses lugares apenas preços baixos, elas vão aos sebos também em busca daquilo que não encontram em livrarias, bibliotecas e até mesmo na internet. Por isso podemos considerar que os sebos têm uma função social, de utilidade pública. Não são apenas um comércio, mas um conjunto de bens que serão passados de geração a geração, uma herança cultural.







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