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sexta-feira, 12 de junho de 2015

AZEVEDO, Myllene. Atente pro lado macabro do Farol também e Arquitetura?



Memories. Everyday life









Este texto foi publicado no Suplemento Campus do jornal O Dia, Maceió, 7 a 13 jun. 2015, n º 119

A ilustração é de Cícero Rodrigues











 


 
Myllena Azevedo
  Arquiteta e Urbanista pela Universidade Federal de Alagoas e aluna especial do mestrado em Dinâmicas do Espaço Habitado (DEHA-UFAL).









Dois dedos de prosa

               Ensino uma disciplina chamada Formação do Espaço Alagoano em programa de Mestrado mantido pela Universidade Federal de Alagoas; os alunos são pessoas diretamente envolvidos nos trabalhos acadêmicos ou que desejam participar de uma pósgraduação.  No primeiro caso, são mestrandos e doutorandos e, no segundo, temos os chamados alunos especiais. Geralmente peço que – a pessoa desejando – me entregue toda semana, observações que fizeram  sobre o cotidiano,  tanto no viés atual, quanto no campo da memória.
               Além de achar curioso o que era apresentado, eu tinha a certeza de que preparava um presente para o futuro. Já pensou,  quando um historiador encontrar um pacote com uns 300 textos deste tipo? Daria um belo escrito.  Agora, decidi  partilhar o acervo,  publicando, vez em quando, alguns dos textos.
Hoje, Campus traz uma doutoranda (Melissa) e uma aluna especial (Myllena), belos textos. Vamos ler! Discutir e ver o jogo entre a memória, o tempo, a observação.
Um abraço
Luiz Sávio de Almeida.




Cortes e recortes: história e memória
Luiz Sávio de Almeida

O óbvio merece, vez em quando, uma visita.  Decorei isto e não sei quem  é o autor e segue uma pérola obviana: inegavalmente,  todos temos o que dizer sobre a vida.  São as experiências, as visões, as explicações que vão sendo construídas ao longo de anos. E, engraçado, pensam que somente velhos podem falar em memória. Qualquer que tenha vivido, mesmo que amortecido, tem condições de olhar para si mesmo e pinçar do tempo sus recuerdos. Interessante, é que se pode tomar a envergadura da sociedade e reduzi-la em escala,  dando-se posse do andamento da história ao especificá-lo quando se diz: no meu tempo era assim.  É um pouco o que faz a Melissa olhando para o passado, é um pouco o que faz Myllena andando pelas ruas e até mesmo pensando no que seria arquitetura.
Esta expressão no meu tempo era assim é muito rica e sugestiva.  A posse de um tempo pode torná-lo em narrativa,  em enunciados...  Há uma cátedra sobre a qual o sujeito se senta e diz como era a vida,  não esquecendo que ele recorta, escolhe e determina como era. Os caminhos da memória e da recordação são fantásticos,  extraordinários e, na realidade,  imprevisíveis.
Convivo com um grupo de alunos meus: alguns estão se preparando, outros fazem mestrado e outros,  doutorado. Bateu a curiosidade! Tendo liberdade de escolha, sem qualquer preocupação de forma, conteúdo, o que desejariam escrever como observações de vida? O que estariam vendo sobre o passado, o que poderiam ver sobre o agora e como estariam vendo o próprio futuro?  Julguei ser uma bela aventura, poder verificar os caminhos tomados e deixar mais um depoimento para o futuro, pois afinal de contas seriam  pesquisadores que se iriam debruçar sobre Alagoas.
As duas selecionaram retalhos, com Melissa privilegiando relações familiares e uma história de vida, enquanto Myllena encontra novos viventes de Maceió e problematiza em torno de arquitetura, jogando suas preocupações que ainda necessitarão anos de elaboração, desde que ela se encontra no início de tudo, no começo mas demonstrando que deseja discutir, entender, provocar.  São, como dissemos, caminhos e, interessante, cada pessoa tem mais de um, bastando querer multiplicar-se. E  você? Quais são os seus caminhos?  Já desejou multiplicar-se? Quem sabe você tem muito a dizer? Sua vida está passando, o mundo girando e seu sentido de tempo também. Cuidado para não ficar amortecido.


 Atente pro lado macabro do Farol também

Para conseguir me assustar, a entidade tem que ter pele e osso, estar disfarçada no meio da gente comum, sem querer aparecer. Não tenho medo de fantasma, nem de assombração que se esconde no escuro. No claro, na luz do sol, alma que não tem medo de luz, isso sim, deixa o coração palpitando quando passo. Nos arredores do Parque Gonçalves Lêdo, com mais terreno pra explorar, passei a observar que a confluência do novo e do velho num dos bairros mais antigos da cidade cria personagens assustadores. Este é um alerta dessas almas penadas.
Na Rua Santa Cruz, pouco depois da sorveteria, se caminha pela calçada estreita, passa-se por uma porta e leva-se um pequeno susto que acelera um pouco o coração: um cara que aparenta ter entre vinte e cinco e vinte e sete anos, que fica em pé no limite da porta de sua casa. Você passa a centímetros dele, em silêncio. Ele está amaldiçoado, condenado a ficar toda noite na porta, olhando as pessoas passarem na rua, sem poder pedir socorro. Ele espera, toda noite, que alguém lhe pergunte o porquê de estar ali, e então quem pergunta troca de lugar com ele, que estará, finalmente, livre – meu irmão e eu concordamos que faz completo sentido.
A caminho da Padaria Brasília, fonte do pão da família Azevedo, na esquina, uma casa amarela, antiga, de estilo que eu não consegui identificar nem mesmo depois de terminada a faculdade de arquitetura e nela, um mistério. O muro baixo deixa ver o jardim frontal, janelas de todos os tamanhos, uma varanda na porta e dois pavimentos. As pessoas dentro nunca são as mesmas, nunca se vê alguém entrando ou saindo da casa: eles – que nunca são os mesmos - são vistos das janelas, quando passamos, ou estão com o olhar perdido, sentados à porta quando estamos indo, mas nunca voltamos. Estão todos pra sempre presos na casa vazia há anos, sem nunca poder ultrapassar o limite de seus muros baixos.
Na conveniência do posto de gasolina, no primeiro sinal da Av. Tomás Espíndola, uma atendente que aparenta atender ao seu pedido e te deixa esperando por alguns minutos até que se perceba estar sendo ignorado pelo seu olhar perdido. Alguns segundos se passam nesse desconforto do descompasso das normas sociais. Mas na última vez que fomos, ela não estava lá. Ela na verdade nunca esteve lá.
No caminho do supermercado mais próximo na Tomás Espíndola ainda, uma casinha protomoderna, branca, aparentemente conservada, uma das últimas, espremida entre uma concessionária e uma clínica. A casinha não tem muro, mas o recuo impede, por uma questão moral, de olhar mais de perto o que acontece lá dentro. Só se vê, contra o fundo escuro de uma casa antiga, pela porta, uma senhora muito idosa sentada numa cadeira de balanço numa postura curvada, em frente à televisão ligada. Nunca há ninguém com ela, nem qualquer outro movimento. Será que ela vai estar lá quando eu passar de novo, ou vão finalmente descobrir que ela já morreu faz tempo?
Arquitetura?

A arquitetura é produto. Os estudiosos da sociedade moderna ou pós-moderna ou contemporânea ou pós-contemporânea quem sabe concordem comigo. Mas arquitetura não é esse caldo de cana que se faz em algumas semanas de trabalho quase escravo de muitos estagiários, ela é produto da vida.
Imaginemos o arquiteto não como aquele artigo de luxo (hoje já é) que assume papel de vidente e tenta adivinhar como as pessoas viveriam melhor numa conversa que dura algumas horas, mas como um facilitador da transposição da vida em arquitetura, um conselheiro. Todos aprenderiam a organizar a própria vida, a otimizar o próprio espaço.
Arquitetos levam anos para organizar o próprio espaço. Construir a própria casa parece uma tarefa herculesca diante de tamanha complexidade das pessoas que habitam no espaço. Cada cômodo, uma série de opções e dúvidas. E como o arquiteto, que nem conhece a si mesmo, e que tem dificuldades em transformar esse auto-conhecimento em espaço habitável, pretende organizar a vida de outrem, em alguns meses, e atender às necessidades dele sem ser superficial? Não dá. Esta organização é nada mais que pontual no tempo, e precisaria ser revisada periodicamente - coisa que o arquiteto, quem sabe, também poderia fazer.
Clientes pagam por um projeto que, no momento que está pronto, já está desatualizado. Daí, para a vida que muda sempre, se faz necessária uma atualização, um novo projeto. A falha dele está aí: ele é um projeto – com começo, meio e fim, mas o fim dele não coincide com o fim da vida. A vida continua, e o projeto não a acompanha. 

O papel do arquiteto – num mundo ideal - se assemelharia mais ao papel do conselheiro, do psicólogo, que trata dos problemas que surgem à medida em que eles aparecem, num trabalho constante que exige sempre soluções novas. Nisso, diluiriam-se as “tendências”, a comercialização de coisas que carregam o símbolo da modernidade, os estilos arquitetônicos, as padronizações e as imitações de todo tipo. Isso porque todos são diferentes, e sempre serão diferentes, mesmo num movimento de modernização coletiva. Na arquitetura que acompanha de perto a vida, novas soluções são criadas a partir de quem se é.
Mas aí o mercado pergunta sempre: “mas isso é prático? Se adapta às ferramentas disponíveis? Posso vender?” E toda a proposta se modifica para atender à um modelo de produção de coisas sempre novas – com arquitetos que gastam horas desenhando pranchas mais pranchas de detalhamento que os pedreiros não entendem, para executar um projeto que já está desatualizado, na residência de um cliente que não sabe que aquilo não é, nem de longe, o ideal. Mas o projeto foi terminado no prazo, os armários são novos e saíram diretamente da última edição da Casa Cláudia. Tá tudo bem.

 

 

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