Fátima
Maria Lyra Cavalcante é advogada especialista em direito público, lecionou as
disciplinas de direito administrativo e direito constitucional na Faculdade
Raimundo Marinho em Penedo e atualmente é mestranda em direito público pela
Universidade Federal de Alagoas.
URBANISM, VIOLENCE
A Violência e a Vila dos Pescadores de Jaraguá
Nos últimos meses, veicularam-se
notícias de que os pescadores de Jaraguá serão removidos para um conjunto no
bairro do Trapiche em razão de um projeto da Prefeitura para construir no
bairro histórico uma infraestrutura de apoio à pesca e ao turismo.
Mas nem todos moradores aceitaram
a mudança. Graças à resistência de algumas famílias, a Prefeitura ajuizou um
processo na Justiça Federal (nº 0004070-23.2012.4.05.8000) visando à remoção
dessas pessoas, apesar de ter se comprometido perante o Ministério Público
Federal em respeitar a vontade daqueles que decidiram permanecer, um mês antes
(inquérito civil 1.11.000.000278/2008-11).
O discurso da violência e da
falta de dignidade é comumente usado para justificar a remoção: “eles vivem em
local insalubre, em meio a esgoto e lixo, sem moradia e condições de trabalho
dignas”, “o local é reduto de traficantes de drogas, com altos índices de
criminalidade”. Sob essa ótica, a intenção da Prefeitura merece aplausos.
Quer-se garantir moradias dignas, boas condições de trabalho e segurança às
famílias. Aqueles que teimam em permanecer na vila teriam interesse na
perpetuação da criminalidade, não sendo justo que toda a sociedade, em especial
aqueles que já estão no Trapiche, se prejudique pelo capricho de poucas
pessoas.
Mas seria esse o motivo das
famílias resistir à mudança?
Bem, estamos diante de uma
comunidade secular, cujo surgimento se confunde com a própria origem da cidade
e cuja área de localização foi se reduzindo em virtude da urbanização. Ainda
recebeu várias famílias sem relação com a pesca, encaminhadas pela prefeitura
na década de 90. São justamente essas famílias que aceitaram a mudança para o
Trapiche assim como aqueles que, apesar da pesca ser seu meio de vida, temeram
em ser transferidos para a parte alta da cidade ou ficar sem casa.
Na sua essência são uma
comunidade tradicional, com modo de vida e saberes próprios e que necessita
morar no mesmo espaço de seu local de trabalho. É o modo de construir
artesanalmente os barcos, é a maneira peculiar da pesca e a mariscagem, é a
forma como esse conhecimento é repassado entre as gerações que caracterizam a
sua tradição, dentre outros aspectos.
Apartar a moradia dessas pessoas
de seu local de trabalho rompe a tradição da comunidade como um todo,
inviabiliza o seu modo de sobrevivência e massacra uma parte da história de
Maceió. Basta conversar com um pescador para perceber a importância de morar
próximo onde o barco está atracado – ele precisa verificar se os ventos e a
maré permitem a viagem. Por vezes, essas viagens ocorrem à noite e não há transportes
coletivos nesse horário entre o bairro do Trapiche e de Jaraguá, restando a
alternativa de se deslocarem de bicicleta ou a pé, num percurso perigoso de
cerca de 3,5km. Ou então, pode-se conversar com uma marisqueira para ouvir que
ela pode ganhar de R$ 5,00 a R$ 35,00 por dia com seu trabalho, mas com a
passagem de ônibus de ida e volta custando quase R$ 5,00 não compensa se
deslocar. Além disso, morando no mesmo local de seu trabalho, ela pode cuidar
de seus filhos, mas quem os olhará no Trapiche enquanto ela trabalha em
Jaraguá? E se as crianças não presenciarem o dia-a-dia de seus pais, como a
tradição será preservada se é no cotidiano que ela se transmite? São algumas
justificativas das famílias que “teimam” em permanecer na vila.
Se de um lado tem-se um projeto para melhorar
a qualidade de vida dessas pessoas e de outro há a necessidade delas
permanecerem em Jaraguá, porque não revitalizar a área mantendo no local
moradias dignas, pelo menos, para as famílias “resistentes” (cerca de 35
famílias)? A resposta é bem evasiva : Porque o Plano Diretor prevê a área como
uma zona de interesse ambiental e paisagístico (ZIAP) e por isso não
comportaria moradias (mas permite a infraestrutura pesqueira...).
Entretanto, o fato de ser ZIAP
não impede a presença de moradias na área, pois o Plano Diretor assegura o
“apoio à população residente para
desenvolvimento de atividades relacionadas à pesca artesanal” (art. 34, III).
Estabelece ainda que Jaraguá é zona especial de preservação cultural, tendo
como uma de suas diretrizes o “incentivo ao uso residencial” (art. 53, II).
O mesmo Plano Diretor nos dá
sinais de intenções políticas sobre o bairro, quando prevê a construção de uma
marina na enseada de Jaraguá (art. 53, p. único, V). Que garantia se tem que
essa marina não será incorporada ao projeto de revitalização, já que foi
prevista no Plano Diretor? A marina requer uma local “selecionado” (perto do
porto e da área turística) e para pessoas “selecionadas”, não fazendo sentido a
permanência de uma comunidade pesqueira em seu entorno.
E então voltamos ao discurso da
violência e da dignidade. É mais fácil justificar a transferência daquelas
famílias para lhes garantir dignidade do que vislumbrar nas entrelinhas desse
discurso uma dupla violência: a omissão do poder público, que nunca dotou a
área de infraestrutura e serviços e, agora, utiliza-se da própria torpeza para
justificar a sua remoção; e a própria remoção, que destruirá um modo de vida
tradicional e, com ela, parte da história de Maceió. É o discurso utilizado
para mascarar a segregação sócio-espacial em nossa cidade.
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