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sexta-feira, 26 de junho de 2015

CAVALCANTE, Fátima Maria Lyra. Violência e a Vila dos Pescadores de Jaraguá

Este artigo foi publicado em Campus/O Dia, nº 121






Fátima Maria Lyra Cavalcante é advogada especialista em direito público, lecionou as disciplinas de direito administrativo e direito constitucional na Faculdade Raimundo Marinho em Penedo e atualmente é mestranda em direito público pela Universidade Federal de Alagoas.


URBANISM, VIOLENCE


A Violência e a Vila dos Pescadores de Jaraguá

Nos últimos meses, veicularam-se notícias de que os pescadores de Jaraguá serão removidos para um conjunto no bairro do Trapiche em razão de um projeto da Prefeitura para construir no bairro histórico uma infraestrutura de apoio à pesca e ao turismo.

Mas nem todos moradores aceitaram a mudança. Graças à resistência de algumas famílias, a Prefeitura ajuizou um processo na Justiça Federal (nº 0004070-23.2012.4.05.8000) visando à remoção dessas pessoas, apesar de ter se comprometido perante o Ministério Público Federal em respeitar a vontade daqueles que decidiram permanecer, um mês antes (inquérito civil 1.11.000.000278/2008-11). 

O discurso da violência e da falta de dignidade é comumente usado para justificar a remoção: “eles vivem em local insalubre, em meio a esgoto e lixo, sem moradia e condições de trabalho dignas”, “o local é reduto de traficantes de drogas, com altos índices de criminalidade”. Sob essa ótica, a intenção da Prefeitura merece aplausos. Quer-se garantir moradias dignas, boas condições de trabalho e segurança às famílias. Aqueles que teimam em permanecer na vila teriam interesse na perpetuação da criminalidade, não sendo justo que toda a sociedade, em especial aqueles que já estão no Trapiche, se prejudique pelo capricho de poucas pessoas.
Mas seria esse o motivo das famílias resistir à mudança? 

Bem, estamos diante de uma comunidade secular, cujo surgimento se confunde com a própria origem da cidade e cuja área de localização foi se reduzindo em virtude da urbanização. Ainda recebeu várias famílias sem relação com a pesca, encaminhadas pela prefeitura na década de 90. São justamente essas famílias que aceitaram a mudança para o Trapiche assim como aqueles que, apesar da pesca ser seu meio de vida, temeram em ser transferidos para a parte alta da cidade ou ficar sem casa.

Na sua essência são uma comunidade tradicional, com modo de vida e saberes próprios e que necessita morar no mesmo espaço de seu local de trabalho. É o modo de construir artesanalmente os barcos, é a maneira peculiar da pesca e a mariscagem, é a forma como esse conhecimento é repassado entre as gerações que caracterizam a sua tradição, dentre outros aspectos.

Apartar a moradia dessas pessoas de seu local de trabalho rompe a tradição da comunidade como um todo, inviabiliza o seu modo de sobrevivência e massacra uma parte da história de Maceió. Basta conversar com um pescador para perceber a importância de morar próximo onde o barco está atracado – ele precisa verificar se os ventos e a maré permitem a viagem. Por vezes, essas viagens ocorrem à noite e não há transportes coletivos nesse horário entre o bairro do Trapiche e de Jaraguá, restando a alternativa de se deslocarem de bicicleta ou a pé, num percurso perigoso de cerca de 3,5km. Ou então, pode-se conversar com uma marisqueira para ouvir que ela pode ganhar de R$ 5,00 a R$ 35,00 por dia com seu trabalho, mas com a passagem de ônibus de ida e volta custando quase R$ 5,00 não compensa se deslocar. Além disso, morando no mesmo local de seu trabalho, ela pode cuidar de seus filhos, mas quem os olhará no Trapiche enquanto ela trabalha em Jaraguá? E se as crianças não presenciarem o dia-a-dia de seus pais, como a tradição será preservada se é no cotidiano que ela se transmite? São algumas justificativas das famílias que “teimam” em permanecer na vila.

 Se de um lado tem-se um projeto para melhorar a qualidade de vida dessas pessoas e de outro há a necessidade delas permanecerem em Jaraguá, porque não revitalizar a área mantendo no local moradias dignas, pelo menos, para as famílias “resistentes” (cerca de 35 famílias)? A resposta é bem evasiva : Porque o Plano Diretor prevê a área como uma zona de interesse ambiental e paisagístico (ZIAP) e por isso não comportaria moradias (mas permite a infraestrutura pesqueira...).

Entretanto, o fato de ser ZIAP não impede a presença de moradias na área, pois o Plano Diretor assegura o “apoio à população residente para desenvolvimento de atividades relacionadas à pesca artesanal” (art. 34, III). Estabelece ainda que Jaraguá é zona especial de preservação cultural, tendo como uma de suas diretrizes o “incentivo ao uso residencial” (art. 53, II).

O mesmo Plano Diretor nos dá sinais de intenções políticas sobre o bairro, quando prevê a construção de uma marina na enseada de Jaraguá (art. 53, p. único, V). Que garantia se tem que essa marina não será incorporada ao projeto de revitalização, já que foi prevista no Plano Diretor? A marina requer uma local “selecionado” (perto do porto e da área turística) e para pessoas “selecionadas”, não fazendo sentido a permanência de uma comunidade pesqueira em seu entorno.

E então voltamos ao discurso da violência e da dignidade. É mais fácil justificar a transferência daquelas famílias para lhes garantir dignidade do que vislumbrar nas entrelinhas desse discurso uma dupla violência: a omissão do poder público, que nunca dotou a área de infraestrutura e serviços e, agora, utiliza-se da própria torpeza para justificar a sua remoção; e a própria remoção, que destruirá um modo de vida tradicional e, com ela, parte da história de Maceió. É o discurso utilizado para mascarar a segregação sócio-espacial em nossa cidade.

 


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