Parmênides Justino Pereira. Natural de
Recife-PE, vivente das Alagoas dedes 1978. Graduado em Psicologia e
Mestre em Sociologia pela UFAL. Doutor em Educação pela UNICAMP. Professor da
UFAL/Palmeira dos Índios, leciona as cadeiras de Introdução à Sociologia,
Pesquisa em Ciências Sociais, e Psicologia Política. Coordenador do Grupo de
Pesquisa (CNPq) Psicologia Política, Movimentos Sociais e Políticas Públicas.
Defendeu pesquisa sobre remoção forçada de populações vulneráveis, onde
acompanhou o caso da Vila de Jaraguá desde 2005, e atualmente estuda diversas
comunidades em Arapiraca, como os pescadores do Lago da Perucaba, os removidos
da comunidade Caboge (atual Bosque), e conjunto Frei Damião (ameaçado de
remoção). Também desenvolve pesquisa sobre a visibilidade da Jurema Sagrada em
Alagoas, com ênfase na autoafirmação indenitária da religiosidade afroindígena,
momentaneamente concentrada nos desdobramentos da Jurema no agreste alagoano.
Quando, em meados de 2015, a
sociedade alagoana se deparou com os desdobramentos finais relativos à expulsão
dos moradores da Vila de Pescadores do Jaraguá pela Prefeitura de Maceió, a
partir da prolatação da sentença de despejo, a maioria dos seus habitantes não
entendia o que levava moradores de uma favela suja e degradada a recusar a benevolência
da gestão municipal, que oferecia apartamentos na praia do Sobral e um parque
público, chamado centro pesqueiro. Outros maceioenses, que conheciam
superficialmente a história, estranhavam a reação da sociedade civil organizada
(Movimento Abrace a Vila), e criticavam profissionais e estudantes que perdiam
seu tempo defendendo uma favela. O que as pessoas - mal informadas pela
imprensa local[1] - não sabiam, era que se tratava de um fenômeno que Paulo
Freire conceituou como “falsa generosidade”, mediante um processo de
expropriação urbana que vinha se desenrolando muito antes da proposta de
substituir a Vila por um centro pesqueiro. Vinha, na verdade, desde meados dos
anos 90, através de atos administrativos questionáveis, contraditórios e
omissos em relação à melhoria da qualidade de vida da população, além de um
conjunto de agressões e violência simbólica pautada pela desqualificação social
da comunidade e o desejo quase compulsivo de expulsar os pescadores e
marisqueiras de seu território tradicional.
Durante o processo de remoção,
houve uma polêmica, desnecessária, sobre a real historicidade da vila. A
Prefeitura de Maceió não concordava com a tese de que a história da cidade teria surgido de uma vila de pescadores, sustentando
sua tese em um mapa de 1973, em que esta não aparecia. Achar que um mapa seria
capaz de dar conta dos aspectos
dinâmicos da geografia foi mais uma estratégia política de
desqualificação da comunidade do que propriamente um interesse lógico pelo
conhecimento real da história da cidade. A importância de Maceió no cenário
regional decorre bastante do ancoradouro, e todo o litoral era cheio de
pescadores, desde a época colonial. As evidências culturais da importância dos
pescadores na formação social de Maceió são antigas. [...] Todavia, é em
Craveiro Costa (1981) que se encontra uma referência mais próxima, fazendo
alusão ao povoamento a partir do riacho Salgadinho e estabelecendo relações com
o início do bairro.
[...] A geografia presenteara o
local com a capacidade de servir como barreira de proteção das embarcações
contra as correntes marinhas. É esta característica que faz do lugar a passagem
e estada de variados visitantes. E é quando o Porto de Jaraguá supera o Porto
do Francês, que se desenvolve o comércio no povoado, atraindo cada vez mais
pessoas.
Outra questão que alimentou os
debates entre comunidade e Prefeitura foi a tese de que pescador não precisa
viver em frente ao mar, porque em outros pontos da cidade existem
pescadores que não moram na praia, a exemplo dos bairros de
Pajuçara, Jatiúca e Ponta Verde. Esse argumento esbarra não apenas na
impossibilidade de compreender uma comunidade tradicional importando o contexto
de outras realidades históricas, como também na omissão de fatos históricos que
explicam como tais pescadores foram afastados da praia, por meio de
reestruturações urbanas higienistas e avanços do mercado imobiliário voltado
para o consumo da elite. É neste sentido que se explica, por exemplo, o
surgimento dos bairros de Pajuçara e Ponta Verde, atual área nobre da cidade,
mas que já foi reduto de muitos dos pescadores, e que, como relata Sarmento
(2002), recebeu grande parte de seu povoamento de pescadores que foram expulsos
de seu lugar de origem para dar lugar às moradias das classes privilegiadas.
A Vila de Jaraguá, neste sentido,
é apenas mais um exemplo de continuidade dessa higienização da orla maceioense.
Desde a sua localização até sua expulsão, tudo é um reflexo deste movimento geopolítico de empurra daqui, tira dali, de
submissão das populações pobres aos ditames do poder público e sua política de
remoção, e inclusive de certos processos de grilagem relatados pelos moradores antigos, quando a
área era abandonada e utilizada por criadores de gado [...] Eles descrevem como
as cercas foram se fincando e redefinindo o esquema de propriedade do local.
[...] A despeito de ter aglomerado no seu interior pescadores oriundos de
diversos estados, como Bahia, Pernambuco, Rio Grande do Norte, e de toda a
costa do Estado de Alagoas, de Maragogi a Piaçabuçu, muitas famílias pesqueiras
eram oriundas das ondas migratórias dentro da própria cidade ao longo de anos.
Assim, vinham de bairros como Ponta da Terra, Levada, Trapiche, dentre outros.
Há relatos de que a antiga balança teria sido onde hoje se encontra as Lojas
Americanas, embora se observe que a aglomeração mais recente - remontando aos
anos oitenta - inicia-se onde hoje se encontra o Memorial da República, em
frente ao coreto, de onde se podia atravessar, no tempo dos banhos dominicais
na praia da Avenida em direção à Pajuçara.
Essa configuração da comunidade
de pescadores começa a sofrer investidas da Prefeitura, por meio de várias
remoções, na gestão do então prefeito Fernando Collor (1979–1982), que retira grande
quantidade de moradores e os realoca na zona de expansão da cidade, próximo ao
posto da Polícia Federal, cruzamento da
BR 104 com 316, aglomeração que ficou conhecida como favela do DER. Outra
grande remoção é feita pelo prefeito Ronaldo Lessa, para a construção do memorial
acima citado e do estacionamento de Jaraguá, espaço urbano só utilizado em
períodos de festas.
Após
estas remoções forçadas, a comunidade do Jaraguá se caracterizava como assentamento urbano subnormal, onde se acomodavam, em
condições subumanas, cerca de 700 famílias, das quais de trezentas a
quatrocentas eram de pescadores. A pesca era atividade mais antiga do bairro. A
vila proliferou na medida em que as pessoas foram tendo filhos, os filhos foram
crescendo, casando, tendo filhos, os filhos cresceram, casaram, os netos foram
aparecendo, a família crescendo, e os
pais tiveram que construir novos barcos e novas casas para alojar os filhos
crescidos e casados que se multiplicavam.
Em 2001, época da remoção das 350 famílias para o
Conjunto Carminha pela então prefeita Kátia Born, a comunidade de Jaraguá era uma comunidade heterogênea. Lá habitavam diferentes grupos populacionais,
que ao longo do tempo foram ali se fixando, através dos processos de migração
natural da atividade pesqueira e do processo social que impulsiona o crescimento urbano. A favelização começara a
partir dos anos oitenta, quando além dos atrativos naturais do lugar e sua localização
privilegiada no tecido urbano, alguns eventos de natureza política contribuíram
para o crescimento desordenado e densidade populacional. O mais crítico deles
foi a remoção de famílias sem-teto que viviam dispersas pela cidade, associado
a famílias de desabrigados das chuvas torrenciais. Todos eles foram colocados
na comunidade do Jaraguá pela então
secretária Lucíola Toledo, amontoados no armazém da antiga Cibrazen. Essas
famílias viviam de outros empregos e subempregos
na região, como catadores de lixo, empregadas domésticas, guardadores de carro,
ambulantes, atividades portuárias, atividades auxiliares da pesca, dentre
outras.
No
entanto, o armazém estourou, pois os barracos foram aparecendo em seu entorno, crescendo
exponencialmente e adentrando a Vila de Pescadores. A comunidade passa então a
conviver com uma
heterogeneidade cultural oriunda dessa migração forçada. Após a fixação dessas famílias, outros
barracos com famílias estranhas à cultura da pesca foram se aglomerando próximo
ao galpão da antiga fábrica.
A
comunidade possuía arquitetura marcada por espaços de múltiplas funções, que ao
mesmo tempo serviam de oficina de
trabalho (tratamento do peixe), lazer, varal para estender roupas, e ponto de
encontro (bate-papo com as amigas e presença das crianças). O terraço poderia
ser a própria rua, e a frente da casa
geralmente tinha várias utilidades e muitos jovens reunidos. Ali trabalhavam,
se divertiam, conversavam, perambulavam, havia toda uma sociabilidade que engendrava diversas atividades, muito embora
a principal delas fosse a pesca.
Essa, no
entanto, era uma realidade desconhecida da maioria dos maceioenses, pois o bairro estava quase abandonado, e só voltou a ser o foco das
atenções quando a prefeitura o incluiu no projeto de revitalização de centros
históricos. Tal iniciativa começou a surgir nas principais capitais
brasileiras, no sentido de resgate das atividades locais, mas também atividades
artísticas, como foram os casos de empreendimentos na mesma ordem em centros
históricos como Recife, João Pessoa,
Salvador, Porto Seguro, e São Luiz.
Então, nos arredores do cais do
porto de Maceió, a cidade efervesceu como espaço de construção de bens materiais e vida comunitária. Mas até
meados dos anos 1990, o que restava do bairro era velhos armazéns de exportação
abandonados, ferrovias desativadas, praças depredadas e descaracterizadas, a
vila dos pescadores favelizada, e apenas lembranças de um lugar que deu vida à
cidade.
Como alternativa ao turismo de
sol e mar, que cai na baixa temporada, a Prefeitura Municipal se empenhou no planejamento
e execução do projeto de revitalização, como tentativa de diversificação da
oferta turística, através do turismo cultural centrado no lazer, entretenimento
e conservação do patrimônio histórico. Este projeto é lançado em 11/08/1995, no
coreto da Avenida da Paz, pelo então prefeito Ronaldo Lessa, que será sucedido
pela prefeita Kátia Born, esta última dando total impulso à continuidade do
projeto no percurso de dois mandatos.
Antes disso, o jornal Gazeta de
Alagoas de 08/06/1997 lançara um caderno especial em conjunto com a Prefeitura,
no qual se anunciava o empreendimento como o mais importante investimento público da época, que
transformaria o bairro em um belo atrativo para a cultura, o lazer, o turismo,
o comércio de serviços. Nessa publicação, a prefeitura destaca que o projeto
acarretará uma grande demanda turística, atraindo o visitante de “renda mais
elevada” e promovendo o aumento de sua permanência na cidade. Coincidentemente,
trata-se de uma época de grande crise econômica no Estado e no setor
sucroalcooleiro, e os usineiros são proprietários de grande parte dos armazéns
e casarões de Jaraguá, além de investidores locais no setor turístico.
Consequentemente, são os
principais beneficiados com a revitalização. Um dos primeiros passos do projeto
foi a elaboração de leis que dividiram a cidade em Zonas Especiais de
Preservação (ZEP), mais especificamente a Lei Municipal 4.545 de 22/11/1996.
Com ela, Jaraguá ficou definida como ZEP-1. O Decreto Municipal 5.569, por sua
vez, estabeleceu normas que garantiram a caracterização do bairro dentro dos
padrões esperados, como a manutenção da tipologia construtiva e a volta do
alinhamento das fachadas. Esse mesmo Decreto estabelece a Vila de Pescadores
como Zona Especial de Preservação [...]
A linguagem do decreto não deixa
dúvidas quanto à importância da Vila tanto do ponto vista turístico, quanto do ponto de vista
ambiental. Para gerenciar o projeto, é criada a Unidade Executora Municipal/PRODETUR (UEM), através
da Lei Municipal 4.487 de 27/03/1996. No relatório de atividades de março a
dezembro/96, a UEM destaca o que chamou de “problema ambiental”, na antiga Vila
dos Pescadores, localizada às margens do Jaraguá e caracterizada como favela.
Os objetivos básicos do
PRODETUR/NE[10] eram: a criação de áreas turísticas, promovendo o incremento
desta atividade no município; resgatar o patrimônio histórico/arquitetônico
local, através de sua correta recuperação e revitalização; melhorar as
condições de vida da população, através da provisão de serviços de saneamento;
preservar os ecossistemas terrestres e marinhos do bairro; e melhorar as
condições de acessibilidade à área de intervenção. Para tanto, a Prefeitura
promoveu um amplo investimento de infraestrutura básica e serviços públicos
(abastecimento d’água, esgoto sanitário, tratamento e controle de resíduos
sólidos, vias de acesso) que potencializaram as atividades turísticas, com
recursos da ordem de US$ 80 milhões, sendo metade financiada pelo BID, por meio
do BNB. A outra metade seria a contrapartida dos poderes público federal,
estadual ou municipal. Com novos investimentos e aumento da permanência dos
turistas, a consequência esperada seria o aumento na geração de emprego e
renda. Com isso, os poderes locais integravam a cidade na reprodução do capital
através da atividade turística, como afirmou Vasconcelos [...]
O projeto de revitalização foi
fragmentado em subprojetos, quais sejam: a revitalização de obras físico-arquitetônicas, que incluíam a
restauração do prédio da Associação Comercial de Maceió e o Museu da Imagem e do Som; a despoluição do
tradicionalmente poluído Riacho Salgadinho.
Acrescenta-se também a reestruturação do sistema viário da área interna
do bairro, como o alargamento de pontes na Avenida da Paz, drenagem e
pavimentação para evitar as tradicionais inundações na Avenida Cícero Toledo,
parte da Rua Comendador Leão, Avenida Maceió, e as ruas Graciliano Ramos e Mato
Grosso, além das margens do riacho Salgadinho. A Rua Sá e Albuquerque, via
arterial do bairro, teve o asfalto negro quebrado até aparecerem as antigas
pedras (os trilhos do antigo bonde que circulava não estavam no local). Postes
de cimento foram retirados e substituídos; as fiações da luz elétrica e da
telefonia ficaram subterrâneas. Houve a construção de um grande estacionamento
na Avenida Cícero Toledo e a construção do Centro de Convenções, além da
promessa da construção de uma marina e incentivo ao esporte e comércio náutico.
O nono subprojeto desta mega intervenção seria a urbanização da Vila de
Pescadores, conhecida como favela de Jaraguá.
O direcionamento do programa de
desenvolvimento do turismo acabaria por não atingir as metas a que se propôs,
mas não sem deixar as sequelas tradicionais do caráter excludente deste tipo de intervenção gentrificadora, que, onde
ocorre, ocasiona conflitos e exclusão das comunidades locais. [...] A
revitalização do bairro de Jaraguá se deu no contexto da globalização do
turismo, caracterizado por capitais transnacionais, projetos de grande porte e
exclusão social da comunidade local. Assim, um dos principais problemas da
revitalização do bairro de Jaraguá como potencialidade turística pode estar
associado a um dado importante citado por Vasconcelos (2004) que é a capacidade
de reordenamento do território para sua realização. Este autor explica que este
reordenamento apresentou uma falha crucial, qual seja o esquecimento da
potencialização de uma melhoria de vida para a comunidade local, fato observado
não apenas pela remoção de 350 famílias da comunidade de Jaraguá em 2002, mas
também no descaso frente às condições suburbanas da Vila dos Pescadores, até
sua total remoção.
A condição de pobreza conviveu
simultaneamente com a área revitalizada, em um flagrante contraste social,
apesar de a Vila dos Pescadores ter sido considerada como Setor de
Preservação Ambiental (SPA) pelo Decreto
Municipal no 5.569, de 22 de novembro de 1996. Com que ética se pode falar em
leis, no âmbito do posterior processo jurídico da remoção, se o próprio
abandono da Vila, em condições
degradantes, foi uma clara violação da própria lei municipal criada para fins
da referida revitalização?
Na verdade, o próprio projeto de
revitalização já focalizava em seu conteúdo as ações que deveriam ser
executadas como parte do processo de turistificação do lugar. No projeto
apresentado para aquisição das verbas do PRODETUR, estava incluída a
urbanização da vila (no mesmo espaço onde as famílias viviam), que era o nono
subprojeto, através da implantação do sistema de saneamento básico, coleta
seletiva do lixo, energia elétrica, abastecimento d’água, pavimentação,
drenagem, construção de residências térreas de sobrados, orçadas em R$
7.919.000,00. O projeto arquitetônico
elaborado para isso em 1996/1997 incluía também a construção de um mercado
modelo, estacionamentos, centro de convivência, cais, seca de pescado, escola
de pesca, estaleiro, cooperativa de pesca, correios/telefone, praça, primeiros
socorros, pontos comerciais, área de lazer e esporte, casa cercada por área
verde, como coqueiros e árvores frutíferas, afirmando o princípio de
autossustentação da comunidade.
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