Vila de Pescadores de Jaraguá: tradicionalidade e
resistência urbana (II)
Parmênides Justino Pereira
Além disso, incluía ensino de
outras línguas para a comunidade se relacionar com turistas, o que empolgou os
técnicos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, segundo o arquiteto
responsável, Ovídio Pascual. A possibilidade de inclusão da Vila nesse projeto
de revitalização é destacada pelo arquiteto nessa matéria do jornal Alagoas em
Tempo de 23/10/2005: “A vila dos
Pescadores surgiu na primeira metade do século passado e envolve um sedimentado
ambiente social que pode ser utilizado como atrativo para o emergente pólo
turístico de Jaraguá. [...] isso mostraria a possibilidade de sociabilização,
da integralização e do desenvolvimento de uma área pobre (favela),
transformando-o em um prospero bairro. [...] A presença da Vila de Pescadores,
em Jaraguá, pode e deve ser explorada como um atrativo turístico de grande
potencial, ao invés de ser vista como um empecilho para o crescimento do local
como polo turístico.”.
Esta informação é de extrema
importância, pois com as mudanças de perspectiva da Prefeitura, argumentar-se-á
que a remoção da vila é condição para adequar a área às finalidades turísticas,
como se a presença dos pescadores em suas moradias também não servisse de
instrumento urbano para tal finalidade, o que vai de encontro a conceitos
contemporâneos no âmbito do próprio turismo, como ressalta Vasconcelos (2007).
Esta mesma concepção, defendida
pela equipe de urbanistas da prefeitura de Maceió, ao colocar a urbanização da
Vila como nono subprojeto da revitalização de Jaraguá (servindo igualmente de
justificativa para a liberação da verba do PRODETUR), foi corroborada por uma das
principais urbanistas maceioenses, professora da UFAL. Esta urbanista nos
revelou que, curiosamente, foi procurada por uma empresa ligada à prefeitura
para formular um parecer sobre o projeto de urbanização da vila. Ela o fez,
mas, posteriormente, o mesmo empresário a procurou para formular um parecer
contrário, desfazendo tudo que tinha sido dito no parecer solicitado. Segundo a
professora, que ficou indignada com tal proposta e a recusou, aquele havia sido
o único parecer que concedeu gratuitamente, dada a importância social e cultural
que visualizou no projeto.
[...]
É estranho que o maior
investimento de recursos da época tenha gerado uma intervenção de tamanha
envergadura, cujo único item não realizado do projeto foi a urbanização da
comunidade pobre do lugar; tratava-se de um momento em que a prefeitura estava
bem com as contas, a ponto de ter dado a contrapartida do PRODETUR, obrigação
que em tese seria do Estado. Afinal, 373 moradias é um número pequeno para o
cômpito de quatro anos de governo, principalmente para um governo politicamente
próximo do PSDB (partido que ocupava à época o governo federal e estadual),
haja vista ter conseguido habitações para 350 remoções; além do fato mais
óbvio: não havia nenhum impedimento de se realizar todo o restante do projeto
de urbanização, que tinha verba, posse da área, projeto arquitetônico, etc.
Entre tantas ambiguidades e contradições, fato é que a Vila dos Pescadores
apenas serviu de barganha para verbas federais e internacionais, mas nunca saiu
da condição degradante a que foi submetida. A prefeitura apenas mudou de ideia,
ou de fato nunca teve interesse em incluir a vila de pescadores no cenário da
revitalização? O que fica claro é as essas contradições de postura da
prefeitura em relação à comunidade, ora valorizando-a, ora desqualificando-a, o
que justifica a suspeita sobre o real enfoque da revitalização de Jaraguá: um
redesenho da cidade, em que os pobres não estão incluídos no seu traçado, tal
como ocorre nos processos de gentrificação.
No dia 31 de agosto de 2005, o
prefeito Cícero Almeida, que sucedeu Kátia Born, foi ao jornal Tribuna de
Alagoas declarar o fim da “favela Jaraguá”, afirmando que os moradores seriam
removidos para a praia do Sobral. A notícia pegou a cidade de surpresa, porque
a comunidade não sabia e não contava com os planos da Prefeitura de removê-la.
Em matéria posterior, o chefe da edilidade afirmaria que não queira prejudicar
ninguém, apenas “limpar a cidade”.
Tudo acontecia à revelia da
comunidade. Ou os pescadores sabiam do seu próprio destino pelos jornais, ou
eram surpreendidos com as visitas desastrosas do Secretário de Habitação, que
geralmente terminavam em confusão. No dia 03/11/2005, aconteceu a audiência com
o Ministério Público Estadual, quando os moradores reafirmaram seu desejo e
necessidade de ficar na Vila. Por solicitação da Procuradora do Ministério
Público Estadual, foi convocado um encontro, marcado para o dia 20/11/2005,
entre a comunidade, gestores da Prefeitura e professores da Universidade
Federal de Alagoas.
Antônio Azevedo, então representante
do secretário municipal de Planejamento, disse que os estudos que levavam à
permanência dos pescadores no local foram caindo aos poucos, na medida em que
não houve sustentação técnica para a mesma. Contudo, no final da reunião, por
meio dos questionamentos da procuradora, descobriu-se que, de fato, a
Prefeitura não possuía tais estudos, que se tratava de uma fala sem sustentação
prática. Diante desta contradição, Azevedo afirmou que a Prefeitura, naquele
momento, ainda não teria uma opinião fechada sobre o que fazer com o local, mas
que o Plano Diretor não viabilizava as atividades, o que levava à conclusão de
que as habitações deveriam ser levadas para o entorno e que a Vila era
inadequada para alguns equipamentos urbanos. Com isso, entrava em contradição
com toda a equipe técnica que fundamentou o projeto de revitalização do bairro,
para quem a vila tinha viabilidade econômica e social.
O procurador da República,
Rodrigo Tenório, lembrou aos representantes da Prefeitura que o convênio
firmado entre a União e a Prefeitura, para a concessão do terreno, não previa a
retirada dos moradores, e que a dificuldade de serviços urbanos alegada pelas
autoridades seriam resolvidas no próprio projeto de urbanização, como previsto.
Portanto, não via na argumentação da Prefeitura nada que justificasse a remoção
dos moradores.
É desta forma que o conflito
entre Prefeitura e comunidade vai ficando cada vez mais acirrado. Numa publicação de 12
de novembro de 2006, no jornal Gazeta de Alagoas, arquitetas da secretaria
municipal de Planejamento afirmavam a impossibilidade de construir as casas por
causa do Plano Diretor, argumento já refutado na audiência do Ministério
Público. Principalmente, porque estava subscrito Art. 53 desse Plano, que
constituem diretrizes específicas para a ZEP[18] Jaraguá, em seu item II –
“incentivo ao uso residencial e de comércio e serviços compatíveis”. Já o Art.
92, §2o, II diz que “reassentamento da população apenas em situação de risco à
vida ou ambientais”. O Art. 96, §2o, IV define os critérios dessa classificação
de risco, todavia nenhum dos itens procede em relação à realidade geográfica da
vila. Ainda que se argumente o fato de a vila estar também localizada numa
ZAIP[19], os fatos contradizem o discurso da Prefeitura, na medida em que a
vila se enquadrava em todos os critérios de interesse paisagístico, conforme
está posto no nono subprojeto do Projeto de Revitalização de Jaraguá (elaborado
por esta mesma Secretaria), e no Decreto Municipal 5.569, de 22 de novembro de
1996.
O conflito tomou mais corpo
quando, em outubro de 2006, o Ministro da Aquicultura e Pesca, Altemir
Gregolin, visitou a comunidade. O jornal Gazeta de Alagoas, de 12 de novembro,
registrou o fato da seguinte forma:
A
atitude, tomada depois que o Ministro recebeu um documento reivindicatório da
comunidade, não foi bem apreciada pela administração municipal. A insatisfação
ocorre não somente porque o Ministro não teve acompanhamento do prefeito Cícero
Almeida, ou de técnicos do município, mas por ser considerada inferência em
questões internas.”
A presidente da Associação dos
Moradores, Maria Enaura Alves do Nascimento (Enaura), junto com professores que
apoiavam a causa da Vila, tiveram uma audiência com esse mesmo Ministro em
Brasília, durante a Conferência Nacional da Pesca. Ele se comprometeu em abrir
os cofres do Ministério para a construção das moradias e urbanização da Vila,
assim que se resolvesse a questão fundiária. Mas não havia interesse da
prefeitura de Maceió nessa permanência.
Em relação à organização da resistência,
é importante remeter às questões internas. Em dezembro de 2008, houve eleição
para a diretoria da Associação de Moradores. A necessidade de mudança na
entidade, segundo a professora Marluce Cavalcante, teve um desdobramento mais
técnico que político, porque surge da necessidade de organização da comunidade
para se adequar às exigências dos projetos que surgiam, sobretudo o PELC
(Programa Esporte e Lazer da Cidade) do
Ministério do Esporte. Havia um esfacelamento da diretoria, que não se encontrava,
reduzindo-se a dona Mariluze. Já passava do tempo de mandato e não tinha
ninguém que quisesse assumir a entidade. As coisas eram levadas de forma
desorganizada: não havia atas, organização da documentação, apesar de se
reconhecer o grande esforço e a representatividade da gestão de dona Mariluze.
Deste modo, surgiu a iniciativa
das pessoas que organizavam o PELC de assumir a Associação, sob pena de o
próprio projeto não ter condições de continuidade. O entendimento era que o
PELC não se sustentaria mais sem a parceria da Associação. E foi em nome dessa
sustentabilidade que um grupo se mobilizou no processo eleitoral, no sentido de
resgatar a entidade. É desse contexto que surge o nome da Enaura, indicada
pelos colegas. De início, ela encarou com receio, mas aos poucos foi se
montando a equipe, que tinha em sua maioria pessoas simples, que não exerciam
liderança no dia a dia da comunidade, com exceção de Lúcia, que já fazia parte
da resistência com os demais.
Então, Enaura assume a
Associação, dando a ela outra cara e outra concepção, com muita informação e
formação política. Ao mesmo tempo, a renovação já começa num clima de divisão
da comunidade, em meio a rixas com as velhas lideranças. A renovação
contemplava os pescadores mais resistentes, aqueles que insistiam na
permanência e se encontravam insatisfeitos com a mudança de comportamento das
velhas lideranças, sobretudo, Neno e seu Anselmo, que nessa época estavam
prestes a abandonar a resistência. Assim, com um estilo de trabalho mais pautado pela busca de apoio nas instituições
e de instrumentos jurídicos, articulação com a Universidade, com o Ministério
Público, com a Defensoria, com o SESC, com o IPHAN, os Ministérios, surge a
nova Associação como elemento de retomada da resistência, reorganizando os
moradores que eram contrários à remoção, em detrimento do movimento de
desistência das velhas lideranças, coordenadas por Neno e seu Anselmo.
Com a renovação da Associação, as
coisas passaram a funcionar, com os projetos de alfabetização de jovens e adultos,
e, sobretudo, com a conquista de um Ponto de Cultura. Isso foi decisivo para
dar continuidade a esse processo de motivação, de trabalho com as crianças e os
jovens da comunidade. O Ponto de Cultura Enseada das Canoas foi um peso grande,
deu sustentação e referencial para o público infantil. Todavia, esse aspecto
mais pedagógico, de grande cunho organizacional, que a Associação toma com a
chegada do grupo liderado por Enaura, não impediu que a entidade também se
projetasse com força na luta política. Como afirma a pesquisadora Marluce
Cavalcante, a luta política sempre foi mais forte, quando exigia esforços,
todas as outras atividades, todos os outros direcionamentos ficavam em segundo
plano. E não podia ser diferente, uma vez que se tratava do período de auge dos
ataques da prefeitura contra a comunidade, não só nas visitas tumultuadas e
conflituosas, como também na atuação midiática contra a “favela dos perigosos”,
momento de extrema violência simbólica e campanha de estigmatização que
influenciava a opinião pública.
Se por um lado, os interesses
iniciais eram burocráticos – assumir a Associação em nome da sustentabilidade
dos projetos culturais – o contexto empurrou as novas lideranças para a
necessidade de preservação do próprio território. E, por conseguinte, acabou
por projetar Enaura como liderança, em virtude da necessidade de organizar
reuniões, de articulações com as instituições, o trato com a imprensa, o
enfrentamento com as autoridades municipais, os embates com a SPU, tudo
contribuiu para a formação política dela e do grupo, munindo-os de informações
e desenvolvendo a habilidade política pela necessidade, pelo contexto
conflituoso em que acabaram encontrando ao assumir a Associação. Como afirmou
Enaura, no momento em que um grupo se entregava para a prefeitura, outro grupo
de pessoas tinha instrução, participava dos projetos de alfabetização de jovens
e adultos e, por isso, tinha contato com outros pensamentos, com as ideias de
Paulo Freire, com a descoberta de que tinham direitos e poderiam lutar por
esses direitos. Foi nesse momento que a resistência começou a retomar o fôlego.
E nos dois sentidos apresentados,
a organização de projetos culturais voltados para o resgate da cidadania, a
recuperação de crianças e adolescentes da comunidade e a resistência política,
pode-se afirmar que a Associação de Moradores e Amigos de Jaraguá (AMAJAR), sob
a liderança de Enaura, engendrou um dos maiores processos de mobilização e
resistência da cidade de Maceió, sensibilizando e conquistando apoio em todos
os segmentos sociais. Ao mesmo tempo, promoveu-se para fora da comunidade uma
nova concepção, um modelo de organização social que reapresentava a comunidade,
que ocupava os espaços sociais com as produções das crianças, os museus, as
praças, os eventos, com suas exposições de pintura, fotografia, apresentação do
maracatu, venda de instrumentos de percussão fabricados pelas próprias
crianças, extraindo elogios de pessoas e instituições ligadas à cultura.
Igualmente no campo político, a resistência vai atrair aliados, além da
comunidade acadêmica que adentra na comunidade produzindo vários artigos
científicos, monografias e dissertações. Para o historiador Golbery Lessa, se
tratou de um dos maiores processos de resistência urbana da história de Maceió.
Em junho de 2009, o então
Presidente Lula visitou Maceió para a inauguração de obras de reestruturação da
orla, e se demonstrou perplexo e indignado ao sobrevoar a Vila de helicóptero.
Ao que denominou “ilhota de miséria”, o presidente chamou a atenção do então Prefeito
Cícero Almeida e do governador do Estado, afirmando que não poderia recuperar a
orla e deixar aquilo pra todo mundo ver, colocando o Ministério das Cidades e o
Programa “Minha Casa, Minha Vida” à disposição para resolver o problema.
Todavia, a exposição do presidente, apesar de ter sido pública, e de seu
discurso ser de fácil acesso, gerou uma polêmica na cidade. O Prefeito Cícero
Almeida distorceu sua fala, afirmando que o presidente Lula defendeu a retirada
dos moradores, versão esta corroborada por quase todos os jornais locais. A
degravação do vídeo, por sua vez, deixa claro que não foi essa a fala do
presidente:
“Não é tirar como
antigamente não. É preciso tratar as pessoas com respeito e colocar no lugar daqueles
barracos uma casa digna, de alvenaria para as pessoas morarem. [...] E o que é importante
notar, e o Cícero sabe disso, deve saber muito mais do que eu que aquele povo
que mora ali deve trabalhar naqueles barquinhos que ficam lá na frente. Então
ali é o local de moradia e o local de trabalho deles.”
Em nenhum momento de sua fala,
Lula se refere à remoção dos moradores, mas a distorção deste pronunciamento,
propagada pela imprensa, ajudou a reforçar na população o sentimento da
necessidade de retirar dali as residências. No dia 04 de outubro de 2009, a
jornalista Wanessa Oliveira publicou no periódico Gazetaweb.com, na íntegra,
uma entrevista com o prefeito, em que este entra em contradição e distorce a
fala do presidente Lula. Mesmo a jornalista insistindo que o vídeo com a fala do presidente desmente sua
posição, ele insiste, e também se demonstra vazio ao justificar a remoção,
afirmando que o motivo era o fato de ser área da União, que seria uma exigência da União. Porém, a jornalista
havia, anteriormente, entrevistado o Gerente de Patrimônio da União, que negou
tal interesse, enfatizando que se tratava de interesse da Prefeitura. Na
matéria, o prefeito ratifica a necessidade de substituição da Vila dos
Pescadores pela marina, ressaltado que o presidente Lula sabia deste projeto.
Todavia, mais uma vez ele se contradiz, ao afirmar que a União recebeu esse
projeto, informação negada na mesma matéria pelo gerente regional José Roberto.
Então, o prefeito desconversa:
Jornalista - A marina vai, então, substituir a Vila dos
Pescadores. A ideia da construção da marina está inclusa dentro desse último
projeto que foi entregue e aceito pela Superintendência de Patrimônio?
Prefeito- Está inclusa.
Jornalista - Em uma conversa com o superintendente, ele
afirmou que o projeto de reurbanização encaminhado ao órgão não contemplava a
criação de uma marina.
Prefeito - Ele recebeu o projeto dos pescadores. E o projeto
da marina está todo pronto conosco. Já foi feita a demonstração.
Jornalista - Mas então não foi entregue?
Prefeito - Não, porque ainda temos um ano que é o prazo para
conclusão das obras da Vila. Mas acredito que a assessoria do doutor José
Roberto já deve estar informada sobre como vamos utilizar esse espaço,
extraoficialmente.
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