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domingo, 3 de março de 2019

Vila de Pescadores de Jaraguá: tradicionalidade e resistência urbana (II)



Vila de Pescadores de Jaraguá: tradicionalidade e resistência urbana (II)
Parmênides Justino Pereira

Além disso, incluía ensino de outras línguas para a comunidade se relacionar com turistas, o que empolgou os técnicos do Banco Interamericano de Desenvolvimento, segundo o arquiteto responsável, Ovídio Pascual. A possibilidade de inclusão da Vila nesse projeto de revitalização é destacada pelo arquiteto nessa matéria do jornal Alagoas em Tempo de 23/10/2005: “A vila dos Pescadores surgiu na primeira metade do século passado e envolve um sedimentado ambiente social que pode ser utilizado como atrativo para o emergente pólo turístico de Jaraguá. [...] isso mostraria a possibilidade de sociabilização, da integralização e do desenvolvimento de uma área pobre (favela), transformando-o em um prospero bairro. [...] A presença da Vila de Pescadores, em Jaraguá, pode e deve ser explorada como um atrativo turístico de grande potencial, ao invés de ser vista como um empecilho para o crescimento do local como polo turístico.”.
Esta informação é de extrema importância, pois com as mudanças de perspectiva da Prefeitura, argumentar-se-á que a remoção da vila é condição para adequar a área às finalidades turísticas, como se a presença dos pescadores em suas moradias também não servisse de instrumento urbano para tal finalidade, o que vai de encontro a conceitos contemporâneos no âmbito do próprio turismo, como ressalta Vasconcelos (2007).
Esta mesma concepção, defendida pela equipe de urbanistas da prefeitura de Maceió, ao colocar a urbanização da Vila como nono subprojeto da revitalização de Jaraguá (servindo igualmente de justificativa para a liberação da verba do PRODETUR), foi corroborada por uma das principais urbanistas maceioenses, professora da UFAL. Esta urbanista nos revelou que, curiosamente, foi procurada por uma empresa ligada à prefeitura para formular um parecer sobre o projeto de urbanização da vila. Ela o fez, mas, posteriormente, o mesmo empresário a procurou para formular um parecer contrário, desfazendo tudo que tinha sido dito no parecer solicitado. Segundo a professora, que ficou indignada com tal proposta e a recusou, aquele havia sido o único parecer que concedeu gratuitamente, dada a importância social e cultural que visualizou no projeto.
[...]
É estranho que o maior investimento de recursos da época tenha gerado uma intervenção de tamanha envergadura, cujo único item não realizado do projeto foi a urbanização da comunidade pobre do lugar; tratava-se de um momento em que a prefeitura estava bem com as contas, a ponto de ter dado a contrapartida do PRODETUR, obrigação que em tese seria do Estado. Afinal, 373 moradias é um número pequeno para o cômpito de quatro anos de governo, principalmente para um governo politicamente próximo do PSDB (partido que ocupava à época o governo federal e estadual), haja vista ter conseguido habitações para 350 remoções; além do fato mais óbvio: não havia nenhum impedimento de se realizar todo o restante do projeto de urbanização, que tinha verba, posse da área, projeto arquitetônico, etc. Entre tantas ambiguidades e contradições, fato é que a Vila dos Pescadores apenas serviu de barganha para verbas federais e internacionais, mas nunca saiu da condição degradante a que foi submetida. A prefeitura apenas mudou de ideia, ou de fato nunca teve interesse em incluir a vila de pescadores no cenário da revitalização? O que fica claro é as essas contradições de postura da prefeitura em relação à comunidade, ora valorizando-a, ora desqualificando-a, o que justifica a suspeita sobre o real enfoque da revitalização de Jaraguá: um redesenho da cidade, em que os pobres não estão incluídos no seu traçado, tal como ocorre nos processos de gentrificação.
No dia 31 de agosto de 2005, o prefeito Cícero Almeida, que sucedeu Kátia Born, foi ao jornal Tribuna de Alagoas declarar o fim da “favela Jaraguá”, afirmando que os moradores seriam removidos para a praia do Sobral. A notícia pegou a cidade de surpresa, porque a comunidade não sabia e não contava com os planos da Prefeitura de removê-la. Em matéria posterior, o chefe da edilidade afirmaria que não queira prejudicar ninguém, apenas “limpar a cidade”.
Tudo acontecia à revelia da comunidade. Ou os pescadores sabiam do seu próprio destino pelos jornais, ou eram surpreendidos com as visitas desastrosas do Secretário de Habitação, que geralmente terminavam em confusão. No dia 03/11/2005, aconteceu a audiência com o Ministério Público Estadual, quando os moradores reafirmaram seu desejo e necessidade de ficar na Vila. Por solicitação da Procuradora do Ministério Público Estadual, foi convocado um encontro, marcado para o dia 20/11/2005, entre a comunidade, gestores da Prefeitura e professores da Universidade Federal de Alagoas.
Antônio Azevedo, então representante do secretário municipal de Planejamento, disse que os estudos que levavam à permanência dos pescadores no local foram caindo aos poucos, na medida em que não houve sustentação técnica para a mesma. Contudo, no final da reunião, por meio dos questionamentos da procuradora, descobriu-se que, de fato, a Prefeitura não possuía tais estudos, que se tratava de uma fala sem sustentação prática. Diante desta contradição, Azevedo afirmou que a Prefeitura, naquele momento, ainda não teria uma opinião fechada sobre o que fazer com o local, mas que o Plano Diretor não viabilizava as atividades, o que levava à conclusão de que as habitações deveriam ser levadas para o entorno e que a Vila era inadequada para alguns equipamentos urbanos. Com isso, entrava em contradição com toda a equipe técnica que fundamentou o projeto de revitalização do bairro, para quem a vila tinha viabilidade econômica e social.
O procurador da República, Rodrigo Tenório, lembrou aos representantes da Prefeitura que o convênio firmado entre a União e a Prefeitura, para a concessão do terreno, não previa a retirada dos moradores, e que a dificuldade de serviços urbanos alegada pelas autoridades seriam resolvidas no próprio projeto de urbanização, como previsto. Portanto, não via na argumentação da Prefeitura nada que justificasse a remoção dos moradores.
É desta forma que o conflito entre Prefeitura e comunidade vai ficando cada vez mais acirrado. Numa publicação de 12 de novembro de 2006, no jornal Gazeta de Alagoas, arquitetas da secretaria municipal de Planejamento afirmavam a impossibilidade de construir as casas por causa do Plano Diretor, argumento já refutado na audiência do Ministério Público. Principalmente, porque estava subscrito Art. 53 desse Plano, que constituem diretrizes específicas para a ZEP[18] Jaraguá, em seu item II – “incentivo ao uso residencial e de comércio e serviços compatíveis”. Já o Art. 92, §2o, II diz que “reassentamento da população apenas em situação de risco à vida ou ambientais”. O Art. 96, §2o, IV define os critérios dessa classificação de risco, todavia nenhum dos itens procede em relação à realidade geográfica da vila. Ainda que se argumente o fato de a vila estar também localizada numa ZAIP[19], os fatos contradizem o discurso da Prefeitura, na medida em que a vila se enquadrava em todos os critérios de interesse paisagístico, conforme está posto no nono subprojeto do Projeto de Revitalização de Jaraguá (elaborado por esta mesma Secretaria), e no Decreto Municipal 5.569, de 22 de novembro de 1996.
O conflito tomou mais corpo quando, em outubro de 2006, o Ministro da Aquicultura e Pesca, Altemir Gregolin, visitou a comunidade. O jornal Gazeta de Alagoas, de 12 de novembro, registrou o fato da seguinte forma:
A atitude, tomada depois que o Ministro recebeu um documento reivindicatório da comunidade, não foi bem apreciada pela administração municipal. A insatisfação ocorre não somente porque o Ministro não teve acompanhamento do prefeito Cícero Almeida, ou de técnicos do município, mas por ser considerada inferência em questões internas.”
A presidente da Associação dos Moradores, Maria Enaura Alves do Nascimento (Enaura), junto com professores que apoiavam a causa da Vila, tiveram uma audiência com esse mesmo Ministro em Brasília, durante a Conferência Nacional da Pesca. Ele se comprometeu em abrir os cofres do Ministério para a construção das moradias e urbanização da Vila, assim que se resolvesse a questão fundiária. Mas não havia interesse da prefeitura de Maceió nessa permanência.
Em relação à organização da resistência, é importante remeter às questões internas. Em dezembro de 2008, houve eleição para a diretoria da Associação de Moradores. A necessidade de mudança na entidade, segundo a professora Marluce Cavalcante, teve um desdobramento mais técnico que político, porque surge da necessidade de organização da comunidade para se adequar às exigências dos projetos que surgiam, sobretudo o PELC (Programa Esporte e Lazer da Cidade)  do Ministério do Esporte. Havia um esfacelamento da diretoria, que não se encontrava, reduzindo-se a dona Mariluze. Já passava do tempo de mandato e não tinha ninguém que quisesse assumir a entidade. As coisas eram levadas de forma desorganizada: não havia atas, organização da documentação, apesar de se reconhecer o grande esforço e a representatividade da gestão de dona Mariluze.
Deste modo, surgiu a iniciativa das pessoas que organizavam o PELC de assumir a Associação, sob pena de o próprio projeto não ter condições de continuidade. O entendimento era que o PELC não se sustentaria mais sem a parceria da Associação. E foi em nome dessa sustentabilidade que um grupo se mobilizou no processo eleitoral, no sentido de resgatar a entidade. É desse contexto que surge o nome da Enaura, indicada pelos colegas. De início, ela encarou com receio, mas aos poucos foi se montando a equipe, que tinha em sua maioria pessoas simples, que não exerciam liderança no dia a dia da comunidade, com exceção de Lúcia, que já fazia parte da resistência com os demais.
Então, Enaura assume a Associação, dando a ela outra cara e outra concepção, com muita informação e formação política. Ao mesmo tempo, a renovação já começa num clima de divisão da comunidade, em meio a rixas com as velhas lideranças. A renovação contemplava os pescadores mais resistentes, aqueles que insistiam na permanência e se encontravam insatisfeitos com a mudança de comportamento das velhas lideranças, sobretudo, Neno e seu Anselmo, que nessa época estavam prestes a abandonar a resistência. Assim, com um estilo de trabalho mais  pautado pela busca de apoio nas instituições e de instrumentos jurídicos, articulação com a Universidade, com o Ministério Público, com a Defensoria, com o SESC, com o IPHAN, os Ministérios, surge a nova Associação como elemento de retomada da resistência, reorganizando os moradores que eram contrários à remoção, em detrimento do movimento de desistência das velhas lideranças, coordenadas por Neno e seu Anselmo.
Com a renovação da Associação, as coisas passaram a funcionar, com os projetos de alfabetização de jovens e adultos, e, sobretudo, com a conquista de um Ponto de Cultura. Isso foi decisivo para dar continuidade a esse processo de motivação, de trabalho com as crianças e os jovens da comunidade. O Ponto de Cultura Enseada das Canoas foi um peso grande, deu sustentação e referencial para o público infantil. Todavia, esse aspecto mais pedagógico, de grande cunho organizacional, que a Associação toma com a chegada do grupo liderado por Enaura, não impediu que a entidade também se projetasse com força na luta política. Como afirma a pesquisadora Marluce Cavalcante, a luta política sempre foi mais forte, quando exigia esforços, todas as outras atividades, todos os outros direcionamentos ficavam em segundo plano. E não podia ser diferente, uma vez que se tratava do período de auge dos ataques da prefeitura contra a comunidade, não só nas visitas tumultuadas e conflituosas, como também na atuação midiática contra a “favela dos perigosos”, momento de extrema violência simbólica e campanha de estigmatização que influenciava a opinião pública.
Se por um lado, os interesses iniciais eram burocráticos – assumir a Associação em nome da sustentabilidade dos projetos culturais – o contexto empurrou as novas lideranças para a necessidade de preservação do próprio território. E, por conseguinte, acabou por projetar Enaura como liderança, em virtude da necessidade de organizar reuniões, de articulações com as instituições, o trato com a imprensa, o enfrentamento com as autoridades municipais, os embates com a SPU, tudo contribuiu para a formação política dela e do grupo, munindo-os de informações e desenvolvendo a habilidade política pela necessidade, pelo contexto conflituoso em que acabaram encontrando ao assumir a Associação. Como afirmou Enaura, no momento em que um grupo se entregava para a prefeitura, outro grupo de pessoas tinha instrução, participava dos projetos de alfabetização de jovens e adultos e, por isso, tinha contato com outros pensamentos, com as ideias de Paulo Freire, com a descoberta de que tinham direitos e poderiam lutar por esses direitos. Foi nesse momento que a resistência começou a retomar o fôlego.
 Além da diferença de formação educacional e política entre os membros da velha e da nova Associação, que fortaleceu os vínculos da comunidade com as instituições, o resgate de uma Associação esfacelada, dividida, abandonada pelas principais lideranças, não apenas garantiu legitimidade à luta, como também ajudou a construir uma nova concepção, a potencializar na comunidade uma leitura de mundo, uma capacidade de ler e entender seu processo político. Por ser alfabetizadora e ter saído dos projetos de alfabetização da CUT e do Instituto Paulo Freire, Enaura reuniu uma capacidade de pensar, de organizar, de agir, conseguindo repassar isso para as pessoas, funcionando como agente multiplicadora na comunidade.
E nos dois sentidos apresentados, a organização de projetos culturais voltados para o resgate da cidadania, a recuperação de crianças e adolescentes da comunidade e a resistência política, pode-se afirmar que a Associação de Moradores e Amigos de Jaraguá (AMAJAR), sob a liderança de Enaura, engendrou um dos maiores processos de mobilização e resistência da cidade de Maceió, sensibilizando e conquistando apoio em todos os segmentos sociais. Ao mesmo tempo, promoveu-se para fora da comunidade uma nova concepção, um modelo de organização social que reapresentava a comunidade, que ocupava os espaços sociais com as produções das crianças, os museus, as praças, os eventos, com suas exposições de pintura, fotografia, apresentação do maracatu, venda de instrumentos de percussão fabricados pelas próprias crianças, extraindo elogios de pessoas e instituições ligadas à cultura. Igualmente no campo político, a resistência vai atrair aliados, além da comunidade acadêmica que adentra na comunidade produzindo vários artigos científicos, monografias e dissertações. Para o historiador Golbery Lessa, se tratou de um dos maiores processos de resistência urbana da história de Maceió.
Em junho de 2009, o então Presidente Lula visitou Maceió para a inauguração de obras de reestruturação da orla, e se demonstrou perplexo e indignado ao sobrevoar a Vila de helicóptero. Ao que denominou “ilhota de miséria”, o presidente chamou a atenção do então Prefeito Cícero Almeida e do governador do Estado, afirmando que não poderia recuperar a orla e deixar aquilo pra todo mundo ver, colocando o Ministério das Cidades e o Programa “Minha Casa, Minha Vida” à disposição para resolver o problema. Todavia, a exposição do presidente, apesar de ter sido pública, e de seu discurso ser de fácil acesso, gerou uma polêmica na cidade. O Prefeito Cícero Almeida distorceu sua fala, afirmando que o presidente Lula defendeu a retirada dos moradores, versão esta corroborada por quase todos os jornais locais. A degravação do vídeo, por sua vez, deixa claro que não foi essa a fala do presidente:
Não é tirar como antigamente não. É preciso tratar as pessoas com respeito e colocar no lugar daqueles barracos uma casa digna, de alvenaria para as pessoas morarem. [...] E o que é importante notar, e o Cícero sabe disso, deve saber muito mais do que eu que aquele povo que mora ali deve trabalhar naqueles barquinhos que ficam lá na frente. Então ali é o local de moradia e o local de trabalho deles.”
Em nenhum momento de sua fala, Lula se refere à remoção dos moradores, mas a distorção deste pronunciamento, propagada pela imprensa, ajudou a reforçar na população o sentimento da necessidade de retirar dali as residências. No dia 04 de outubro de 2009, a jornalista Wanessa Oliveira publicou no periódico Gazetaweb.com, na íntegra, uma entrevista com o prefeito, em que este entra em contradição e distorce a fala do presidente Lula. Mesmo a jornalista insistindo que o vídeo com a fala do presidente desmente sua posição, ele insiste, e também se demonstra vazio ao justificar a remoção, afirmando que o motivo era o fato de ser área da União, que seria  uma exigência da União. Porém, a jornalista havia, anteriormente, entrevistado o Gerente de Patrimônio da União, que negou tal interesse, enfatizando que se tratava de interesse da Prefeitura. Na matéria, o prefeito ratifica a necessidade de substituição da Vila dos Pescadores pela marina, ressaltado que o presidente Lula sabia deste projeto. Todavia, mais uma vez ele se contradiz, ao afirmar que a União recebeu esse projeto, informação negada na mesma matéria pelo gerente regional José Roberto. Então, o prefeito desconversa:

Jornalista - A marina vai, então, substituir a Vila dos Pescadores. A ideia da construção da marina está inclusa dentro desse último projeto que foi entregue e aceito pela Superintendência de Patrimônio?
Prefeito- Está inclusa.
Jornalista - Em uma conversa com o superintendente, ele afirmou que o projeto de reurbanização encaminhado ao órgão não contemplava a criação de uma marina.
Prefeito - Ele recebeu o projeto dos pescadores. E o projeto da marina está todo pronto conosco. Já foi feita a demonstração.
Jornalista - Mas então não foi entregue?
Prefeito - Não, porque ainda temos um ano que é o prazo para conclusão das obras da Vila. Mas acredito que a assessoria do doutor José Roberto já deve estar informada sobre como vamos utilizar esse espaço, extraoficialmente.

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