RONALD CABRAL DE MENDONÇA nasceu
em 17/01/1948. É o terceiro de uma família de onze filhos. Filho de José Lopes
de Mendonça e de Rosa Cabral de Mendonça. Estudou no Colégio Diocesano (1954
-1965). Graduação em Medicina em 1971. Resid. Médica em Neurocirurgia no Hosp.
do Serv. Público Estadual de SP; Pós-Grad. no Inst. C. Chagas, RJ. Prof. de
Neurologia da Ufal e Neurologista do MS; integra o corpo clínico da Santa Casa
de Maceió. Membro da Soc. Bras. de Neurocirurgia, sócio da Sobrames-Al, da Acad. Maceioense de
Letras, da Acad. Alag. de Medicina e da Acad. Alag. de Letras (cadeira 15). Semanalmente,
publica matéria na G. de Alagoas. Dois livros de Antologia, com contos e
crônicas. Autor de dois livros: Latim Aos Sábados e Janela de Vidro, com
crônicas, contos e ensaios. É casado com Nadja Oliveira de Mendonça. Tem um
filho, Carlos Eduardo Mendonça, e dois netos: Caio e Maria Clara.
O Autor debruça-se sobre sua
infância e adolescência em Bebedouro, um dos arrabaldes mais antigos de Maceió.
Disserta sobre as melhorias nas condições de vida da comunidade com a chegada
do imigrante português Jacintho Nunes Leite, no final do século XVIII. De um
mero corredor viário para o interior e vice-versa, Bebedouro seria transformado
num balneário das classes altas do Estado. Discorre acerca da consolidação do
bairro como centro festeiro a partir do terceiro decênio do século XX, até
aproximadamente 1940, quando houve o afastamento do Major Bonifácio Magalhães
da Silveira, o grande mentor dessas festividades. Os pais do autor (nascido em
1948) fixaram residência quando o bairro já estava em decadência. São descritas
alguns hábitos da família, o trabalho comunitário do pai como médico, e a
gradual evolução econômica familiar. As mudanças nos transportes e um certo
retorno do prestígio nos festejos populares também são referidos. Esses últimos
estimulados pela presença de um novo pároco. São relatados aspectos da infância
dos pais do autor, onde viveriam longos anos internos em colégios. Há
referências a “choques culturais” a partir de mudanças nos ambientes
frequentados pelo autor e seus irmãos, máxime nos colégios e nos clubes sociais.
MEMÓRIAS E
BEBEDOURO:
a cidade e suas gentes
RONALD MENDONÇA
Idade
de aprender a ler
Estávamos em
1953-1954. Chegara, enfim, a idade de aprender a ler. A alguns metros da nossa
casa, uma senhora mantinha uma escolinha. Entramos os três irmãos mais velhos,
Rosinete, o Robson e eu. A professora
dava aulas em casa. Havia um oratório bonito na sala onde funcionava o curso.
Uma peça de madeira era o genuflexório. Creio que nos momentos de enlevo
espiritual nossa mestra prosternava-se compungida. Durante as aulas, a severa educadora
era partidária de técnicas pedagógicas, digamos, mais ortodoxas, premedievais,
se vocês me entendem. O genuflexório que
testemunhava seus emocionados encontros com Nossa Senhora, recebia uma
cobertura de feijão ou milho, onde os alunos (crianças de 5-8 anos) iam pagar
seus pecados, expiar suas culpas, ajoelhados sobre o milho ou o feijão.
Não me lembro se alguma vez fui
aquinhoado. Meu irmão Robson, com certeza. Um dos mimos que recebi da minha
primeira professora foi ser chamado de “Olho de Pitomba Lambida”. Tenho zero de
trauma disso. Quem não gostou de saber dessas coisas foi o nosso pai. Retirou-nos
da escolinha. Não fora esse regime de terror, até gostava. Jogava bola nos
intervalos. Era o goleiro. Com um pouco mais de cinco anos fiz uma defesa tão espetacular
que fui chamado de “Nonda”, referência ao grande goleiro Epaminondas, conforme aludi
anteriormente. “Nonda” duraria mais que o “Olho de Pitomba Lambida”.
Depois que saímos da escolinha,
passaríamos a estudar em casa. Minha mãe e minha avó, Docinha, tiveram a
incumbência de nos treinar em leituras, cópias, ditados e nas operações aritméticas.
Não demos vexame. Em 1954, aos 6 anos, meu pai nos matriculou no Diocesano.
Lembro ele na sala da diretoria conversando com o Irmão Nestor, diretor do
colégio. Queria um desconto nas mensalidades. Recordo de dois argumentos. Num deles, papai dizia que era
ex-aluno interno do colégio. O outro argumento referia-se ao fato de estar
matriculando dois alunos. Não me recordo se o desconto foi dado. Provavelmente,
sim.
Orçamento doméstico era apertado
Em 1958 ocorreria uma grande
guinada na vida profissional do meu pai. Surgiu a oportunidade de uma
especialização em Psiquiatria. Conforme aludi, ao morar em Bebedouro, seria
contratado para trabalhar na Casa de Saúde Miguel Couto. Era um hospital
psiquiátrico que ficava a duzentos metros de nossa casa. O frenocômio, cuja
denominação primitiva era Santa Juliana (suposta padroeira dos loucos),
pertencera ao Dr. Pedro Bernardes. Inicialmente, fora arrendada ao psiquiatra
Mário Morceff, um migrante mineiro meio descapitalizado, que terminou
adquirindo o imóvel. Consta ter sido o seu sogro, Dr. Chaves, com seus
infindáveis coqueirais nos Morros de Camaragibe, o poderoso avalista da
negociação.
O fato é que aqueles anos de
trabalho e convivência com doentes mentais tinham lhe dado uma respeitável
vivência na área da Psiquiatria. O curso, patrocinado pelo Serviço Nacional de
Doenças Mentais, encaixava-se como uma luva aos anseios paternos. Havia alguns
obstáculos. Naquele 1958 éramos nove filhos. Minha avó Docinha falecera dois
anos antes e meu tio Breno assumira um emprego no Banco do Nordeste, em Mata
Grande. Uma solução encontrada para ajudar minha mãe a administrar a “rebelde
ninhada” foi apelar para Vovó Moreninha que se transferiu com malas, bagagens e
o marido, o “Velho Góis”, a essa altura fiscal de rendas aposentado. Foram
quase seis meses de ausência. Do Rio, meu pai se esforçava para manter a casa
em ordem através de longas cartas. Escrevia particularmente para cada filho e
nós escrevíamos pelo menos duas cartas por mês. Para minha mãe, eram longas e
apaixonadas que ela as lia e relia atenta e solitariamente e não permitia que
nenhum filho, mesmo os mais curiosos, as acessassem. Meu pai tinha um bom texto
e, a despeito da carranca e de proverbial mau humor, sabia ser romântico. Eles
se amavam.
Um tio paterno, Ruy Mendonça, que
também, quando solteiro e mais jovem, tinha morado conosco, também dava uma revisada para ver
como as coisas estavam. As preocupações maiores eram justamente em relação aos
três filhos mais velhos, máxime Robson e eu. Nos finais de semana, nosso tio
nos levava para sua casa, no Farol, “para dar uma aliviada em casa”. Ruy
Mendonça tinha excentricidades, sobretudo gastronômicas. Depois de almoçarmos
uma montanha de comida, ele nos conduzia à sobremesa. Geralmente bananas. Ele
próprio um glutão sacramentado, impelia-nos a comer gigantescas bananas anãs.
Preocupava-se com o que o nosso pai iria dizer, ao retornar, se nos encontrasse
esquálidos e famélicos. Decididamente, um excêntrico, aquele nosso tio.
“Maloqueirarmos” pelo bairro
Apesar de toda vigilância,
durante os meses de ausência paterna tivemos mais folga para “maloqueirarmos”
pelo bairro. Começamos a nos entrosar mais nas peladas, nas andanças ao banho
do Né Fragoso, nos jogos de ximbra, peões, e até em alguns jogos de azar
apostando castanhas (compradas). Nossa mãe não era tão cuidadosa com os trocos,
posto deixar algumas moedas dando sopa sobre os armários. Aos sábados,
Bebedouro tinha uma feira muito animada. Com 10-11 anos, minha mãe encarregava-me de comprar farinha e mais
algumas pequenas coisas. O macete era chegar no final da feira, quando os
comerciantes baixavam os preços. O que eu conseguia de abatimento ia para a
“caixinha” pessoal.
Na infância e adolescência, nunca
tivemos dinheiro fácil. Na época em que íamos para o colégio de ônibus, Robson
e eu recebíamos, cada um, cinco cruzeiros. Sobrava apenas um cruzeiro.
Levávamos no bolso um pão, cujo recheio variava da manteiga com açúcar ao doce
batido de banana. Raramente queijo. Não nego que ficava morrendo de inveja
quando via as filas na hora do recreio do Colégio para comprar sanduiche na
lanchonete dirigida pelo Irmão Silvino, tendo como balconista um garoto um
pouco mais velho, apelidado de “Cabeleira”.
Não raramente, gastávamos o
dinheiro do transporte para comprar um daqueles sanduiches de mortadela, regado
a uma Crush, que ao paladar dos meninos que éramos, tinham o gosto do néctar e
da ambrosia. Estarmos lisos em pleno meio-dia, na Praça dos Martírios, não era
um grande drama. Era difícil não passar uma carona com destino a Bebedouro.
Aguardávamos no início da General Hermes. Nossas esperanças de não voltar a pé
para casa, concentravam-se, sobretudo, nos caminhões vazios, dirigidos por conhecidos do bairro.
Na curva para entrarem na General Hermes, reduziam consideravelmente a
velocidade, permitindo que galgássemos a carroceria. Ficamos craques: jogávamos
nossas bolsas, segurávamos na grade e apoiávamo-nos nos pneus (em movimento
lento). Logo estávamos sorridentes na carroceria gritando: “Chame”.
Certa feita, coincidiu de minha
mãe presenciar essas manobras e ficou estarrecida com o perigo que corríamos.
Talvez Deus naquela época nos protegesse mais.
Havia um quê de decepção materna
quando chegávamos com o pão amassado e intacto no bolso, que ela embalara com
carinho. Por que não confessar? Pairava algo de constrangimento nas nossas
almas suburbanas por não termos dinheiro para comprar na cantina. Mastigar
aquele pão maltratado, preenchido por manteiga e açúcar, queria parecer que nos
humilhava um pouco. Talvez por isso compensássemos nossa “tragédia” financeira
sendo ótimos alunos.
Com efeito, durante os primeiros anos de
colégio não havia colher de chá. Nossa mãe nos conduzia a estudar à tarde. À
noite, sabíamos que iríamos enfrentar o doutor Zé Lopes, nem sempre no seu
melhor fair play. Uma pedreira. Com ele não havia mais ou menos. Ou as lições
estavam na ponta da língua, ou nada. Dormir (e dormíamos muito cedo) só depois
de repetir “timtim por timtim, até o fim”. Ainda havia aquelas poesias
quilométricas que nos cabiam decorar para recitá-las nas sessões do grêmio...
Volto agora ao primeiro dia no
Colégio Diocesano. Depois “chororô” paterno, encaminhamo-nos eu, meu irmão
Robson e meu pai até a sala do Irmão Pedro, um “velhinho” que era o mestre de
classe do segundo ano primário. Os conhecimentos de casa foram testados e
aprovados. O casulo estava se abrindo. Não me lembro se já tinha usado calça
comprida. O sapato era especial feito por um sapateiro, sr. ML, um cidadão
prenhe de caretas esquisitas, que
frequentava o consultório do velho. No bico e no salto eram colocadas chapas de metal. Havia a crença de que o
sapato duraria mais...
Um entrevero marcaria o primeiro dia de aula.
O pai resolveu nos apanhar dentro do colégio, na sala de aula. Seguimos então
para a porta principal. Meu pai na frente, o Robson atrás. No meio, eu. De
repente, ao atravessarmos o campo de futebol (com os tradicionais oitizeiros)
um menino me calçou. Do nada. Um provocador. Acho que foi a última vez que ele
cometeu essa gracinha. O Robson agarrou o camarada e em dois segundos ele
estava no chão e o Robson, já se preparando para aplicar uns corretivos. Toda
aquela malandragem precocemente apreendida da molecoragem bebedourense
eclodiria. Não fora a interferência de papai, que ao virar-se deparou-se com
aquela cena tragicômica, a venta do menino seria detonada.
Acho que, em 1954, Bebedouro
viveria uma significativa transformação com a chegada do Padre Fernando Iório
Rodrigues, substituindo o velho pároco, padre Belarmino. Iório daria uma nova
vida ao bairro. Disciplinado e trabalhador, sua influência foi além dos umbrais
da Matriz de Santo Antonio. As homilias tinham a grife do intelectual
diferenciado. Renovaria a participação dos fiéis nas associações, Congregação
Mariana, Filhas de Maria, Cruzada Eucarística... Um alto-falante reverberava
além da Praça. Procissões ocupavam as ruas nas comemorações sacras. Nessas
alegorias destacava-se a figura de
Domingão, um agigantado negro enfatiotado, fita azul ao pescoço, símbolo da
piedosa Congregação Mariana. Padre Fernando não parava de puxar o coro com
abaritonada voz. Era também costume ouvirem-se, a partir da Matriz, hinos de
exaltação à pátria e ao Estado nas efemérides oficiais. Deve-se ao Padre Iório,
depois consagrado bispo de Palmeira dos Índios, a criação do Ginásio Santo
Antonio. Modesto, mas de basilar importância.
Os Natais reviveriam o lendário
Bonifácio Silveira. Pastoril animadíssimo marcaria aqueles inesquecíveis
dezembros. Açodado adolescente, investiria parte das minhas parcas economias
chamando “em cena” uma serelepe primeira pastora do azul, para fixar em sua que
recobriam suas incipientes protuberâncias mamilares notas de um cruzeiro, cunhadas com a severa
figura do Marques de Tamandaré. Os
hormônios já começavam a impor
transformações no corpo e na alma
do ex-seminarista. Despedia-se o tempo da inocência.
Durante muitos anos o transporte
coletivo de Bebedouro era uma tragédia. Enquanto o Farol e a Pajuçara eram
servidos por uma frota de primeira qualidade, nosso bairro era castigado por
refugos. Na época em que não havia calçamento, em diversas ocasiões tivemos que
mudar de ônibus porque o que nós viajávamos atolava no lamaçal por prosaica
falta de força. Muitos coletivos eram munidos de um fragmento de madeira preso
na alavanca da marcha. A função era apoiar no tablado para evitar que “saltasse
de marcha”. Um dos proprietários (havia vários), por conta dos sucessivos
enguiços no seu veículo, ganhara o sugestivo apelido de “Arroela”.
Aos poucos esse item foi
equacionado. Os irmãos Calheiros dominariam esse segmento investindo em
equipamentos mais seguros e confortáveis. Também coincidiu com a conclusão do
calçamento, velha aspiração, que teve no lendário coronel Lucena Maranhão,
eleito prefeito de Maceió, um grande executor. Tenho a impressão de que
Maranhão faleceu antes da conclusão das obras. A comunidade não esqueceu seu
nome.
Nas folgas, principalmente nas
férias, nossa vida era bater bola. Na época das frutas, em dezembro,
eventualmente, aventurávamos saltar muros de sítios para roubar mangas e cajus.
Subir em árvores não era nosso pendor. As poucas vezes que tentei subir em coqueiro
tive que amargar um belo arranhão na barriga. Vez ou outra, chegava algum
estranho na nossa casa reclamando que havíamos invadido seus territórios.
Disposto a arcar com os prejuízos, embora envergonhado, meu pai perguntava se
os filhos dele estavam sozinhos. E se ele (o reclamador) já tinha ido na casa
dos outros pais... O velho não achava
graça nessas traquinagens dos filhos.
A partir de um dado momento não
podíamos mais jogar num largo atrás do mercado. Havia muita reclamação dos
moradores. Vidraças eram quebradas, palavrões impublicáveis eram ditos sem a
menor cerimônia. De repente descobrimos uma clareira bem no coração da “Mata
dos Leões”. O “Sete Lobão” era um
campinho degradante. Irregular, em forma de bacia, tinha um chão áspero, que mesmo para os nossos pés acostumados a
ficar descalços produziam desagradável queimação noturna, pelo desgaste da
planta dos pés. Verdadeira lixa. Mas foram rachas inesquecíveis. Durante muito
tempo joguei de goleiro. Posição sofrida, sobretudo porque a bola era de
borracha. As mãos saíam ardidas. Pior quando a bola pegava em cheio no corpo...
Crescia a olhos vistos. Já
conseguia tocar no travessão. Cheguei a titular do Juventus e até disputei
algumas partidas pela segunda divisão, no campo do Mutange. À medida que as
responsabilidades aumentavam como goleiro, crescia a angústia dos entardeceres.
É que a miopia em um dos olhos criava um grande problema com a queda da
luminosidade.
Numa das vezes nosso time foi
jogar na Usina Uruba. Estávamos com uma vantagem mínima no placar quando o juiz
(local) deu uma “patriotada” marcando uma falta, no mínimo duvidosa, bem perto
da grande área, frontal. Já fazia algum tempo que o sol escondera-se. Via
sombras. Fechada a barreira, o sujeito resolveu chutar em minha direção.
Vislumbrei uma sombra escura aproximando-se. Só podia ser a bola. Encaixei, mergulhei
na rala grama deixando-me demorar
deitado por sobre a bola, a ganhar
tempo. Enquanto isso, meus companheiros cercaram o árbitro exigindo o final da
partida. Saí quase carregado. Seria a última vez que joguei de goleiro. Passei
a ser centroavante, posição que já ocupava no time de baixo (“segundo quadro”).
Estudava de manhã e à tarde
secretariava meu pai na Clínica. Desde 1962 fomos morar na Lilota. Era uma
mansão construída durante a Primeira Guerra Mundial, sobrevivente da “Era de
Ouro” do Bebedouro do Major Bonifácio Silveira. Fora habitada por D. Iaiá Leão.
Com seu falecimento a casa ficara vazia, não obstante bem cuidada por um
prestimoso funcionário, seu Lima. Dois anos antes, consolidara-se uma
transformação. Com a confiança e a formalidade de um diploma de especialista,
meu pai dedicava-se cada vez mais à Psiquiatria. Já não fazia mais partos. Seu
canto de cisne como parteiro foi em casa, partejando a filha caçula, Maria de
Fátima. Durante anos a fio, sempre que tinha oportunidade, descreveria as
dificuldades desse nascimento. Nomeava a apresentação do concepto e as manobras
obstétricas que tivera que realizar para o êxito do procedimento. Mãe e filhas
salvas e sadias.
Um relato apaixonado
Como queria dizer, em 1960, meu
pai instalou uma pequena clínica psiquiátrica na Av Major Cícero de G. Monteiro
2079, no Mutange. Sua fama de bom psiquiatra e zeloso dono de hospital cresceu
rapidamente. Em pouco tempo, a Clínica chegaria ao limite de sua capacidade:
quarenta pacientes. Urgia mudar-se. Foi quando surgiu a opção de compra da
Lilota. A bem da verdade, um sonho quase impossível. Na hora da
negociação, pesariam favoravelmente os inúmeros serviços médicos prestados a graduados funcionários da
Usina Leão.
Aos poucos, Bebedouro ia ficando
para trás. Deixaríamos de frequentar o Clube 29 de Junho, com seus animados
bailes de Carnaval e suas quadrilhas puxadas pelo polivalente Né Fragoso, onde
as primeiras paqueras desenharam-se. Nem só de 29 de Junho vivia a rapaziada.
Incursionávamos pela Chã e o Flechal. Não conseguia me aproximar de nenhuma
garota. Com imerecida fama de rico (e de garanhão) era mal visto pelos pais das
mocinhas, que recomendavam manter distância do “perigoso playboy”.
Passaríamos a frequentar as
festas de Carnaval da Fênix e do Iate. Era outro departamento. Dos discos de
Claudeonor Germano no 29 de junho, tínhamos o cantor ao vivo, sob a frenética
musicalidade da orquestra Marajoara do Recife. No Iate, eram os consagrados Fausto e Passinha. Show de bola.
Não obstante, continuava um bicho do mato, arredio, desconfiado. Sem
convivência com as “burguesinhas do Farol e da Pajuçara”, também tive
dificuldades na hora das danças e das paqueras. Ficava mais à vontade nos
cabarés de Jaraguá. Cheio de moral pelos serviços prestados, o velho, depois de
muitas cantadas, deixava que eu dirigisse sua Rural. Havia uma rota: Bar do
Chopp, onde encontrava colegas do colégio, regado a Ron Montilla, e lá pras
onze horas o puteiro de Jaraguá. Confesso que nem sempre ia à via dos fatos.
Começava a ter o critério de seleção. Até por não exagerar na bebida. Ou seja,
as feias e sem graça continuavam feias e sem graça.
Ao começar a estudar medicina, em
1966, divorciei-me quase completamente do meu querido bairro. Lá voltei poucas
vezes, apenas para matar saudades num racha tradicional de Ano Novo, nas
dependências do balneário do seu Né Fragoso. Registro, com tristeza, que seu
famoso banho acabou. A límpida água deixou de escorrer. Há quem diga que o
desmatamento à montante decretou o fechamento dos delicados mananciais que
alimentavam a “piscina do velho Né”, um
dos mais gostosos cartões postais do bairro.
A separação não quis significar desprezo. Com especial carinho, sirvo meu bairro, meus
amigos de infância e seus familiares como médico. Carrego na alma
responsabilidades intransferíveis. Tento mimetizar (sem o seu carisma) os
trabalhos comunitários que meu saudoso pai espontaneamente fazia. Esforço-me,
enfim, por retribuir os inolvidáveis momentos vividos naquele recanto, que me
viu nascer, crescer e até ser feliz.
Maceió, 25 de abril de 2014
Nenhum comentário:
Postar um comentário