Melissa Mota
Possui graduação em Arquitetura e Urbanismo (UFAL - 2001) e
mestrado em Desenvolvimento e Meio Ambiente (PRODEMA/UFAL - 2005). Atualmente é
doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Dinâmicas do Espaço Habitado e
integrante do Grupo de Pesquisa Estudos da Paisagem (FAU/UFAL).
Dois dedos de prosa
Ensino uma disciplina chamada
Formação do Espaço Alagoano em programa de Mestrado mantido pela Universidade
Federal de Alagoas; os alunos são pessoas diretamente envolvidos nos trabalhos
acadêmicos ou que desejam participar de uma pósgraduação. No primeiro caso, são mestrandos e
doutorandos e, no segundo, temos os chamados alunos especiais. Geralmente peço
que – a pessoa desejando – me entregue toda semana, observações que fizeram sobre o cotidiano, tanto no viés atual, quanto no campo da
memória.
Além de achar curioso o que era
apresentado, eu tinha a certeza de que preparava um presente para o futuro. Já
pensou, quando um historiador encontrar
um pacote com uns 300 textos deste tipo? Daria um belo escrito. Agora, decidi
partilhar o acervo, publicando,
vez em quando, alguns dos textos.
Hoje,
Campus traz uma doutoranda (Melissa) e uma aluna especial (Myllena), belos
textos. Vamos ler! Discutir e ver o jogo entre a memória, o tempo, a
observação.
Um
abraço
Luiz
Sávio de Almeida.
Cortes
e recortes: história e memória
Luiz
Sávio de Almeida
O óbvio merece, vez em quando, uma visita. Decorei isto e não sei quem é o autor e segue uma pérola obviana: inegavalmente, todos temos o que dizer sobre a vida. São as experiências, as visões, as
explicações que vão sendo construídas ao longo de anos. E, engraçado, pensam
que somente velhos podem falar em memória. Qualquer que tenha vivido, mesmo que
amortecido, tem condições de olhar para si mesmo e pinçar do tempo sus recuerdos. Interessante, é que se
pode tomar a envergadura da sociedade e reduzi-la em escala, dando-se posse do andamento da história ao
especificá-lo quando se diz: no meu tempo
era assim. É um pouco o que faz a
Melissa olhando para o passado, é um pouco o que faz Myllena andando pelas ruas
e até mesmo pensando no que seria arquitetura.
Esta expressão no meu
tempo era assim é muito rica e sugestiva.
A posse de um tempo pode torná-lo em narrativa, em enunciados... Há uma cátedra sobre a qual o sujeito se senta
e diz como era a vida, não esquecendo
que ele recorta, escolhe e determina como era. Os caminhos da memória e da
recordação são fantásticos, extraordinários
e, na realidade, imprevisíveis.
Convivo com um grupo de alunos meus: alguns estão se
preparando, outros fazem mestrado e outros, doutorado. Bateu a curiosidade! Tendo
liberdade de escolha, sem qualquer preocupação de forma, conteúdo, o que
desejariam escrever como observações de vida? O que estariam vendo sobre o
passado, o que poderiam ver sobre o agora e como estariam vendo o próprio
futuro? Julguei ser uma bela aventura,
poder verificar os caminhos tomados e deixar mais um depoimento para o futuro,
pois afinal de contas seriam
pesquisadores que se iriam debruçar sobre Alagoas.
As duas selecionaram retalhos, com Melissa privilegiando
relações familiares e uma história de vida, enquanto Myllena encontra novos
viventes de Maceió e problematiza em torno de arquitetura, jogando suas
preocupações que ainda necessitarão anos de elaboração, desde que ela se
encontra no início de tudo, no começo mas demonstrando que deseja discutir,
entender, provocar. São, como dissemos,
caminhos e, interessante, cada pessoa tem mais de um, bastando querer
multiplicar-se. E você? Quais são os
seus caminhos? Já desejou
multiplicar-se? Quem sabe você tem muito a dizer? Sua vida está passando, o
mundo girando e seu sentido de tempo também. Cuidado para não ficar amortecido.
Memórias
e retalhos das Alagoas
Melisssa Mota
Nasci
sob a religião católica, filha de pais e avós católicos, todos eles. Assim, a
tradição do preparo da comida da Semana Santa, em especial da Sexta-feira da
Paixão, à base de coco e frutos do mar, sempre estivera presente na minha vida
e me acompanhou desde a infância. A isto, vem somar-se o fato de eu sempre ter nutrido
paixão pelo ato de cozinhar, principalmente nos momentos em que existiam muitos
envolvidos no processo, como eu, minha mãe e minha avó, três gerações juntas,
na cozinha de casa, sob o comando da matriarca.
Nesta
época do ano, íamos para a casa de praia dos meus avós maternos, no Pontal de
Coruripe, uma praia distante cerca de 100 quilômetros de Arapiraca. A casa
ficava lotada de primos e tios e as especialidades da região eram servidas a
partir do café da manhã. Vovó ia à feira de Coruripe na véspera, e trazia
pés-de-moleque, má-casadas, pão fresco e em casa ainda eram confeccionados:
cuscuz de milho com coco ralado e leite de coco para molhar o prato, cuscuz de
massa puba com coco, para o qual a melhor companhia eram as pilombetas de
Penedo, fritas no óleo quente e mungunzá temperado com cravos da índia e pau de
canela.
As
pilombetas, pequenos peixinhos do rio São Francisco, merecem um parágrafo à
parte. Eram enviadas de Penedo para Arapiraca, por minhas tias-avós, Florize e
Helena, irmãs do meu avô materno, José Mota. Finamente tratadas e salgadas, nos
dias que antecediam a Semana Santa.
Depois
do café, que tinha até pilombeta frita, íamos à cozinha, hora do preparo do
almoço. Além da vovó, da mamãe e eu, Lenisse, uma exímia cozinheira de frutos
do mar, juntava-se a nós. Ela era esposa do “Ouricuri”, um pescador que cresceu
na praia e era amigo de infância da minha mãe e tios.
Tudo
começava com a escolha do peixe, fresco, que era trazido pelo Ouricuri. Além de
todos os outros ingredientes que minha avó adquiria na feira de Coruripe ou
mesmo em Arapiraca. Eram servidos: peixe ensopado no coco com pirão, posta de
peixe frito, camarão no coco, arroz de coco, feijão de coco e bredo cozido,
prato este que era servido apenas neste período do calendário religioso.
Depois
do almoço, era servida uma variedade incrível de compotas de frutas, todas
preparadas pela minha avó: doce de cajú, doce de leite, doce de mamão, doce de
banana, doce de goiaba em calda e ainda suspiros e bolos. Estes eram levados
prontos para a casa de praia, feitos com antecedência pela vovó e suas
ajudantes de cozinha, na semana que antecedia a ida dela à praia. Todo o
período da quaresma era vivido pela minha avó participando de diversas
atividades religiosas na igreja, em novenas que percorriam as casas das amigas
dela e na distribuição de quilos de bacalhau, como ato de caridade, na porta da
sua casa.
Hoje,
relembrar as tradições culinárias e familiares que faziam parte do meu
cotidiano na Semana Santa, me fazem refletir sobre a importância da comida e do
ato de prepará-la e atribuir-lhe significados diversos.
Foi
ainda na infância, que surgiu o meu interesse pela cozinha e pelo ato de
cozinhar. Tive duas influências fortes: minhas avós Detinha e Júlia.
A
primeira, avó materna, nasceu e viveu os seus 76 anos em Arapiraca, cidade
localizada na região agreste de Alagoas. Morava em uma casa muito grande,
moderna, projetada por um arquiteto de Recife – era isso que ela dizia, mas
nunca soube o nome do tal arquiteto. A casa possuía várias alas e as áreas
destinadas ao preparo da comida eram os mais incríveis.
A
primeira cozinha possuía um belíssimo fogão dos mais modernos. Este era pouco
usado. Também possuía uma despensa para utensílios, e do lado direito, separado
por uma meia parede, uma mesa enorme onde a família se reunia para fazer as
refeições. Vovó teve 7 filhos e eu sou a neta mais velha. Ao lado da mesa havia
uma grande estante cheia de guloseimas, sempre. Doce de leite de bolinha, doce
de caju com calda, doce de banana em rodelas – todos feitos pela minha avó – queijo
do reino para acompanhar as doçuras, bolo xadrez e, se depender da minha
memória gustativa, a lista poderá continuar crescendo indefinidamente.
A
segunda cozinha, esta sim era muito utilizada. Possuía um grande paneleiro, uma
mesa para manusear os alimentos, um grande balcão com pia e armários e mais
duas despensas. Uma para os mantimentos e a outra para guardar coisas em geral
e produtos de limpeza. Foi na mesa da cozinha da vovó Detinha que eu escrevi
meu primeiro livro de receitas, aos 7 anos de idade.
Saindo
deste espaço, íamos para o primeiro quintal, onde havia um fogão à lenha.
Passávamos por várias plantas e algumas árvores frutíferas e, finalmente,
chegávamos a uma porta de madeira que dava acesso ao segundo quintal. Mais
frutíferas e alguns animais que ela criava: cágados, pombos, galinhas, galos,
capotes.
Gostava
de plantar, colher, ir à feira diariamente para comprar as carnes frescas e os
temperos, moídos na hora, que eram apilados e misturados a outros ingredientes
– magestosamente – por suas mãos fortes. O fundo do terreno, no segundo
quintal, dava para a rua da feira. Era
por uma pequena porta que o mundo dos aromas e sabores se descortinava para
mim. Sempre que eu ia visitá-la, a acompanhava cedinho até a feira. Momentos
únicos de experiência sensorial.
A
segunda, vovó Júlia, nasceu em Rio Largo e foi morar em Maceió aos 18 anos de
idade, onde viveu até completar os seus 96 anos. Uma longa existência
compartilhada com 6 filhos, umas 3 dúzias de netos e não sei quantos bisnetos.
Era
uma mulher urbana. Morava ao lado da praia da Avenida, numa casa pequena, sem
jardim e sem quintal, e era também na sua pequena cozinha que havia um fogão
muito antigo, mas em excelente estado de conservação, que a vovó preparava as
maiores delícias. Ia ao supermercado dia sim, dia não, a pé, carregando seu
carrinho de feira. Os sábados eram marcantes pelos banquetes-almoços. Além do
meu pai, com minha mãe e irmãos, sempre apareciam mais familiares, atraídos
pelas muitas gostosuras da vovó: os bolinhos de bacalhau que fazia às centenas,
sem exagero nenhum, e deixava na urupema para escorrer o excesso do óleo da
fritura; a feijoada de feijão mulatinho com muito paio e pedaços de ossos com
tutano; o siri de coral no coco, serrado ao meio; o sururu de capote e a
pituzada. Isto para citar apenas alguns pratos da sua culinária de mãe.
Devo
às duas, vovó Detinha e vovó Júlia, o prazer que sinto em estar na cozinha, em
saborear alimentos e repetir suas receitas com gosto de saudade.
A
atração que sinto pelas águas, pela arquitetura, pelos espaços, são reflexos de
tantas coisas, e uma delas devo à minha história com Penedo.
O
Velho Chico levou minha família através de suas águas, para a cidade de Penedo;
onde não poderia deixar de ver uma parte de mim construída lá. São Francisco, o
convento, o hotel, os barcos, todos eles fizeram a pessoa que sou hoje.
É
como se não só Penedo, mas as outras tantas cidades banhadas pelo rio,
trouxessem para cada uma delas, suas histórias misturadas com tantas outras,
com minha vida, com o que vou construir daqui pra frente. Minha história com
Penedo, portanto, remonta a outros tempos.
Meu
avô materno, José Mota, falecido em dezembro de 2010, morou durante a maior
parte da sua vida em Arapiraca. Nasceu em Traipu, município assentado sobre uma
pequena colina às margens do São Francisco e distante 67 quilômetros da cidade
de Penedo, para onde meu avô partiu. Isso aconteceu no dia 18 de dezembro de
1933, contando com 13 anos de idade. Viajou de canoa, junto com seus irmãos e
seus pais. As expectativas de todos eram muitas, o que os levou a seguir viagem
pelo caudaloso São Francisco e a constituir nova morada na vibrante Penedo.
Depois
de se alistar ao exército e seguir rumo às aventuras da guerra, vovô Zé Mota (como
era chamado pelos netos) adoeceu no “front” e foi mandado de volta para
Alagoas, logo vindo a se estabelecer no ascendente comércio de Arapiraca. Seus
outros irmãos permaneceram em Penedo.
Mas,
apesar de ter nascido em Traipu e de ter se estabelecido, já na idade adulta,
em Arapiraca, sua relação de pertencimento a um lugar, a um território, sempre
foi clara. Era à Penedo. E eu, a neta mais velha, tive o prazer de crescer
fazendo visitas aos meus tios avôs, ao mini zoológico da Praça Santa Luzia, ao
Restaurante da Rocheira... e como foi grande o meu susto ao avistar, pela
primeira vez, o jacaré moqueado! Mas depois me acostumei com o tradicional
prato da culinária penedense e passei a saborear a iguaria.
Tempos
depois, ingressei na faculdade de arquitetura e, em seguida, fiz o mestrado em
Desenvolvimento e Meio Ambiente, estudando os registros dos viajantes
holandeses que Maurício de Nassau trouxe em sua comitiva, ainda no século
XVII. Assim, revisitei as paisagens de
Penedo nas obras de Frans Post e Albert Eckhout, um regozijo! Lindas imagens do
Brasil Colonial.
Por
sorte, ainda durante o mestrado, surgiu um edital de concurso para a Prefeitura
de Penedo e, para a minha surpresa, havia uma vaga para arquiteto. Coisa rara.
Resolvi estudar pra valer. Era um sonho “voltar” a Penedo e trabalhar lá, com
arquitetura.
Passei!
Era então a arquiteta do município de Penedo! Lembro que quando contei para o
meu avô, ele passou a repetir com mais frequência as suas histórias de saudade
de Penedo, que agora passaria a ser muito mais próxima da minha própria
história.
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