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sexta-feira, 9 de março de 2018

Memória e cotidiano: a galinha e o capital



 Esta é mais uma das lembranças que tenho escrito sobre minha infância. Cada um de nós tem muito o que contar. A riqueza de experiência de qualquer vida, é, em si, uma obra prima e existe vida de todas as cores. É a vida de sofrer, de amar, de sonhar que cada um de nós tem, nossos pedaços de santos e de pecadores somados aos desafios que aparecem a toda hora, a cada minuto como se vivêssemos um teste infinito no mundo que gira com uma velocidade imensa e nos deixa sem hora para dormir e acordar.
É bom registrar o que se viveu e deixar um depoimento dizendo como é que  viu a vida e a sentiu. 
Às vezes a pessoa fica se perguntando se terá importância, aquilo que escreverá.  Sempre terá e sempre alguém no futuro lerá seu texto, até mesmo ao perguntar sobre a vida que vai levando.



Minha caderneta de lembranças e pendências com a vida (V)
Luiz Sávio de Almeida


Onde se fala sobre o que fizeram com a galinha

Existe o gado vacum, o orelhum, o cabrum e deveria existir o galinhum? Coitada, ela sempre foi considerada coisa sem valor, embora fundamental para a cozinha e saúde, quando se fala em aves que temos. No cômputo da riqueza d’antanho era vista como miunça, coisa sem importância; na alimentação era sustança, haja vista o pirão para mulher parida. Antigamente se tinha galinha, capão, frango de leite, o frangote e o dito cujo frango. Hoje tudo parece que ficou resumido ao frango ou ao galeto,  um ser exótico que não anda mais, não avoa e agora nem mais conseguirá se equilibrar, tamanho o que conseguiram fazer com o peito.  Hoje, nem mais se está falando em frango: falam em chester como se fosse uma nova espécie, onde a engenharia genética refez a natureza.

Hoje, se compra frango de vitrine; minha mãe quando ia comprar galinha, observava a titela para saber se estava magra, sopesava para avaliar, soprava as penas e procurava ver se existia pena com canhão. Depois, o vendedor amarrava a galinha pelos pés e colocava no balaio ou no carrinho, lá na feira do Penedo. Mas vez em quando, passava pela Rua da Penha uma pessoa vendendo as pobres, todas de cabeça para baixo, penduradas pelos pés amarrados; eram enfiadas numa vara que o vendedor carregava nos ombros,  uma verdadeira tortura, talvez equivalendo a um pau-de-arara político: a ditadura do homem sobre os demais animais. Em nada se retiraria o trágico da tortura se fosse chamado de pau-de-galinha, expressão que, levada ao espaço coletivo do galinheiro, também, é utilizada para mencionar imundície, no que se atinge o baixo corporal galináceo, pois galo dorme no mesmo lugarzinho.

Elas foram essenciais na vida das Alagoas, tanto em questão de alimentação quanto na de saúde. E vieram de longe, não surgiram aqui e, como exóticas, foram tratadas por Frei Vicente do Salvador. Viraram emblemáticas pelos lados da corte de Castella, com o famoso episódio do ovo de Colombo, o mágico que descobriu a América e colocou um ovo em pé para provar argumentos. A última frase ficou dúbia: o ovo de galinha.

Não deveria haver biboca alagoana sem que a galinha estivesse presente e, com ela, obrigatoriamente, o galo. A galinha de capoeira tem costados coloniais e o frango é uma das atualizações de ganho do capital.  É esta a grande diferença e o balizamento dos investimentos de capital sobre a galinha, um dos mais úteis animais para a alimentação do homem, desde antigos d’antanho. Possivelmente em face desta utilidade,  foi colocada em mercado e na medida em que a ciência e a tecnologia foram avançando, ela foi mudando e  sempre se renovando como carne e como poedeira, até chegar nos tempos do frango.

 Ela nos ajuda a dizer que uma mercadoria sempre tende a se desdobrar em atualizações e, neste sentido, o mercado afirma e confirma alguns novos seres sob antiga denominação: a galinha que veio em caravela, jamais poderia ser a galinha do galeto na brasa, que alguns dizem ser invenção que se espalha na esteira do churrasco vindo do Rio Grande do Sul. Não sei se isto é verdade, mas fica fácil entender e ver que o capital invadiu o galinheiro, acabou com a miunça e transformou a galinha em um campo de investimento. Engraçado: não conseguiram fazer o mesmo com outros bichos, encangando-se a galinha somente com o peru que ficou um prato de tempos do Natal: a famosa ceia natalina.

Outra grande função da galinha foi a de estar na geração de uma espécie de pulha, que dizem vir do espanhol pulla.  Claro que a palavra pulha está forçada, no contexto da frase e, com ela, estávamos querendo dizer embaraço, uma das condições da pulha. Há um desafio à inteligência: quem nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Na verdade está formalmente proposto um dilema ou, melhor dizendo, um falso dilema relativo às causas. Acreditem se desejar, mas dizem que a galinha pacífica do seu quintal, já foi um dinossauro.

Na carta a El Rey de Portugal, Caminha fala da reação dos índios ao verem uma galinha, da qual, segundo ele, quase tinham medo. E se nós formos buscar a vida da galinha conosco, vamos longe.  Corre um longo tempo até que ela saia do quintal para o industrial ou até à grande ciência de manipulação de peso e ovos e que deve ter sido importada, pois jamais, dentro do arcabouço do nosso subdesenvolvimento, teríamos condições de cria-la.   É desta revirada que deve ter nascido o termo frango de corte.  No entanto, para meu espanto e acho que para a Mariquinhas também,  ele foi bicho vendido vivo e hoje se tem galinha morta: uma galinha morta, jamais foi galinha morta, coisa fácil de se fazer.

De onde se fala na galinha do Primo Pobre

Tudo seria alterado o que acredito ter-se dado com o próprio sabor da carne, de modo que Mariquinhas jamais comeu de nossa galinha. Sei apenas que em seis meses – disseram-me –, uma galinha de capoeira chegava a uns 2,5 quilo e hoje, em quarenta dias – ou quem sabe menos –, um frango está pronto para abate. Tudo, na realidade, transforma-se em imenso abatedouro e produção de ovos. Tudo se transformou em uma equação. A velha capoeira que era o resultado de uma baita miscigenação foi perdendo espaço para criações a bem dizer laboratoriais.  Do meu tempo de menino, lembro-me da galinha comum, da peruana, da xadrez, nanica... Diziam que a nanica desgraçava qualquer criação. Eu tive um galo chamado Gigante – bonito – e uma galinha chamada Chimbica, bonita.

Vai parecer mentira, mas a Chimbica me conhecia e acompanhava; chegou franguinha, um quase nada. Chimbica era o nome da galinha do Primo Pobre no programa Balança, mas não Cai e daí a razão do nome que lhe dei.  Todo dia eu a alimentava e por onde eu ficava andando no quintal, Chimbica se fazia presente. Foi um dos dias de revolta, um dos atentados mais fortes que minha infância sentiu. Dei por falta da Chimbica e na hora do almoço estava sendo servida uma galinha. Minha intuição bateu e era verdade: comiam a coitada.

O meu choro foi sentido e saí da mesa: eu teria de ficar vendo o ritual canibalesco; ela não era uma galinha, mas companhia de brincadeiras quando eu a transformava em boi e a pastoreava, cavalgando um cabo de  vassoura que não mais tinha serventia. Era outra das artes do imaginário: transformar um cabo de vassoura em um potente animal igual à do cowboy que eu via no cinema. O vaqueiro sumiu de mim e foi ser californiano, texano, o mais que o cinema transmitia nas cenas projetadas, acho que no Cine São José, no centro de Bicas, Minas Gerais,  atualizando minha relação com a sétima arte, começada em Penedo que ficava na beirada esplêndida do São Francisco.

O quadro do Primo Rico e do Primo Pobre era um dos mais esperados. Era o esnobe rico com a fala do Paulo Gracindo; o primo pobre era o Brandão Filho, justamente o dono da Chimbica. Acho que comecei a ouvir o Balança mas não Cai ainda em Penedo. Meu pai era fã e a família reunia-se para ouvir e rir do que vinha pelo éter e passava na Rua da Penha, entrando por uma imensa antena estirada por cima da casa e batendo no quintal. Era incrível como a fome do Primo Pobre, não o fazia matar a galinha que vivia com sua família, seus filhos, quem sabe pensando no ovo...

Onde se volta à galinha


Eu acho galinha um bicho sem muita expressão, mas tem delas que são bonitas e soltas em um galinheiro davam e ainda dão o gosto de brincar com elas, jogando um punhado de milho aqui e outro acolá e vendo a carreira no meio de cocoricós.  Vezes que fico sentado num pedaço de pau no galinheiro e vendo aquele bando de comadres ciscando e conversando. Elas no poleiro também são interessantes e sinal de que fogem dos inimigos ao não dormirem no chão, onde ficaria mais fácil para a raposa. Cassaco gosta  de uma folia com galinha.

Eu não entendo quando chamam uma pessoa namoradora de galinha; o que a pobre tem de promíscua? Pense que é lindo a bichinha cuidando dos pintos, chocando, colocando debaixo das asas, ensinando as veredas e o tamanho do mundo. Feio é quando vão tirar a pobre do choco;  dão um banho de água fria e a deixam amarrada pelo pé para que não corra para o ninho; minha mãe, para não ferir, usava uma tira de pano... Ninguém pensa nos sentimentos da galinha, apenas que ela deve voltar a por, uma nova  temporada. Estaria passando em sua cabeça... Talvez se perguntasse: Deus, como chego ao ninho. Eu preciso de minhas pechilingas!

O nosso linguajar coloquial utiliza-se da galinha para diversas figurações. Uma coisa fácil de resolver é uma galinha mole, uma canja de galinha. Quando eu era menino, havia uma brincadeira terrível de chata e parenta da cama de gato: era a galinha gorda. Nem dá para descrever direito; quando o cara estava em pé, a perna retesava e aí a gente vinha, batia com a mão bem no encontro da perna com a coxa, por trás do joelho. Sensação chata: parece que se vai cair. Aparece também a galinha d’água, que é aquela pedra que a gente lança para ver dar os pulos.

Minha mãe soltava as galinhas no quintal, colocava água em latas de goiabada e todo dia dava o milho e resto de comida. Quando chocavam, o cuidado era com as pechiringas, dava-se creolina quando estavam com gôgo e se arrancava  “pividia” quando não comiam, operação feita com cinza e limão, a galinha segura por baixo do braço. Havia um negócio que eu nunca entendi: oveiro baixo. Sei lá, talvez tenha a ver com a posição do ovo.

Galinha era servida assada, guisada, ao forno. Faziam à cabidela que é um prato com costados  lusitanos e é dito de linhagem árabe; como disse Souza, pode ser considerado como “um vestígio da língua árabe” em Portugal e sempre teve este viés culinário. O pior é a disputa pelos pedaços da defunta. Um quer o pescoço, outra a goela, outro o iluminador das penas, espécie de tinteiro onde a galinha enfia o bico e escreve nelas... Tem gente que pega um osso e parte na disputa pela sorte. É um ritual que não me apraz, embora, veja só, eu sempre fiquei com a titela. Negócio como pescoço, fígado, moela, pescoço, pé... Arredai pecador! Como nunca: misericórdia!

O capital foi entrando na jogada e transformando tudo em matéria de lucro e vamos industrializar a famosa galinha, acabar com esta estradeira que é a de capoeira, do mesmo modo que foi encostado o boi crioulo. Sumiu o franguinho de leite e apareceu o galeto, que a princípio era chamado de galletto di primo canto, o piecole gallo. Ouvi falar pela primeira vez neste ser, em Natal, no Rio Grande do Norte; era famoso o que era servido numa casa mais do que suspeita e que ficava nos pés da ladeira do Baldo: a Maria Boa. Ali estava o galletto já transformado em galeto e ao primo canto. O di primo é uma boa expressão: no tempo do primeiro canto.

A invasão foi tão grande, que a cidade tornou-se cheia do que vem sendo chamado de galeteria, antes, era frango assado onde deve ter muito, suponho, da poedeira de feofó afunilado, tanto foi o ovo que produziu e vai para a brasa. Alguma coisa vai ser feita com estas galinhas e, daí, elas devem estar em muitos caldos prensado, dissecados e jogados em prateleiras. De casas de Frango Assado que já existiram em Maceió, um deles era  ali nos começos – se não me falha a memoria –da Dona Constança; foi o máximo da irreverência se é que não foi da inocência: Frango Assado Joana d’Arc ou coisa parecida. Ênio Lins foi quem me chamou a atenção.  Sem dúvida, uma visão estranha da heroína e santa, em que a necessidade de vender e ter proteção, não encontrou limite. As galinhas de capoeira não sabem o que aconteceu com a sua estirpe. Continuam a existir, ciscando aqui e ali, batendo papo com as comadres, correndo atrás de uma barata doida, e eram inimigas de escorpião.

Coitado era do capão. Bicho bonito viu? Não era todo mundo que sabia capar e deixar o bicho pronto para crescer e engordar, acontecendo o corte por volta de dois meses de idade. Pegavam, capavam e deixavam trancado de engorda, em busca de peso  bom e macio. Lá pelas bandas do antigo Pripriri do Véio Quintela, depois Vitória do Periperi onde vivia a Comadre Guiomar, quem capava era a Sinhá Otília que morava nos lados do Brejinho e do Pivete, antes da Jaqueira da Josefa e do Benedito. O Brejinho ficava de um lado e o Pivete de outro do Rio São Miguel, que não passa largo por ali e logo entra na Vitória do Periperi, onde vai receber as águas do Camarão.

Se levantar a cabeça lá na barra, a pessoa vê a Serra da Columbrina, um serrote pequeno,  mas capaz de dar testemunho da velhice do lugar. Columbrina era o nome de uma arma antiga, ela com seu pelouro. Se for verdade, qual a razão de se ter uma columbrina ali no meio do passar do rio, lá onde fica a Toca do Isidoro, lugar de espinho de cobra e pelanco de urubu? Pelanco de urubu é um bicho estranho: é todo branco e se uma pessoa chegar perto, ele bota para vomitar ou deve ser uma atitude de defesa. Urubu é esperto,  tem deles que anda cangueiro e já foi Freguesia, havendo o Urubu de Baixo e o Urubu de Cima nas bandas do que seriam Propriá e  Porto Real do Colégio, um defronte do outro nas beiras do São Francisco, por onde construíram uma ponte, acho que pensado na ligação dos trilhos que vinham dos mundos de Arapiraca, com os que estavam no Sergipe d’El Rey.

Pois chegaram os faisões na casa da Comadre Guiomar e foram criados em um galinheiro. Um deles fugiu e não é que apareceu um homem, lá de longe, não sei de onde, com ele debaixo do bração para devolver. Os ovos eram chocados pela galinha e somente depois de certo tempo era que largava. Galinha choca tudo;  ficava com os ovos que se encontrava dos patos no açude e nem-nem; nem fit! Guió cozinhava os faisões ainda tenros e quem comeu, jamais deixou de lembrar a maravilha do gosto. Se a galinha é tão boa que chega a criar ovo de pato, qual a razão de algumas comerem o ovo que colocam? Não é um problema? Pois o povo queimava o bico da galinha que fazia isto, para ela perder a possibilidade de autoalimentar-se.

Sempre Olindina criava capote e era conhecida. Eu já comprava tratadinho e o peito separado. Era uma delícia. Comi muito capote criado solto, no pasto da beira do rio, onde ficam o Poço do Engenho e a Ana Maria, por onde anda a fantástica Cavala e o choro da menina, quem sabe com medo do labirau, bicho assombro e de estranha parecença. A Cavala passa de noite gritando: “Cavala!”. Dá medo, menos, contudo, do que a coruja rasga mortalha que vez em quando avoa  baixo, lá pelo pé de azeitona e depois toma o rumo do sítio, quem sabe procurando rato ou outro bicho saboroso.

Se a galinha é tão boa que chega a criar ovo de pato, qual a razão de algumas comerem o ovo que colocam? Não é um problema? Pois o povo queimava o bico da galinha que fazia isto, para ela perder a possibilidade de autoalimentar-se.






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