Esta é mais uma das lembranças que tenho escrito sobre minha infância. Cada um de nós tem muito o que contar. A riqueza de experiência de qualquer vida, é, em si, uma obra prima e existe vida de todas as cores. É a vida de sofrer, de amar, de sonhar que cada um de nós tem, nossos pedaços de santos e de pecadores somados aos desafios que aparecem a toda hora, a cada minuto como se vivêssemos um teste infinito no mundo que gira com uma velocidade imensa e nos deixa sem hora para dormir e acordar.
É bom registrar o que se viveu e deixar um depoimento dizendo como é que viu a vida e a sentiu.
Às vezes a pessoa fica se perguntando se terá importância, aquilo que escreverá. Sempre terá e sempre alguém no futuro lerá seu texto, até mesmo ao perguntar sobre a vida que vai levando.
Minha
caderneta de lembranças e pendências com a vida (V)
Luiz Sávio de Almeida
Onde se fala
sobre o que fizeram com a galinha
Existe o gado
vacum, o orelhum, o cabrum e deveria existir o galinhum? Coitada, ela sempre
foi considerada coisa sem valor, embora fundamental para a cozinha e saúde,
quando se fala em aves que temos. No cômputo da riqueza d’antanho era vista
como miunça, coisa sem importância; na alimentação era sustança, haja vista o
pirão para mulher parida. Antigamente se tinha galinha, capão, frango de leite,
o frangote e o dito cujo frango. Hoje tudo parece que ficou resumido ao frango
ou ao galeto, um ser exótico que não
anda mais, não avoa e agora nem mais conseguirá se equilibrar, tamanho o que
conseguiram fazer com o peito. Hoje, nem
mais se está falando em frango: falam em chester como se fosse uma nova espécie,
onde a engenharia genética refez a natureza.
Hoje, se
compra frango de vitrine; minha mãe quando ia comprar galinha, observava a
titela para saber se estava magra, sopesava para avaliar, soprava as penas e
procurava ver se existia pena com canhão. Depois, o vendedor amarrava a galinha
pelos pés e colocava no balaio ou no carrinho, lá na feira do Penedo. Mas vez
em quando, passava pela Rua da Penha uma pessoa vendendo as pobres, todas de
cabeça para baixo, penduradas pelos pés amarrados; eram enfiadas numa vara que
o vendedor carregava nos ombros, uma
verdadeira tortura, talvez equivalendo a um pau-de-arara político: a ditadura
do homem sobre os demais animais. Em nada se retiraria o trágico da tortura se
fosse chamado de pau-de-galinha, expressão que, levada ao espaço coletivo do
galinheiro, também, é utilizada para mencionar imundície, no que se atinge o
baixo corporal galináceo, pois galo dorme no mesmo lugarzinho.
Elas foram
essenciais na vida das Alagoas, tanto em questão de alimentação quanto na de
saúde. E vieram de longe, não surgiram aqui e, como exóticas, foram tratadas
por Frei Vicente do Salvador. Viraram emblemáticas pelos lados da corte de
Castella, com o famoso episódio do ovo de Colombo, o mágico que descobriu a
América e colocou um ovo em pé para provar argumentos. A última frase ficou
dúbia: o ovo de galinha.
Não deveria
haver biboca alagoana sem que a galinha estivesse presente e, com ela,
obrigatoriamente, o galo. A galinha de capoeira tem costados coloniais e o
frango é uma das atualizações de ganho do capital. É esta a grande diferença e o balizamento dos
investimentos de capital sobre a galinha, um dos mais úteis animais para a
alimentação do homem, desde antigos d’antanho. Possivelmente em face desta
utilidade, foi colocada em mercado e na
medida em que a ciência e a tecnologia foram avançando, ela foi mudando e sempre se renovando como carne e como
poedeira, até chegar nos tempos do frango.
Ela nos ajuda a dizer que uma mercadoria
sempre tende a se desdobrar em atualizações e, neste sentido, o mercado afirma
e confirma alguns novos seres sob antiga denominação: a galinha que veio em
caravela, jamais poderia ser a galinha do galeto na brasa, que alguns dizem ser
invenção que se espalha na esteira do churrasco vindo do Rio Grande do Sul. Não
sei se isto é verdade, mas fica fácil entender e ver que o capital invadiu o
galinheiro, acabou com a miunça e transformou a galinha em um campo de
investimento. Engraçado: não conseguiram fazer o mesmo com outros bichos,
encangando-se a galinha somente com o peru que ficou um prato de tempos do Natal:
a famosa ceia natalina.
Outra grande
função da galinha foi a de estar na geração de uma espécie de pulha, que dizem
vir do espanhol pulla. Claro que a
palavra pulha está forçada, no contexto da frase e, com ela, estávamos querendo
dizer embaraço, uma das condições da pulha. Há um desafio à inteligência: quem
nasceu primeiro, o ovo ou a galinha? Na verdade está formalmente proposto um
dilema ou, melhor dizendo, um falso dilema relativo às causas. Acreditem se
desejar, mas dizem que a galinha pacífica do seu quintal, já foi um dinossauro.
Na carta a El
Rey de Portugal, Caminha fala da reação dos índios ao verem uma galinha, da
qual, segundo ele, quase tinham medo. E se nós formos buscar a vida da galinha
conosco, vamos longe. Corre um longo
tempo até que ela saia do quintal para o industrial ou até à grande ciência de
manipulação de peso e ovos e que deve ter sido importada, pois jamais, dentro
do arcabouço do nosso subdesenvolvimento, teríamos condições de cria-la. É desta revirada que deve ter nascido o
termo frango de corte. No entanto, para
meu espanto e acho que para a Mariquinhas também, ele foi bicho vendido vivo e hoje se tem
galinha morta: uma galinha morta, jamais foi galinha morta, coisa fácil de se
fazer.
De onde se
fala na galinha do Primo Pobre
Tudo seria
alterado o que acredito ter-se dado com o próprio sabor da carne, de modo que
Mariquinhas jamais comeu de nossa galinha. Sei apenas que em seis meses –
disseram-me –, uma galinha de capoeira chegava a uns 2,5 quilo e hoje, em
quarenta dias – ou quem sabe menos –, um frango está pronto para abate. Tudo,
na realidade, transforma-se em imenso abatedouro e produção de ovos. Tudo se
transformou em uma equação. A velha capoeira que era o resultado de uma baita
miscigenação foi perdendo espaço para criações a bem dizer laboratoriais. Do meu tempo de menino, lembro-me da galinha
comum, da peruana, da xadrez, nanica... Diziam que a nanica desgraçava qualquer
criação. Eu tive um galo chamado Gigante – bonito – e uma galinha chamada
Chimbica, bonita.
Vai parecer
mentira, mas a Chimbica me conhecia e acompanhava; chegou franguinha, um quase
nada. Chimbica era o nome da galinha do Primo Pobre no programa Balança, mas
não Cai e daí a razão do nome que lhe dei.
Todo dia eu a alimentava e por onde eu ficava andando no quintal,
Chimbica se fazia presente. Foi um dos dias de revolta, um dos atentados mais
fortes que minha infância sentiu. Dei por falta da Chimbica e na hora do almoço
estava sendo servida uma galinha. Minha intuição bateu e era verdade: comiam a
coitada.
O meu choro
foi sentido e saí da mesa: eu teria de ficar vendo o ritual canibalesco; ela
não era uma galinha, mas companhia de brincadeiras quando eu a transformava em
boi e a pastoreava, cavalgando um cabo de
vassoura que não mais tinha serventia. Era outra das artes do
imaginário: transformar um cabo de vassoura em um potente animal igual à do
cowboy que eu via no cinema. O vaqueiro sumiu de mim e foi ser californiano,
texano, o mais que o cinema transmitia nas cenas projetadas, acho que no Cine
São José, no centro de Bicas, Minas Gerais,
atualizando minha relação com a sétima arte, começada em Penedo que
ficava na beirada esplêndida do São Francisco.
O quadro do
Primo Rico e do Primo Pobre era um dos mais esperados. Era o esnobe rico com a
fala do Paulo Gracindo; o primo pobre era o Brandão Filho, justamente o dono da
Chimbica. Acho que comecei a ouvir o Balança mas não Cai ainda em Penedo. Meu
pai era fã e a família reunia-se para ouvir e rir do que vinha pelo éter e
passava na Rua da Penha, entrando por uma imensa antena estirada por cima da
casa e batendo no quintal. Era incrível como a fome do Primo Pobre, não o fazia
matar a galinha que vivia com sua família, seus filhos, quem sabe pensando no
ovo...
Onde se volta
à galinha
Eu acho
galinha um bicho sem muita expressão, mas tem delas que são bonitas e soltas em
um galinheiro davam e ainda dão o gosto de brincar com elas, jogando um punhado
de milho aqui e outro acolá e vendo a carreira no meio de cocoricós. Vezes que fico sentado num pedaço de pau no
galinheiro e vendo aquele bando de comadres ciscando e conversando. Elas no
poleiro também são interessantes e sinal de que fogem dos inimigos ao não
dormirem no chão, onde ficaria mais fácil para a raposa. Cassaco gosta de uma folia com galinha.
Eu não entendo
quando chamam uma pessoa namoradora de galinha; o que a pobre tem de promíscua?
Pense que é lindo a bichinha cuidando dos pintos, chocando, colocando debaixo
das asas, ensinando as veredas e o tamanho do mundo. Feio é quando vão tirar a
pobre do choco; dão um banho de água
fria e a deixam amarrada pelo pé para que não corra para o ninho; minha mãe,
para não ferir, usava uma tira de pano... Ninguém pensa nos sentimentos da
galinha, apenas que ela deve voltar a por, uma nova temporada. Estaria passando em sua cabeça... Talvez
se perguntasse: Deus, como chego ao ninho. Eu preciso de minhas pechilingas!
O nosso
linguajar coloquial utiliza-se da galinha para diversas figurações. Uma coisa
fácil de resolver é uma galinha mole, uma canja de galinha. Quando eu era
menino, havia uma brincadeira terrível de chata e parenta da cama de gato: era
a galinha gorda. Nem dá para descrever direito; quando o cara estava em pé, a
perna retesava e aí a gente vinha, batia com a mão bem no encontro da perna com
a coxa, por trás do joelho. Sensação chata: parece que se vai cair. Aparece
também a galinha d’água, que é aquela pedra que a gente lança para ver dar os
pulos.
Minha mãe
soltava as galinhas no quintal, colocava água em latas de goiabada e todo dia
dava o milho e resto de comida. Quando chocavam, o cuidado era com as pechiringas,
dava-se creolina quando estavam com gôgo e se arrancava “pividia” quando não comiam, operação feita
com cinza e limão, a galinha segura por baixo do braço. Havia um negócio que eu
nunca entendi: oveiro baixo. Sei lá, talvez tenha a ver com a posição do ovo.
Galinha era
servida assada, guisada, ao forno. Faziam à cabidela que é um prato com
costados lusitanos e é dito de linhagem
árabe; como disse Souza, pode ser considerado como “um vestígio da língua
árabe” em Portugal e sempre teve este viés culinário. O pior é a disputa pelos
pedaços da defunta. Um quer o pescoço, outra a goela, outro o iluminador das
penas, espécie de tinteiro onde a galinha enfia o bico e escreve nelas... Tem
gente que pega um osso e parte na disputa pela sorte. É um ritual que não me
apraz, embora, veja só, eu sempre fiquei com a titela. Negócio como pescoço,
fígado, moela, pescoço, pé... Arredai pecador! Como nunca: misericórdia!
O capital foi
entrando na jogada e transformando tudo em matéria de lucro e vamos
industrializar a famosa galinha, acabar com esta estradeira que é a de
capoeira, do mesmo modo que foi encostado o boi crioulo. Sumiu o franguinho de
leite e apareceu o galeto, que a princípio era chamado de galletto di primo canto, o piecole
gallo. Ouvi falar pela primeira vez neste ser, em Natal, no Rio Grande do
Norte; era famoso o que era servido numa casa mais do que suspeita e que ficava
nos pés da ladeira do Baldo: a Maria Boa. Ali estava o galletto já transformado
em galeto e ao primo canto. O di primo é uma boa expressão: no tempo do
primeiro canto.
A invasão foi
tão grande, que a cidade tornou-se cheia do que vem sendo chamado de galeteria,
antes, era frango assado onde deve ter muito, suponho, da poedeira de feofó
afunilado, tanto foi o ovo que produziu e vai para a brasa. Alguma coisa vai
ser feita com estas galinhas e, daí, elas devem estar em muitos caldos
prensado, dissecados e jogados em prateleiras. De casas de Frango Assado que já
existiram em Maceió, um deles era ali
nos começos – se não me falha a memoria –da Dona Constança; foi o máximo da
irreverência se é que não foi da inocência: Frango Assado Joana d’Arc ou coisa
parecida. Ênio Lins foi quem me chamou a atenção. Sem dúvida, uma visão estranha da heroína e
santa, em que a necessidade de vender e ter proteção, não encontrou limite. As
galinhas de capoeira não sabem o que aconteceu com a sua estirpe. Continuam a
existir, ciscando aqui e ali, batendo papo com as comadres, correndo atrás de
uma barata doida, e eram inimigas de escorpião.
Coitado era do
capão. Bicho bonito viu? Não era todo mundo que sabia capar e deixar o bicho
pronto para crescer e engordar, acontecendo o corte por volta de dois meses de
idade. Pegavam, capavam e deixavam trancado de engorda, em busca de peso bom e macio. Lá pelas bandas do antigo
Pripriri do Véio Quintela, depois Vitória do Periperi onde vivia a Comadre
Guiomar, quem capava era a Sinhá Otília que morava nos lados do Brejinho e do
Pivete, antes da Jaqueira da Josefa e do Benedito. O Brejinho ficava de um lado
e o Pivete de outro do Rio São Miguel, que não passa largo por ali e logo entra
na Vitória do Periperi, onde vai receber as águas do Camarão.
Se levantar a
cabeça lá na barra, a pessoa vê a Serra da Columbrina, um serrote pequeno, mas capaz de dar testemunho da velhice do
lugar. Columbrina era o nome de uma arma antiga, ela com seu pelouro. Se for
verdade, qual a razão de se ter uma columbrina ali no meio do passar do rio, lá
onde fica a Toca do Isidoro, lugar de espinho de cobra e pelanco de urubu?
Pelanco de urubu é um bicho estranho: é todo branco e se uma pessoa chegar
perto, ele bota para vomitar ou deve ser uma atitude de defesa. Urubu é
esperto, tem deles que anda cangueiro e já
foi Freguesia, havendo o Urubu de Baixo e o Urubu de Cima nas bandas do que
seriam Propriá e Porto Real do Colégio,
um defronte do outro nas beiras do São Francisco, por onde construíram uma
ponte, acho que pensado na ligação dos trilhos que vinham dos mundos de
Arapiraca, com os que estavam no Sergipe d’El Rey.
Pois chegaram os faisões na casa da Comadre Guiomar e
foram criados em um galinheiro. Um deles fugiu e não é que apareceu um homem,
lá de longe, não sei de onde, com ele debaixo do bração para devolver. Os ovos
eram chocados pela galinha e somente depois de certo tempo era que largava.
Galinha choca tudo; ficava com os ovos
que se encontrava dos patos no açude e nem-nem; nem fit! Guió cozinhava os
faisões ainda tenros e quem comeu, jamais deixou de lembrar a maravilha do
gosto. Se a
galinha é tão boa que chega a criar ovo de pato, qual a razão de algumas
comerem o ovo que colocam? Não é um problema? Pois o povo queimava o bico da
galinha que fazia isto, para ela perder a possibilidade de autoalimentar-se.
Sempre
Olindina criava capote e era conhecida. Eu já comprava tratadinho e o peito
separado. Era uma delícia. Comi muito capote criado solto, no pasto da beira do
rio, onde ficam o Poço do Engenho e a Ana Maria, por onde anda a fantástica
Cavala e o choro da menina, quem sabe com medo do labirau, bicho assombro e de
estranha parecença. A Cavala passa de noite gritando: “Cavala!”. Dá medo,
menos, contudo, do que a coruja rasga mortalha que vez em quando avoa baixo, lá pelo pé de azeitona e depois toma o
rumo do sítio, quem sabe procurando rato ou outro bicho saboroso.
Se a galinha é tão boa que chega a criar ovo de pato, qual a razão de
algumas comerem o ovo que colocam? Não é um problema? Pois o povo queimava o
bico da galinha que fazia isto, para ela perder a possibilidade de
autoalimentar-se.
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