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segunda-feira, 11 de agosto de 2014

Migração: o semiárido e a cana

segunda-feira, 2 de julho de 2012










Migração: a amarga vida de canavieiro do camponês do semiárido


Cícero Ferreira de Albuquerque
Esclarecimentos iniciais


O meu objetivo nesse artigo é realizar uma análise da migração temporária do camponês do Semiárido para a região canavieira de Alagoas, abordando sucintamente o fenômeno como uma exigência da realidade, mas também como uma estratégia no cotidiano do camponês. Investigo também alguns significados da migração para a região canavieira, bem como procuro dar visibilidade às condições de trabalho e de existência do migrado no universo canavieiro.
A migração é um tema de diversas áreas de estudo. Conhecimentos produzidos por pesquisadores da sociologia, da história, da antropologia, da demografia e da geografia, por exemplo, são imprescindíveis e complementares para a compreensão do tema. O fenômeno da migração está inserido num conjunto de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que são indissociáveis. Não é possível conhecer adequadamente o fenômeno migratório sem o diálogo entre os saberes das diversas áreas de estudo e sem compreender que sobre ele implicam diferentes motivações.
Na realidade de Alagoas, estamos diante de um fenômeno de vulto, seja pela sua trajetória histórica, seja pelo significado econômico não só para as regiões diretamente envolvidas, seja pelo fértil campo de pesquisa e análise sociológica que ele representa. Estima-se que a safra canavieira de 2012 ultrapassará os 30 milhões de toneladas e que empregará aproximadamente 70 mil canavieiros. Não sabemos exatamente quantos destes são migrantes do Semiárido, mas é possível afirmar que eles estarão presentes em grande número. Os meios de comunicação têm noticiado para todo o Brasil que o Semiárido nordestino está seco, especialmente os municípios do Sertão. Tal fato pode contribuir para o aumento no número de migrantes para a região canavieira.
Migração temporária: uma saída para os males da cerca e da seca




A seca atual é apenas mais uma entre tantas já vividas na região do Semiárido nordestino. O cruzamento de dados de duas obras diferentes nos dá a dimensão dos períodos de seca na região nos três últimos séculos. Euclides da Cunha, em Os sertões, diz–nos que no século XVIII e XIX ocorreram dez secas. Lígia Albuquerque de Melo, no artigo Relações de gênero na convivência com o semi-árido brasileiro: a água para o consumo doméstico nos dá conta de nove secas no século XX.
Historicamente, a seca tem sido apontada como a causa da migração. Ela é, sem dúvida, um componente a ser considerado causa migratória. Tribos indígenas que habitaram a região antes da chegada dos portugueses viam-se permanentemente obrigadas a migrar por causa das secas. Os colonizadores portugueses foram forçados a vários recuos por causa das secas até a ocupação efetiva do “Nordeste interior”. O campesinato que se formou na região não teve a mesma mobilidade que os primeiros habitantes, mas nem sempre foi possível conviver com as intempéries da natureza.
A imagem do retirante da seca no Nordeste é recorrente na literatura brasileira. A descrição pormenorizada da terra seca e do sofrimento do homem do Semiárido corre o mundo em Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Em Morte e vida Severina, o retirante de João Cabral de Melo Neto, fugindo da seca, atravessa a região canavieira e descobre na grande cidade um universo ainda mais adverso do que aquele que deixara para trás. No entanto, foi Os sertões, documentário de Euclides da Cunha, a obra que mais destacou o Sertão e as agruras da seca para o Brasil e para o mundo. Na literatura especializada também encontramos um grande destaque para a seca como um fenômeno característico da região sertaneja. Em A terra e o homem no Nordeste, Manuel Correia de Andrade afirma que “O sertanejo está sempre preocupado com a seca, já que desde os tempos coloniais ela vem se repetindo, com maior ou menor intensidade, mas com periodicidade impressionante”.
Entretanto, nos dias atuais, não é a seca determinante do processo migratório, ela é uma razão secundária e assim deve ser considerada. A má distribuição das terras é a grande causa da migração. O grande e o médio proprietário não migram por causa das secas. A migração não ocorre por razões conjunturais, a seca, mas por razões estruturais, representadas pelo monopólio da terra. Como bem diz a sabedoria popular na região: o problema não é de seca, é de cerca.
Conforme Francisco de Oliveira, em Elegia para uma (Re)ligião, estamos diante de uma realidade que o capital hegemônico historicamente configura as regiões e estabelece, conforme os seus interesses, o papel de cada uma no panorama de acumulação e expropriação da natureza e do trabalho humano. No ensaio Cassacos e Corumbas, realizado no contexto da Zona da Mata pernambucana, Maria Teresa S. de Melo Suarez aborda a migração como parte de um processo social determinado por causas estruturais, por dinâmicas produtivas diferentes, configurando uma “inter-relação entre a grande e a pequena propriedade (o chamado ‘complexo latifúndio-minifúndio’)”.  O vai-e-vem de trabalhadores entre o Semiárido e a zona canavieira expressa um processo histórico marcado por causas estruturais mantidas quase que intactas ao longo dos tempos.



O fenômeno da migração não é recente no Nordeste brasileiro, remonta ao fim do século XIX e começo do século XX. Os movimentos migratórios acontecem na direção da Zona da Mata, mas também para capitais e até para outras regiões do País. Migram os pobres e, destacadamente, os mais jovens. Os proprietários e filhos de proprietários rurais de unidades produtivas de pequeno e médio porte formam a massa migrante. Os grandes proprietários são beneficiados por esse processo. Maria Aparecida de Moraes Silva, em Retirantes do fim do século nos diz que “[...] a migração, quer seja definitiva ou sazonal, produz a passagem de uma estrutura de dominação para outra, [...] a migração não liberta o camponês das amarras do poder dos grandes proprietários”.
    Compreendo que o processo migratório é determinado por causas macroeconômicas, o que não anula o papel de indivíduos e grupos na elaboração de seus projetos migratórios.  É o que fazem milhares de camponeses todos os anos: confrontam o caráter totalizante do capital, constroem e reconstroem as suas estratégias de reprodução. É a compreensão do caráter dinâmico e dialético dessa realidade que motiva procurar entender a presença não residual ou marginal do campesinato. O campesinato é portador de um ethos particular, cujos códigos de produção e de convivência social contrariam as lógicas gerais do capital. Entre outras coisas, o trabalho familiar constitui a principal força de reprodução da unidade produtiva.
            Há situações que o movimento migratório garante a sobrevivência de muitas famílias camponesas durante uma parte do ano, é fonte regular de renda que funciona como fator de estabilidade e de redução de riscos com as estiagens. Noutros casos, ela ganha contornos menos dramáticos, corresponde a um meio de fortalecimento das unidades produtivas.  De qualquer forma, ainda que seja uma necessidade, a migração não representa a incapacidade da agricultura camponesa do Semiárido de produzir os meios de sua reprodução, é um indicador de sua insuficiência. Mesmo no Agreste, onde a pequena propriedade tem presença marcante, as áreas são exíguas, insuficientes para garantir a sobrevivência das famílias. Nas famílias polinucleares, exemplarmente, a migração é inevitável.


 No contexto alagoano, esse fenômeno, circunscrito no âmbito da pluriatividade, transforma o trabalhador num sujeito de dupla atividade: uma camponesa, agricultora e outra canavieira, agricultora e assalariada. Como camponês, o trabalhador é dono de um pedaço de terra, dos instrumentos de produção e dos bens produzidos por ele e por seus familiares. Essa atividade atende às suas necessidades de reprodução e é – quando é – destinada ao mercado local e regional. Enquanto canavieiro, ele é proletarizado pela moderna indústria açucareira, produz para um mercado distante e, muitas vezes, nem sabe quem é o dono da empresa para a qual trabalha. Conforme Maria José Carneiro, atendem pela noção de pluriativas as atividades complementares ou suplementares à produção agrícola exercidas por um ou por vários membros de um mesmo grupo doméstico.
            Essa dupla condição, dada a sua regularidade e a sua ocorrência por diversos anos e por várias gerações, nos diz que tal migrante não é apenas camponês, é também canavieiro. Entretanto, apesar de ser proletarizado durante um período do ano e uma parte da sua vida, ele não é um proletário, é um camponês. O sujeito que migra é um camponês e é em função dessa condição que ele migra. O trabalho no canavial visa garantir e fortalecer a sua condição camponesa, categoria desenvolvida por Jan Douwe van der Ploeg, cujas características incluem “um projeto de sobrevivência e resistência ligado à reprodução familiar”. Nesses termos, hipoteticamente, ainda que a atividade canavieira represente a principal fonte de renda da família de algum migrante camponês no período de um ano, o trabalho como canavieiro tem apenas caráter complementar.
            Um dos significados mais relevantes da migração é o impacto que ela gera em outras regiões. A região canavieira, por exemplo, há várias décadas vem recebendo migrantes no período de safra. Entre os que chegam e os que já estão na região existem diversos conflitos e tensões. Um exemplo disso é que os trabalhadores da região canavieira chamam de ‘sertanejos’ todos os migrantes do Semiárido e em alguns casos, de forma indistinta, todos os migrantes. Essa generalização não decorre de uma incapacidade de distinguir quem é do Sertão e quem é do Agreste. Os ‘da rua’, como são chamados pelos ‘sertanejos’, na verdade, estão demonstrando a sua rejeição contra aqueles que chegam e ameaçam os seus empregos.
Nos últimos anos as tensões têm se renovado e assumido novos contornos. O fato é que a região canavieira vive uma reestruturação profunda nas últimas décadas. As relações entre capital e trabalho, especialmente, foram alteradas. Novos modelos de gestão e de controle do trabalho foram impostos, gerando dor e sofrimento para os trabalhadores canavieiros e taxas de mais-valia ainda mais agressivas em benefício das usinas. Tais alterações acirraram as lutas de classes, realidade que fica evidenciada com as recentes greves e protestos no universo canavieiro alagoano, mas também acirra os ânimos entre trabalhadores da região canavieira e migrantes. Assim, o tradicional sentido estratégico utilizado pelo capital açucareiro ao buscar o trabalho migrante, garantir a plena ocupação das vagas de trabalho no período da safra, tem gerado insatisfação nos trabalhadores da região canavieira que vêm os seus postos de trabalho ameaçados, reduzidos.

           
A fama de bons trabalhador representa a grande vantagem do ‘sertanejo’ em relação aos ‘da rua’. Some-se a isto, o fato de que ele busca no corte da cana auferir alguma renda suplementar, fazer uma poupança que servirá como seguro a ser investido na melhoria de sua reprodução.
            O migrante é um corpo estranho na realidade que o recebe. Embora Geraldo Hasse, no artigo “Meus caros pais”: uma trajetória migrante sentencie que “para se fixar num território novo, ainda que temporariamente, o migrante precisa manter uma boa relação com o meio ambiente, nele incluídos os humanos já estabelecidos”, não é isso o que tem acontecido. As relações de convivência são difíceis. Na raiz das tensões está o fato de que a presença do migrante, utilizando novamente uma expressão de Hasse, “quebra o status quo do lugar onde se insere”.
            O “sertanejo”, como um de ‘fora’, como um estranho nas terras dos outros, sente o olhar de preconceito e de discriminação contra si contra a sua região, ressente-se principalmente porque sabe que é visto como um desgarrado da sua região, da sua gente e da sua família, mas, é principalmente a sua condição de concorrente no mundo do trabalho, que faz com que seja visto como um intruso, uma ameaça, despertando o olhar hostil dos demais trabalhadores canavieiros.
As representações produzidas pelos trabalhadores ‘da rua’ e pelos patrões constituem identidades distorcidas do ‘sertanejo’. Ser ‘sertanejo’ é a sua “imperfeição original”, em seguida lhes são imputados imperfeições e atributos que o descaracterizam como ser humano comum, diverso, dinâmico. Ser ‘sertanejo’ ganha fortes contornos negativos, configurando-se como um estigma, seguindo o entendimento de Erving Goffman, e confirma a tese de que ninguém migra impunemente. De um lado, ele aparece como desprovido de autoestima e de consciência de classe, haja vista que, segundo os trabalhadores “da rua”, tolera os abusos extremos dos patrões; do outro, na perspectiva dos patrões, ele é máquina, dócil, pois além de cumprir as rigorosas metas de produção, convive com condições de trabalho e de alojamento que lhes são hostis.
Por sua vez, o ‘sertanejo’, camponês que migra para a região canavieira, tem uma condição que os ‘da rua’ geralmente não conhecem. Ele tem uma atividade de auto-reprodução, o que inclui um pedaço de terra, uma casa própria e algum gado, por isso, não raro, lançam um olhar superior, enxergam os “da rua’ como trabalhadores em condições de inferioridade financeira e patrimonial. Os ‘da rua’, muitas vezes, sequer têm um lugar próprio para morar, vivem de aluguel nos povoados, vilas ou mesmo nas periferias da cidade. Enquanto isso, o camponês move-se em função de um projeto de manutenção e/ou de aprimoramento do patrimônio que possui, o que o faz, consequentemente, um sujeito com mais autonomia.
            Uma das razões dos conflitos entre os ‘da rua’ e os ‘sertanejos’ nos últimos anos tem sido a não adesão dos mesmos nos movimentos grevistas ocorridos na região. Só em 2010 foram registradas 14 greves de canavieiros em Alagoas. O motivo principal foi a adoção do contrato safrista, expediente implementado por 17 das 24 usinas. O contrato safrista, diferentemente do contrato por tempo indeterminado, isenta a usina da multa rescisória de 40% ao final da safra. Apesar de ter amparo legal, o contrato foi repudiado pelos trabalhadores que são por ele impedidos de, após duas safras, terem direito ao seguro desemprego.
            Diante da pressão, na safra 2011, apenas a Usina Coruripe, localizada no município de mesmo nome, manteve o regime de contrato safrista. No contrato safrista o trabalhador tem direito apenas a FGTS, 13º e férias proporcionais, enquanto no contrato por tempo indeterminado, estão incluídos também o seguro desemprego, 40% sobre o FGTS e aviso prévio.
            Reiteradamente os ‘sertanejos’ foram indiferentes às lutas por melhores salários e por melhores condições de trabalho na atividade canavieira. Este ano, excepcionalmente, na usina Guaxuma, localizada no município de Coruripe, eclodiu uma greve de ‘sertanejos’-canavieiros. Em defesa da validade da migração como estratégia de reprodução da sua condição campesina, os ‘sertanejos’ rebelaram-se: enfrentaram o contrato safrista. Esta não foi, como já vimos, a única greve contra o contrato, os ‘da rua’ já vinham enfrentando tal imposição das usinas, mas, por ter sido desencadeada, liderada e conduzida unicamente por ‘sertanejos’ – os ‘da rua’ foram indiferentes a esta greve -, ela tem significados particulares.
Enfins







O camponês do Semiárido alagoano não tem como viver apenas da produção que realiza na sua terra, ela é insuficiente e precisa ser complementada com outras rendas. Migrar é preciso.
A venda de dias de trabalho para um grande proprietário da região ou mesmo a realização de trabalhos como pedreiro, marceneiro ou outros, também não garante a sua e a sobrevivência da sua família. O fato é que ao mergulhar no mundo canavieiro, o migrante tem rompido, temporariamente, a sua condição de camponês, é precarizado. Sua força de trabalho ajuda a indústria canavieira a existir e a prosperar. Paradoxalmente, a indústria canavieira, assim como a construção civil, por exemplo, são importantes para a manutenção de milhares de pequenas propriedades agrícolas no Semiárido alagoano e de todo o Nordeste. Essa relação de complementaridade é perversa, pois acontece em condições desiguais. As transformações ocorridas na dinâmica de produção canavieira têm agravado ainda mais as condições de vida dos migrantes e do conjunto dos trabalhadores canavieiros. Metas cada vez mais rigorosas de produção têm feito crescer o número de mortes por exaustão e adoecimentos diversos acometem os canavieiros submetidos a ritmos de trabalho cada vez mais intensos.
Esse é um tema que merece ser desenvolvido num novo trabalho.
A realidade de Alagoas é rica em desafios. Conhecer melhor essa realidade é uma tarefa posta para as ciências sociais. Estranho é que em Alagoas poucos são os pesquisadores dedicados ao estudo de temas concretos da vida do nosso povo. 

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