segunda-feira, 2 de julho de 2012
Cícero
Ferreira de Albuquerque
Esclarecimentos
iniciais
O meu objetivo nesse
artigo é realizar uma análise da migração temporária do camponês do Semiárido
para a região canavieira de Alagoas, abordando sucintamente o fenômeno como uma
exigência da realidade, mas também como uma estratégia no cotidiano do
camponês. Investigo também alguns significados da migração para a região
canavieira, bem como procuro dar visibilidade às condições de trabalho e de
existência do migrado no universo canavieiro.
A migração é um tema
de diversas áreas de estudo. Conhecimentos produzidos por pesquisadores da
sociologia, da história, da antropologia, da demografia e da geografia, por
exemplo, são imprescindíveis e complementares para a compreensão do tema. O
fenômeno da migração está inserido num conjunto de relações econômicas,
sociais, políticas e culturais que são indissociáveis. Não é possível conhecer
adequadamente o fenômeno migratório sem o diálogo entre os saberes das diversas
áreas de estudo e sem compreender que sobre ele implicam diferentes motivações.
Na realidade de
Alagoas, estamos diante de um fenômeno de vulto, seja pela sua trajetória
histórica, seja pelo significado econômico não só para as regiões diretamente
envolvidas, seja pelo fértil campo de pesquisa e análise sociológica que ele representa.
Estima-se que a safra canavieira de 2012 ultrapassará os 30 milhões de
toneladas e que empregará aproximadamente 70 mil canavieiros. Não sabemos exatamente
quantos destes são migrantes do Semiárido, mas é possível afirmar que eles
estarão presentes em grande número. Os meios de comunicação têm noticiado para
todo o Brasil que o Semiárido nordestino está seco, especialmente os municípios
do Sertão. Tal fato pode contribuir para o aumento no número de migrantes para
a região canavieira.
Migração
temporária: uma saída para os males da cerca e da seca
A seca atual é
apenas mais uma entre tantas já vividas na região do Semiárido nordestino. O
cruzamento de dados de duas obras diferentes nos dá a dimensão dos períodos de
seca na região nos três últimos séculos. Euclides da Cunha, em Os sertões, diz–nos que no século XVIII
e XIX ocorreram dez secas. Lígia Albuquerque de Melo, no artigo Relações
de gênero na convivência com o semi-árido brasileiro: a água para o consumo
doméstico nos
dá conta de nove secas no século XX.
Historicamente, a seca
tem sido apontada como a causa da migração. Ela é, sem dúvida, um componente a
ser considerado causa migratória. Tribos indígenas que habitaram a região antes
da chegada dos portugueses viam-se permanentemente obrigadas a migrar por causa
das secas. Os colonizadores portugueses foram forçados a vários recuos por
causa das secas até a ocupação efetiva do “Nordeste interior”. O campesinato
que se formou na região não teve a mesma mobilidade que os primeiros
habitantes, mas nem sempre foi possível conviver com as intempéries da
natureza.
A imagem do retirante
da seca no Nordeste é recorrente na literatura brasileira. A descrição
pormenorizada da terra seca e do sofrimento do homem do Semiárido corre o mundo
em Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Em Morte e vida Severina, o retirante
de João Cabral de Melo Neto, fugindo da seca, atravessa a região canavieira e
descobre na grande cidade um universo ainda mais adverso do que aquele que
deixara para trás. No entanto, foi Os sertões,
documentário de Euclides da Cunha, a obra que mais destacou o Sertão e as
agruras da seca para o Brasil e para o mundo. Na literatura especializada
também encontramos um grande destaque para a seca como um fenômeno
característico da região sertaneja. Em A
terra e o homem no Nordeste, Manuel Correia de Andrade afirma que “O
sertanejo está sempre preocupado com a seca, já que desde os tempos coloniais
ela vem se repetindo, com maior ou menor intensidade, mas com periodicidade
impressionante”.
Entretanto,
nos dias atuais, não é a seca determinante do processo migratório, ela é uma
razão secundária e assim deve ser considerada. A má distribuição das terras é a
grande causa da migração. O grande e o médio proprietário não migram por causa
das secas. A migração não ocorre por razões conjunturais, a seca, mas por
razões estruturais, representadas pelo monopólio da terra. Como bem diz a
sabedoria popular na região: o problema não é de seca, é de cerca.
Conforme
Francisco de Oliveira, em Elegia para uma
(Re)ligião, estamos diante de uma realidade que o capital hegemônico
historicamente configura as regiões e estabelece, conforme os seus interesses,
o papel de cada uma no panorama de acumulação e expropriação da natureza e do
trabalho humano. No ensaio Cassacos e
Corumbas, realizado no contexto da Zona da Mata pernambucana, Maria Teresa
S. de Melo Suarez aborda a migração como parte de um processo social
determinado por causas estruturais, por dinâmicas produtivas diferentes,
configurando uma “inter-relação entre a grande e a pequena propriedade (o
chamado ‘complexo latifúndio-minifúndio’)”. O vai-e-vem de trabalhadores entre o Semiárido
e a zona canavieira expressa um processo histórico marcado por causas
estruturais mantidas quase que intactas ao longo dos tempos.
O fenômeno da migração
não é recente no Nordeste brasileiro, remonta ao fim do século XIX e começo do
século XX. Os movimentos migratórios acontecem na direção da Zona da Mata, mas
também para capitais e até para outras regiões do País. Migram os pobres e,
destacadamente, os mais jovens. Os proprietários e filhos de proprietários
rurais de unidades produtivas de pequeno e médio porte formam a massa migrante.
Os grandes proprietários são beneficiados por esse processo. Maria Aparecida de
Moraes Silva, em Retirantes do fim do
século nos diz que “[...] a migração, quer seja definitiva ou sazonal,
produz a passagem de uma estrutura de dominação para outra, [...] a migração
não liberta o camponês das amarras do poder dos grandes proprietários”.
Compreendo
que o processo migratório é determinado por causas macroeconômicas, o que não
anula o papel de indivíduos e grupos na elaboração de seus projetos
migratórios. É o que fazem milhares de
camponeses todos os anos: confrontam o caráter totalizante do capital, constroem
e reconstroem as suas estratégias de reprodução. É a compreensão do caráter
dinâmico e dialético dessa realidade que motiva procurar entender a presença
não residual ou marginal do campesinato. O campesinato é portador de um ethos particular, cujos códigos de
produção e de convivência social contrariam as lógicas gerais do capital. Entre
outras coisas, o trabalho familiar constitui a principal força de reprodução da
unidade produtiva.
Há
situações que o movimento migratório garante a sobrevivência de muitas famílias
camponesas durante uma parte do ano, é fonte regular de renda que funciona como
fator de estabilidade e de redução de riscos com as estiagens. Noutros casos,
ela ganha contornos menos dramáticos, corresponde a um meio de fortalecimento
das unidades produtivas. De qualquer
forma, ainda que seja uma necessidade, a migração não representa a incapacidade
da agricultura camponesa do Semiárido de produzir os meios de sua reprodução, é
um indicador de sua insuficiência. Mesmo no Agreste, onde a pequena propriedade
tem presença marcante, as áreas são exíguas, insuficientes para garantir a
sobrevivência das famílias. Nas famílias polinucleares, exemplarmente, a
migração é inevitável.
No
contexto alagoano, esse fenômeno, circunscrito no âmbito da pluriatividade,
transforma o trabalhador num sujeito de dupla atividade: uma camponesa,
agricultora e outra canavieira, agricultora e assalariada. Como camponês, o
trabalhador é dono de um pedaço de terra, dos instrumentos de produção e dos bens
produzidos por ele e por seus familiares. Essa atividade atende às suas
necessidades de reprodução e é – quando é – destinada ao mercado local e
regional. Enquanto canavieiro, ele é proletarizado pela moderna indústria
açucareira, produz para um mercado distante e, muitas vezes, nem sabe quem é o
dono da empresa para a qual trabalha. Conforme Maria José Carneiro, atendem
pela noção de pluriativas as atividades complementares ou suplementares à
produção agrícola exercidas por um ou por vários membros de um mesmo grupo
doméstico.
Essa
dupla condição, dada a sua regularidade e a sua ocorrência por diversos anos e
por várias gerações, nos diz que tal migrante não é apenas camponês, é também
canavieiro. Entretanto, apesar de ser proletarizado durante um período do ano e
uma parte da sua vida, ele não é um proletário, é um camponês. O sujeito que
migra é um camponês e é em função dessa condição que ele migra. O trabalho no
canavial visa garantir e fortalecer a sua condição camponesa, categoria
desenvolvida por Jan Douwe van der Ploeg, cujas características incluem “um
projeto de sobrevivência e resistência ligado à reprodução familiar”. Nesses
termos, hipoteticamente, ainda que a atividade canavieira represente a
principal fonte de renda da família de algum migrante camponês no período de um
ano, o trabalho como canavieiro tem apenas caráter complementar.
Um
dos significados mais relevantes da migração é o impacto que ela gera em outras
regiões. A região canavieira, por exemplo, há várias décadas vem recebendo
migrantes no período de safra. Entre os que chegam e os que já estão na região
existem diversos conflitos e tensões. Um exemplo disso é que os trabalhadores
da região canavieira chamam de ‘sertanejos’
todos os migrantes do Semiárido e em alguns casos, de forma indistinta, todos
os migrantes. Essa generalização não decorre de uma incapacidade de distinguir
quem é do Sertão e quem é do Agreste. Os ‘da
rua’, como são chamados pelos ‘sertanejos’,
na verdade, estão demonstrando a sua rejeição contra aqueles que chegam e
ameaçam os seus empregos.
Nos últimos anos as
tensões têm se renovado e assumido novos contornos. O fato é que a região
canavieira vive uma reestruturação profunda nas últimas décadas. As relações
entre capital e trabalho, especialmente, foram alteradas. Novos modelos de
gestão e de controle do trabalho foram impostos, gerando dor e sofrimento para
os trabalhadores canavieiros e taxas de mais-valia ainda mais agressivas em
benefício das usinas. Tais alterações acirraram as lutas de classes, realidade que
fica evidenciada com as recentes greves e protestos no universo canavieiro
alagoano, mas também acirra os ânimos entre trabalhadores da região canavieira
e migrantes. Assim, o tradicional sentido estratégico utilizado pelo capital
açucareiro ao buscar o trabalho migrante, garantir a plena ocupação das vagas
de trabalho no período da safra, tem gerado insatisfação nos trabalhadores da
região canavieira que vêm os seus postos de trabalho ameaçados, reduzidos.
A fama de bons trabalhador representa a
grande vantagem do ‘sertanejo’ em
relação aos ‘da rua’. Some-se a isto,
o fato de que ele busca no corte da cana auferir alguma renda suplementar,
fazer uma poupança que servirá como seguro a ser investido na melhoria de sua reprodução.
O
migrante é um corpo estranho na realidade que o recebe. Embora Geraldo Hasse, no
artigo “Meus caros pais”: uma trajetória migrante sentencie
que “para se fixar num território novo, ainda que temporariamente, o migrante
precisa manter uma boa relação com o meio ambiente, nele incluídos os humanos
já estabelecidos”, não é isso o que tem acontecido. As relações de convivência
são difíceis. Na raiz das tensões está o fato de que a presença do migrante,
utilizando novamente uma expressão de Hasse, “quebra o status quo do lugar onde se insere”.
O
“sertanejo”, como um de ‘fora’, como
um estranho nas terras dos outros, sente o olhar de preconceito e de
discriminação contra si contra a sua região, ressente-se principalmente porque
sabe que é visto como um desgarrado da sua região, da sua gente e da sua
família, mas, é principalmente a sua condição de concorrente no mundo do
trabalho, que faz com que seja visto como um intruso, uma ameaça, despertando o
olhar hostil dos demais trabalhadores canavieiros.
As
representações produzidas pelos trabalhadores ‘da rua’ e pelos patrões constituem identidades distorcidas do ‘sertanejo’. Ser ‘sertanejo’ é a sua “imperfeição original”, em seguida lhes são
imputados imperfeições e atributos que o descaracterizam como ser humano comum,
diverso, dinâmico. Ser ‘sertanejo’
ganha fortes contornos negativos, configurando-se como um estigma, seguindo o
entendimento de Erving Goffman, e confirma a tese de que ninguém migra
impunemente. De um lado, ele aparece como desprovido de autoestima e de
consciência de classe, haja vista que, segundo os trabalhadores “da rua”, tolera os abusos extremos dos
patrões; do outro, na perspectiva dos patrões, ele é máquina, dócil, pois além
de cumprir as rigorosas metas de produção, convive com condições de trabalho e
de alojamento que lhes são hostis.
Por sua vez, o ‘sertanejo’, camponês que migra para a
região canavieira, tem uma condição que os ‘da
rua’ geralmente não conhecem. Ele tem uma atividade de auto-reprodução, o
que inclui um pedaço de terra, uma casa própria e algum gado, por isso, não
raro, lançam um olhar superior, enxergam os “da
rua’ como trabalhadores em condições de inferioridade financeira e patrimonial.
Os ‘da rua’, muitas vezes, sequer têm
um lugar próprio para morar, vivem de aluguel nos povoados, vilas ou mesmo nas
periferias da cidade. Enquanto isso, o camponês move-se em função de um projeto
de manutenção e/ou de aprimoramento do patrimônio que possui, o que o faz,
consequentemente, um sujeito com mais autonomia.
Uma
das razões dos conflitos entre os ‘da rua’
e os ‘sertanejos’ nos últimos
anos tem sido a não adesão dos mesmos nos movimentos grevistas ocorridos na
região. Só em 2010 foram registradas 14 greves de canavieiros em Alagoas. O
motivo principal foi a adoção do contrato safrista, expediente implementado por
17 das 24 usinas. O contrato safrista, diferentemente do contrato por tempo
indeterminado, isenta a usina da multa rescisória de 40% ao final da safra.
Apesar de ter amparo legal, o contrato foi repudiado pelos trabalhadores que
são por ele impedidos de, após duas safras, terem direito ao seguro desemprego.
Diante
da pressão, na safra 2011, apenas a Usina Coruripe, localizada no município de
mesmo nome, manteve o regime de contrato safrista. No contrato safrista o
trabalhador tem direito apenas a FGTS, 13º e férias proporcionais, enquanto no
contrato por tempo indeterminado, estão incluídos também o seguro desemprego,
40% sobre o FGTS e aviso prévio.
Reiteradamente
os ‘sertanejos’ foram indiferentes às
lutas por melhores salários e por melhores condições de trabalho na atividade
canavieira. Este ano, excepcionalmente, na usina Guaxuma, localizada no
município de Coruripe, eclodiu uma greve de ‘sertanejos’-canavieiros. Em defesa da validade da migração como
estratégia de reprodução da sua condição campesina, os ‘sertanejos’ rebelaram-se: enfrentaram o contrato safrista. Esta
não foi, como já vimos, a única greve contra o contrato, os ‘da rua’ já vinham enfrentando tal
imposição das usinas, mas, por ter sido desencadeada, liderada e conduzida
unicamente por ‘sertanejos’ – os ‘da rua’ foram indiferentes a esta greve
-, ela tem significados particulares.
Enfins
O camponês do Semiárido
alagoano não tem como viver apenas da produção que realiza na sua terra, ela é
insuficiente e precisa ser complementada com outras rendas. Migrar é preciso.
A venda de dias de
trabalho para um grande proprietário da região ou mesmo a realização de
trabalhos como pedreiro, marceneiro ou outros, também não garante a sua e a
sobrevivência da sua família. O fato é que ao mergulhar no mundo canavieiro, o
migrante tem rompido, temporariamente, a sua condição de camponês, é
precarizado. Sua força de trabalho ajuda a indústria canavieira a existir e a
prosperar. Paradoxalmente, a indústria canavieira, assim como a construção
civil, por exemplo, são importantes para a manutenção de milhares de pequenas
propriedades agrícolas no Semiárido alagoano e de todo o Nordeste. Essa relação
de complementaridade é perversa, pois acontece em condições desiguais. As
transformações ocorridas na dinâmica de produção canavieira têm agravado ainda
mais as condições de vida dos migrantes e do conjunto dos trabalhadores
canavieiros. Metas cada vez mais rigorosas de produção têm feito crescer o número
de mortes por exaustão e adoecimentos diversos acometem os canavieiros
submetidos a ritmos de trabalho cada vez mais intensos.
Esse é um tema que
merece ser desenvolvido num novo trabalho.
A realidade de
Alagoas é rica em desafios. Conhecer melhor essa realidade é uma tarefa posta
para as ciências sociais. Estranho é que em Alagoas poucos são os pesquisadores
dedicados ao estudo de temas concretos da vida do nosso povo.
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