Um pequeno bilhete sobre Eugênio de Araújo
Sales
Morreu um homem a quem devo possivelmente a vida e que foi vital na montagem da minha
cabeça. Jamais deixei de seguir sua orientação e todas as posições que ocupei
na vida política foram detidamente estudadas com ele dentro de uma estratégia
de vida da Igreja. Faz tempo, publiquei um texto sobre nosso relacionamento e a
vida da Igreja, na Revista de Estudos Avançados da USP. Eu nada disse a ele;
quem falou foi o Élio Gaspari que é um amigo comum.
Ele morreu e faz tempo que acompanho a sua
agonia. Acabou a maior referência pública de minha vida e o acompanhei desde o
tempo em que era Bispo Auxiliar da Diocese de Natal aos tempos de Cardeal no
Rio de Janeiro. Sei de muitas de suas
histórias e o acompanhei na estratégia política embora às vezes com
discordâncias acentuadas. Muito do que
sei, morre agora com ele e somente a ele competiria falar. A última carta que
mandei para ele foi em resposta a uma que me enviou ao ler este artigo. Nela eu
disse mais ou menos o seguinte: “Vou lhe dar um conselho; mande organizar tudo
que revele quem efetivamente você foi. Sempre que se falar na esquerda
católica, terão de falar na experiência de Natal!”.
Um abraço meu amigo e obrigado.
Sávio de Almeida
Luiz Sávio de Almeida foi integrante do
Setor de Sindicalização Rural do Serviço de Assistência Rural da Diocese de
Natal, da Equipe de Politização Movimento de Educação de Base (Natal) e da Equipe Paulo Freire,
Secretaria de Educação do Rio Grande do Norte.
Caderneta de lembranças: Eugênio de Araújo Sales
Luiz Sávio de Almeida
NÃO GOSTO MUITO da palavra memória; prefiro
lembrança, coisa bem mais simples, ligada ao comum do dia a dia. Todo mundo tem
lembrança; raros os que dizem memória. É assim que me lembro da viagem, saindo
do Colégio XV de Novembro em Garanhuns no qual era interno e rumando para
Natal, rua Felipe Camarão, local em que meus pais estavam morando, após termos
vivido em Palmares, mata pernambucana por onde passa o Rio Una, sujo e
fedorento de tiborna da Usina. Meu pai era andejo: funcionário do Banco do
Brasil. Nossa vida sempre foi uma permanente mudança: a gente nunca tomava
banho duas vezes no mesmo rio, embora não houvesse rio apenas em uma cidade em
que moramos: Bicas, cheia de café nas Minas Gerais, quase um bairro de Juiz de
Fora.
Rebolei na estrada, cheguei novamente sem
amizades. Tratei da matrícula no Marista: terceiro ano de Colégio e no ponto de
fazer vestibular. De leitura, na realidade, havia decorado O que sabe você
sobre o Petróleo somente para atentar a alma dos missionários
norte-americanos que ensinavam no XV de Novembro: presbiteriano. Passei filando
em matemática; havia um gênio, Quincas. Ele resolvia os problemas em um talão
de jogo de bicho e distribuía as folhas. Então, terminei o colegial, com quadro
de formatura e tudo mais. Fazer vestibular... Danei-me a estudar para Medicina
mas desisti, faltando três meses para a prova. Fui fazer Direito: decorei
Cícero e Ovídio na ordem direta e na indireta e passei.
Foi nessa oportunidade, que fiz amizade com um
cara chamado Marcos Guerra; era de uma família muito ligada à Igreja. Eu vivia
da mesada de meu pai. A Emissora de Educação Rural — pertencia à
Arquidiocese — abriu um curso para locutor e fui fazer. Levei cacete na locução
esportiva; não tinha velocidade para acompanhar a bola; era um desastre. Marcos
Guerra conseguiu um emprego para mim na Caritas Diocesana e, então, começou a
minha vinculação mais direta com a Igreja de Natal. Apesar da grande amizade
que nos uniu, o gringo jamais andou satisfeito com o meu trabalho e isso com
toda a razão. Por outro lado, eu não conseguia ficar datilografando e Michael
deve ter pensado em me despedir, mas não tinha como burlar a amizade.
Vai que apareceu uma oportunidade: ir trabalhar
no Serviço de Assistência Rural, uma ONG (como se diria hoje) ligada à
Arquidiocese e dirigida por D. Eugênio de Araújo Salles que era — parece-me —
bispo auxiliar. É isso mesmo: D. Marcolino ainda estava vivo, morando numa casa
lá perto da Catedral. Meu trabalho foi no Setor de Sindicalização do SAR, nome
um tanto quanto pomposo para uma pequena sala, um ventilador, um arquivo de aço
e duas pequenas mesas. Depois, fui trabalhar no Movimento de Educação de Base,
que operava com a rede de escolas radiofônicas montada pela Arquidiocese. Pouco
a pouco, as responsabilidades cresceram e, vez em quando, viajava para um ou
outro lugar, em função de encontros ou algum tipo qualquer de assessoria
até mesmo em outra Diocese. Era coisa de homem feito, posta em cima de menino,
a demonstrar quanto a política daquele período pressionou a nossa geração,
obrigando a que se construísse, urgentemente, toda uma ordem de experiência.
Duas palavras andaram em jogo nesse tempo. A
primeira era politização e teve imenso prestígio; depois é que entra
conscientização. Elas deram o compasso às discussões internas sobre educação.
Não sei se tenho razão, mas educação de base, politização e conscientização
indicam tempos no movimento, com a última revelando, inclusive, a crescente
importância de Paulo Freire a partir de sua experiência no Recife. Foram
momentos rápidos e sutis, mas tive a oportunidade de vivê-los. Dar nome aos
tempos, parece eqüivaler a um esforço de colocar a vida em prateleiras mas, se
por um lado pega mal, ajuda a organizar as lembranças.
Pois bem, a minha entrada no SAR levou-me a uma
convivência de perto com a Juventude Universitária Católica e com os primórdios
da Ação Popular que nasceu visceralmente ligada à JUC. Os quadros iniciais da
AP no Rio Grande do Norte, por exemplo, eram basicamente JUC. Eram de grande
peso uma revista publicada em Minas Gerais (se não me engano, coordenada pelo
Betinho), um livro publicado pela UNE e que parece se intitulava Cristianismo
hoje, além de um filósofo jesuíta chamado Henrique de Lima Vaz que
trabalhava dois temas básicos: consciência histórica e, por extensão, o
engajamento cristão.
Para a JUC, dentre outros pontos, a AP
significava liberdade para agir, pois como organização do laicato mantinha
vínculos com a autoridade episcopal e se estrangulava politicamente, à medida
em que avançava proposições e alianças indo até os comunistas, velhos fantasmas
para a hierarquia. Lembro-me, que certa feita, quando se discutia o local para
um encontro nacional, a opção foi Aracaju e isso significa que D. Távora,
apesar dos pesares, era uma das poucas portas. Foi nesse encontro em Sergipe
que conheci o padre Vaz, pessoa erudita e amável, com quem cheguei a manter
correspondência, pedindo orientação para leituras.
Era Natal, o que se poderia considerar como
pólo das atividades sociais da Igreja no Nordeste. Isso, apesar de o bispo ser
conservador, mas trabalhava em face de sua percepção da Doutrina Social da
Igreja: uma terceira via que poderia ter desvios à direita, mas jamais à
esquerda, justamente, pelo perigo de encontrar-se com o comunismo.
Recentemente, ao examinar uma dissertação, é que entendi a profundidade da
construção anticomunista pela hierarquia católica. Esse homem teve uma
extraordinária influência em minha vida e ainda dedico-lhe, apesar do
afastamento, um grande carinho. Não posso negar que parte do meu modo de ser
foi forjado em nossa convivência. Foi uma convivência de conflitos, em razão de
posições políticas, mas isso jamais abalou as relações pessoais. Minha cabeça é
muito devedora da obstinação, da dedicação que aprendi ao trabalhar com ele.
Teoricamente, a minha cabeça era a mais
perfeita e brutal confusão. Lia e relia os textos da Doutrina Social da Igreja;
saía de Martitain, entrava por Chardin, investia em Mounier, mas tinha um namoro
furtivo com Marx que aumentava na medida que me relacionava com a AP. Lia o
ISEB como se estivesse diante da mais potente demonstração da inteligência.
Brigava com os comunistas, somava com eles, estudava direito e, pouco a pouco,
no meio de toda a confusão, foram aumentando as minhas responsabilidades no
SAR.
Houve uma eleição para o Diretório Central dos
Estudantes. Não me lembro se entrei na chapa; somente sei que o candidato a
presidente era o Ginani (hoje médico em Brasília) e que fiquei como diretor de
Cultura. Conversamos, arranjaram passagem e fui para o Recife com a missão de
marcar a ida de Paulo Freyre a Natal. A chapa eleita havia sido uma composição
entre JUC (nem todos de JUC eram de AP), AP, PCB e os que eram considerados
independentes.
A antiga Reitoria da UFPE era no parque Treze
de Maio (será esse o nome?). Eu tinha alguns assuntos pessoais a resolver: fui
saber se poderia me inscrever para o concurso do Instituto Rio Branco; disseram
que não tinha idade. Fui procurar inscrever-me em algum daqueles cursos
(conhecidos na época como cursinhos Wallita) da Sudene: também disseram que eu
não tinha idade. Devidamente esclarecido de que deveria ficar velho, fui
procurar o Paulo Freire no Departamento de Extensão Cultural.
Fui muito bem recebido e acertamos a sua ida;
mais ou menos meio-dia, deu-me uma carona, num fusca velho. Lembro do papo no
caminho. Ele me disse que tudo havia começado a partir de um filho seu e da
televisão. O menino passava com ele por uma rua, viu uma propaganda e gritou:
"Olha papai, Nescau!" Disse o Paulo Freire que se convenceu da força
da imagem. Hoje em dia, acredito que existiram, pelo menos, três Paulos. Um
primeiro ainda preocupado com problemas tipo economia da educação; o segundo à
procura de caminho e, finalmente, o Paulo Freire depois de 1964, quando entra
em maturidade, gerando a obra que se registrou na educação internacional. Nessa
época em que procurei manter o contato, eu ainda trabalhava no Serviço
Assistência Rural com D. Eugênio.
Em determinada época, tivemos um problema
sério, pois eu havia sido convidado — e aceitei — para falar em um Congresso
Nacional de Trabalhadores Rurais. A Diocese era contra. O argumento de D.
Eugênio era que eu fazia parte de uma equipe e somente poderia falar o que o
grupo pensava. De certa forma ele tinha razão, pois o que eu dissesse seria
implicado com o trabalho. Insisti, que o convite era pessoal e terminamos por
concordar que eu deixaria de trabalhar com ele, tudo numa boa. Mas, acredito,
ele estava altamente preocupado, pois eu conhecia, como a palma de minha mão,
grande parte das malhas da Igreja no Rio Grande do Norte.
O discurso que pronunciei foi altamente inflamado.
Falava da força da história, da revolução que deveria ser feita, da importância
da ligação entre operários e camponeses e estudantes na condução da revolução
brasileira. Todo o lugar comum apareceu e a vitória sempre esteve falando alto.
Aquilo era a febre da vitória, algo insofismável, automático, quase dois e dois
são quatro, no modo de somar fatores políticos, de ver o futuro e de lançar a
burguesia no caos de seu próprio enxofre. Pintei e bordei e cheguei a ser
veladamente ameaçado de morte por um deputado federal que foi bisbilhotar o
Congresso: "Se fosse na minha terra, eu dava um jeito em você!"
Não posso dizer que o trabalho de
sindicalização rural somente havia sido realizado no Rio Grande do Norte, em
face da contenção do avanço das Ligas Camponesas. Isso eqüivaleria a uma
redução imensa do quadro político, mas havia, sem dúvida alguma, o componente
contra elas. As Ligas Camponesas não deixavam de ser uma preocupação direta da
Igreja. Estava sendo vivenciado um tempo em que o Nordeste foi transformado em barril
de pólvora. A organização rural pelos comunistas no Rio Grande do Norte
jamais foi forte. Isso não se deve, tão somente, à incapacidade que o Partido
tinha em deixar de ser urbano; somavam-se a ela, sobretudo, as dificuldades de
nucleação do trabalhador rural e, ainda, o avanço que a Igreja havia tido por
meio das escolas radiofônicas do Movimento de Educação de Base e de seu
prestígio secular na sociedade brasileira.
Pelo que entendo, essa sindicalização rural
tinha dois matizes: antiliga e continuidade a longo prazo do trabalho social da
Igreja. Eu não concordava com o antiliga; achava que ocupava um espaço que os
sindicatos não podiam ocupar e que ambos eram necessários. Mas jamais tive
qualquer aproximação com elas, mesmo pelo fato de que não chegaram sequer à
fronteira do Rio Grande do Norte com a Paraíba. Somente fui fazer uma
reportagem no caso de Sapé e no da Usina Estreliana: Paraíba e Pernambuco,
respectivamente.
A Emissora de Educação Rural era a mola mestra
de todo o trabalho da Arquidiocese. Não havia qualquer outra ligação de massa e
politicamente organizada dentro da estrutura da Igreja. A Arquidiocese dispunha
de um jornal de pouca penetração (A Ordem) e da emissora; em torno de
1/3 de sua programação era centrada no meio rural, pois além das aulas, as
escolas funcionavam como nucleação local, mediante monitores, e a audiência era
cativa. Foi dessa rede que nasceu a liderança-chave da sindicalização rural e,
portanto, ela não deixava de ter um tom paroquial, elemento que D. Eugênio
sempre cultivou. Talvez, daí, as reuniões freqüentes com o clero e dentre uma
imensidão de pontos, o trabalho do Serviço de Assistência Rural paroquiava-se
coordenadamente em todo o território da Diocese de Natal.
Sempre achei que D. Eugênio era o vigário de
Acari, por onde, penso, começou sua vida sacerdotal. Daí, a Diocese era a
paróquia, da qual ele era vigário e da qual gostava de ver tudo organizado:
livro de tombo escrito direitinho, Matriz limpa, capelas sólidas e, à sua
maneira, intrincada no cotidiano para o qual havia uma ordenação: Doutrina
Social da Igreja. Era um vigário lido, mas sobretudo executivo, dando um forte
acento à disciplina. O próprio carro chefe da Diocese tinha essa marca e era
rural. A pergunta não é tola: qual a razão de não ser Serviço de Assistência
Urbana? Era o vigário pensando no desenvolvimento, recebendo a herança do Serviço
Social Rural, dos Clubes 4-S e por aí vai.
Caso a lembrança não seja troncha, a Igreja
incorporara a sindicalização rural no Rio Grande do Norte, por meio da
experiência de um setor específico que funcionava no Serviço Social da
Indústria. Quando começou a operacionalizar a programação, encontrou o lastro
plantado pela rede de escolas radiofônicas espalhadas. Depois, esse modelo foi
sendo exportado para outras dioceses. Foi nessa sindicalização rural que
começei a trabalhar, tendo passado antes pelo escritório da Caritas, onde minha
função era apenas burocrática e tão escandalosamente desempenhada, que sempre
senti a possibilidade de perder o emprego a cada minuto.
É claro que essa Igreja não poderia ser
homogênea; havia conflito de toda a ordem, destacando-se a JUC. Era o que havia
de mais avançado dentro da Ação Católica, o que se devia, talvez, à exposição
de todos na vida universitária, densa de discussão e conflito que
caracterizavam aquelas quadras de vida nordestina. Dentro do próprio Serviço de
Assistência Rural existiam grupos e era extremamente difícil não haver choque.
O que era escrito era facilmente controlável e, então, o que saia pela rádio
também; mas era impossível controlar o que se dizia lá no campo, nas fazendas,
nas casas de candeeiro aceso. Daí, alguns autores que estudaram o Serviço de
Assistência Rural chegarem à conclusão de uma confusão teórica e de maior nível
de coerência na ação. Quando o documento se destinava a algum encontro meio perigoso
tinha que se pagar o preço de querer fazer o "batismo de Marx" — como
diz um professor daqui da UFAL — na Sé da Doutrina Social da Igreja.
Acho que o grande problema político de D.
Eugênio poderia ser personificado em Djalma Maranhão, irmão de Luiz Inácio
Maranhão Filho, figura de destaque no PCB. Ele havia sido eleito para a
Prefeitura de Natal e passou a desenvolver um trabalho de educação que mexia
com a Igreja, face ao volume de massa que tomava: de pé no chão também se
aprende a ler, com o qual colaborei de modo muito acidental e discreto.
Apenas lembro que dei umas duas aulas em um treinamento.
Era um trabalho importante de inovação e
dirigido pelo Moacir de Góes, migrante depois para o Rio de Janeiro, onde
esteve, posteriormente, com o PSB. Um dos dirigentes desse trabalho era meu
amigo íntimo; figura ainda muito querida — o mencionado Josemar — que me parece
tinha ligações próximas ao PCB. Soube que eu havia deixado a Arquidiocese e me
fez uma proposta: Djalma estaria interessado em entrar com ações no meio rural.
Não sei se ele politicamente inventou e nem sei se realmente o recado teria
vindo da Prefeitura: o fato é que eu disse não e a negativa circulou,
não sei como, na certa devo ter comentado com outras pessoas.
Realmente, aceitar o convite seria uma brutal
traição. D. Eugênio mandou alguém me telefonar marcando um encontro: ele
realizou-se numa sala em que recebia visitas. Começou a falar e a falar e
depois me agradeceu. Aí, foi outro problema, pois eu perguntei a ele se podia
passar por sua cabeça que eu me comportaria como traidor. Depois de ter
recebido tanta confiança, entregar ou ameaçar os esquemas seria
moralmente trágico. Aliás, a proposta que D. Eugênio fez era singular:
continuar trabalhando na Arquidiocese, mas sem nenhum contato com o público.
Sabidamente, esteve querendo uma forma de me guardar. Eu disse que não se
preocupasse; estava sendo dada minha palavra de que em nada comprometeria a
Diocese. Disse, também, que havia aceito convite e iria trabalhar no grupo do
Paulo Freire.
Jamais os desencontros perturbaram a minha
amizade; eu gostava do cara e ainda hoje gosto. Podia não concordar com ele,
mas era gente muito fina comigo. Outros podem pensar diferente, mas, como dizia
a Madre Superiora, experiência pessoal é intransferível. Terminado esse
encontro, durante o qual ele mandou servir formalmente um cafezinho, a amizade
prosseguiu e, quase todo fim de semana, eu ia para a praia de Ponta Negra onde
ficava o Centro de Treinamento da Diocese. Dormia em um quarto em frente ao
seu. Vez em quando, eu pegava uma rede e roncava na varanda. Certa feita, após
o boa noite de fim de jantar, nos encontramos por acaso. Ele me disse que havia
sido convidado para a Bahia. Raramente nos vimos, desde quando ele foi para a
Bahia, quando o vigário de Acari tornou-se cardeal.
Calazans Fernandes era insinuante, hábil.
Aluísio Alves vinha de uma vitória sobre Dinarte Mariz. Corria que fizeram —
Aluísio e Calazans — um projeto: vender o Rio Grande do Norte aos
norte-americanos, mostrando que a miséria era recuperável dentro do barril de
pólvora. Cuba deveria estar fumegando por aí. Nunca tive o menor contato com
Aluísio e nem maiores aproximações com o Calazans Fernandes, apesar de achá-lo
simpático, agradável, boa prosa. Faz tempo que não vejo Calazans; a última vez,
estava dirigindo um projeto na Editora Abril. Realmente não sei como tudo se
processou. Sei apenas que foi criada uma estrutura paralela à Secretaria de
Educação e, dentro dela, começou a funcionar o pessoal do método.
Marcos |
O amigo que me havia procurado era Marcos
Guerra e, caso eu lembre direitinho, era presidente da UEE. Conversamos, e
acredito que foi em sua casa onde quase todas as noite estudávamos até tarde da
noite. Discutimos as dificuldades e as perdas políticas que a montagem de uma
equipe para a implantação do método geraria. Tratava-se de uma operação que,
diziam, era financiada pela Usaid e os ecos do CPC da UNE eram fortes: o
imperialismo. Ainda hoje não percebo quais foram as razões de a Usaid ter
entrado na parada; na certa, não faria de bobeira; possivelmente, seus maiores
investimentos estavam no Nordeste onde, quem sabe, o imaginário norte-americano
da era Kennedy pensava a possibilidade de uma nova Cuba sem a Sierra Maestra
mas com o açúcar.
Calazans |
Djalma |
A idéia da mobilização popular que poderia ser
feita era fantástica; pensei que valeria comprar qualquer problema e não era
uma oportunidade a ser perdida. Acho que o Marcos pensava o mesmo. Disse-lhe
que trabalharia com ele e não participei da experiência pioneira de Angicos
(terra de Aluísio Alves), mas, depois da saída da Diocese, entrei a todo o
vapor. Depois de Angicos, o trabalho ganhou campo e, realmente, estourou a
alfabetização em diversos pontos do Rio Grande do Norte. Posso afirmar isso
tranqüilamente, pois fizemos levantamentos: a alfabetização era realizada em
menos de 40 horas; era bonito ver as pessoas desarnarem as letras, construírem
as palavras. Eu me encarregava de trabalhar as questões políticas que poderiam
ser discutidas com as palavras-chave; montava uma espécie de referência a ser
utilizada pelo monitor, se é que estou dizendo o nome certo.
Fiz questão de escrever essas lembranças, sem
consultar a nada ou a qualquer pessoa. Eu as desejo brutas. É por isso que fico
dizendo o tempo todo: se eu não estou enganado, é possível... Pois bem, parece
que existia, institucionalizado ou não, um tal pacto operário-estudantil-camponês.
Ele se declarava contra a experiência e lançava um decreto: quem trabalhasse
com a Usaid era vendido ao imperialismo ianque. Marcos Guerra deixou a UEE. O
estigma foi lançado pelo Partidão e por setores mais à esquerda da AP.
Falar da AP, como estou fazendo, dá a
imprecisão de que vivíamos uma organização. Não era assim. Sem dúvida, havia um
grupo, mas sem grandes formalizações, composto, sobretudo, de pessoas da JUC.
Arrisco-me a dizer que a AP era mais objeto de nossa invenção do que
propriamente de revolução: o carro chefe do que poderia ser chamado de esquerda
era, ainda, a JUC, com a qual eu tinha ligações, embora não pertencesse e
pertencesse ao mesmo tempo, o que parece uma contradição mas perfeitamente
cabível àquela época. Aliás, parte do clero me gozava, chamando-me de ateu
clerical e eu bem que merecia.
Todo esse besteirol começou a me chatear e hoje
eu penso que jamais tive uma consciência, digamos assim, revolucionária,
militante, combatente. Por bom tempo acompanhei a alfabetização pelo estado,
mas guardo especial lembrança — não sei a razão — dos trabalhos em Mossoró;
quando penso no MEB, a lembrança leva de imediato para Ceará-Mirim e também não
sei a razão. Bom, o fato é que qualquer coisa me levaria a sair; eu andava, sem
saber, procurando um pretexto; qualquer um era suficiente e apareceram dois: a
vontade de casar e um boato. Disseram que um camarada da AP andava falando que
eu era vendido ao imperialismo ianque. Isso era um pesado desaforo. Eu, que
precisava de uma gota, tinha duas e decidi sair. Meu pai, que morria de medo do
que eu andava fazendo exultou e mergulhei em direção a Maceió. Durante um bom
tempo, fiquei na moita; depois, estava pondo as mangas de fora.
Um dia ouvi, pelo rádio, o que se falava sobre
o comício da Central. Tive a sensação de que alguma coisa em breve iria
acontecer. Nesse contexto, tive dois lances de sorte: o primeiro foi não ter
ido para Sergipe participar da montagem da experiência de alfabetização
acompanhando a mesma equipe com que trabalhava em Maceió; o segundo foi não ter
aceito ir para Brasília na montagem do Ano da Alfabetização do Governo Jango.
Quando se deu o estouro, o pessoal voltou para Natal e foi preso na estrada:
Caruaru. Eu nunca entendi direito o lance dessa prisão. Já havia decidido ficar
em Maceió e o negócio era ganhar dinheiro e casar; por isso, não aceitei sair.
Em Natal, meu pai queimou o que eu tinha; minha
mãe vivia impressionada com umas espingardas debaixo de minha cama. Passava
caminhão de soldados pela rua, ela quase batia as botas e um dia, coitada, um
deles inventou de quebrar na porta lá de casa. Segundo me disseram, boatos
circularam: eu havia sido preso, eu havia sido morto numa guerrilha no
Paraná... Eu estava morrendo, mas era de medo. Sabia que muitos de meus amigos
haviam sido presos e então liguei para um irmão de D. Eugênio: ele deveria
perguntar se eu poderia ir para Natal. Ney telefona e me diz para encontrá-lo
no aeroporto do Recife. Chegou, conversamos, eu estava sendo aconselhado a não
botar a cabeça de fora pelo menos durante uns seis meses; mesmo depois da
quarentena, se eu desejasse ir a Natal, deveria consultar primeiro. D. Eugênio
havia conversado com o general Murici e havia assumido a responsabilidade
comigo (minto, eu soube disso por ele depois). Foi extremamente generoso, pois
era impossível que não soubesse do que andava acontecendo, do que andei
fazendo.
Mesmo antes de tudo isso, eu sempre argumentava
que D. Eugênio não era aquele direitista de quem se falava. Comigo,
pessoalmente, sempre foi um homem aberto e leal. Sei que isso não é argumento
político, mas vejamos o seguinte: eu fui um de muitos que foi salvo da cadeia
por ele; sei de casos contados por ele, inclusive na presença de um de meus
irmãos, que é o Marco Antônio (Fullbright-BSB) quando estivemos com ele,
certa feita, em Salvador. Nunca conversei demoradamente com D. Eugênio sobre
1964 e não sei efetivamente o que ele pensava. Admito que aceitou 1964 como
marco contra o comunismo. Tenho certeza apenas de um fato: jamais, em tempo
algum, concordaria com tortura, deboche contra as pessoas, ilegalidades. Ele
não pode ser considerado como um homem de 1964; ao contrário, acredito que 1964
o tomou em suas malhas, quando o vento soprava a invenção do diabo comunista
sobre a Igreja.
Alguns interesses dentro da Igreja desejaram
lançá-lo contra D. Helder. Eram amigos e se respeitavam, cada qual no seu cada
qual. Disso D. Eugênio deu provas quando a pressão contra D. Helder estava a
todo vapor no Recife. Aliás, quando do recente falecimento de D. Helder, ele
esteve no Recife e celebrou missa. Lembro de algo que me disse certa feita e
parece que em Salvador: havia conquistado uma posição e dela poderia fazer
muita coisa. Jamais gostaria de deixar uma falsa impressão no seio dessas
lembranças. Não estou dizendo que D. Eugênio era um homem infalível; pelo
contrário, errava muito — no meu modo de ver as coisas — mas errava com reta
intenção e isso é raro, extremamente raro. Pode parecer um moralismo
pequeno-burguês; talvez seja. E o que sou?
Sei apenas que, apesar das discordâncias
radicais, lhe quero bem e é uma das poucas pessoas que, nesse olhar para o que
se foi, recupera esse carinho pessoal, essa coisa que a gente tem por quem
gosta. Jamais a discordância colocou de lado este fato: gosto dele. Concordar,
são outros quinhentos.
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