Esta matéria foi publicada em Campus, suplemento de O Dia, Maceió
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BARES TRADICIONAIS DE ALAGOAS (I) – O BAR DA PATA
Luiz Sávio de Almeida e José Almeida dos Santos
José
Almeida dos Santos foi aluno especial no Mestrado de Dinâmica do Espaço
Habitado da Universidade Federal de Alagoas, em disciplina que ensino sobre a
formação do espaço alagoano. Somamos o seu interesse acadêmico às minhas
memórias e decidimos começar uma série de entrevistas sobre o que chamamos de
bares tradicionais de Alagoas, em busca do que teria sustentado estabelecimentos
que terminaram como referência para a vida da cidade e, alguns, para o Estado.
Ele partiu
para a realização de entrevistas que forneceram copioso material. Pouco se tem de
estudos sobre a vida boêmia de Alagoas, salvo
alguns trechos de memórias. Na verdade, o assunto ainda não recebeu
dignidade acadêmica. Parte do que ele
coletou sobre o Bar da Pata, está divulgado neste número como homenagem a um
estabelecimento que recebeu a consagração pública pelo cotidiano da qualidade
de seus serviços. O material em sua versão completa será utilizado em artigo de
discussão acadêmica.
Campus
inaugura uma série de textos sobre os nossos bares tradicionais e sugere a seus
leitores que mantenham o que vem sendo consagrado por anos de persistência e de
excelência de serviços. Você lerá trechos de uma entrevista com Socorro (Maria
Socorro Alves Santos e uma fusão
da fala dela à de Osvolúsia (Osvolúsia de Andrade Pontes), além do início de um pequeno trecho nosso que
será continuado, sempre que apareça uma das matérias sobre os bares.
Alto do
Jacutinga, abril de 2014
Luiz Sávio
de Almeida
Quem é quem
José
Almeida dos Santos é natural
de Itabaiana – SE, Mestre em
Hospitalidade pela Universidade Anhembi Morumbi - São Paulo (2012), na linha de
pesquisa de Hospitalidade e Serviços em Organizações. É professor titular do
Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de Alagoas - IF/AL -, tem
graduação em Administração com Habilitação em Administração Hoteleira pela
Faculdade de Alagoas - FAL (2004), Especialização em Fundamentos Científicos e
Metodológicos em Docência e Pesquisa no Ensino Superior pela Faculdade de
Alagoas - FAL (2007), é Coordenador de Cerimonial e Eventos – IF/AL. Atuou no
segmento hoteleiro e restaurante, passando por 14 hotéis e 8 restaurantes. Dos
14 hotéis, em 9, atuou como gerente de A&B. Em Maceió atuou também como gerente
de Alimentos e Bebidas no Jatiúca, Ritz Lagoa, Meliá, e Restaurante Divina
Gula.
Uma fala em que as vozes se misturam
Somos Miguelenses.
Nascemos lá em São Miguel. Tudo começou por Osvolúsia e com produtos da kibom. E depois aconteceu de dizerem:
bote uma cervejinha, um lanche, um tira-gosto.
E um dia – a mãe dela sempre patas de caranguejo pra almoço que Osvolúsia
gostava –tinha um senhor tomando uma cerveja e a viu batendo as patinhas, quebrando. Mas que pancada é essa? A mãe dela falou: é
minha filha com as patinha que ela come pra almoço. Ai, dá
pra me arranjar algumas? Ela arranjou e ele gostou: a senhora compra amanhã que eu venho pra aqui
novamente. No dia seguinte ele foi e foi chegando outras pessoas vendo, pedindo
também e assim começou. Era na rua Saldanha da Gama, no Farol.
Socorro e Osvolúsia se encontraram em
Maceió Fazia tempo que se conheciam. Em 78, Osvolúsia chamou Socorro para ajudar no bar. O movimento era grande. Tinha menos bares aqui em Maceió. E ai Socorro
já ia pro mercado com ela, comprar as
patinhas e tal e a mãe da Osvolúsia já
tava meio um pouco mais cansada. E começaram a fazer o bar; era tão lindo que
ficou pequeno, passaram pra aqui.
Socorro trabalhou com ela por dois dois
anos, mas Osvolúsia tava meio cansada, fechou e Socorro colocou um outro bar, com o nome Cantinho da Pata na Jatiuca. Osvolúsia
passou a clientela toda. As mesmas
pessoas que têm até hoje: esses médicos, empresários e políticos e tal. Depois Socorro
também pensou que já não tava dando mais, e acertaram a voltar como sócias, em
1985, já nesse estabelecimento agora atual.
Osvolúsia fechou e voltou três anos
depois com Socorro e ficaram sócias até 2001, quando se aposentou e passou a
parte dela para Socorro que é a proprietária e Osvolúsia ficou, pois é dificíl sair daquilo que se ama.
Socorro mudou muita coisa: filé de siri, arroz de camarão, muitos pratos com camarão. Osvolúsia
trabalhava mais com a patinha, agulha e outras coisas. Hoje tem uma funcionária que trabalha a 21 anos, um
garçom que tem 28 anos....
Diz Socorro: “ Apesar de ter 63 anos e já estar aposentada, eu
tenho tanto amor ao bar e a clientela, tenho um orgulho tão grande e por essa
alegria, esse luxo que eles me dão, os clientes, que eu não tenho
coragem nem de parar”.
O bar tem 43 anos e é de maio de 1971,
maio. É, começou e botavam na porta
aquelas grades de cerveja que eram de madeira antigamente. E o pessoal sentava e fazia daquilo uma mesa.
Depois foram compradas duas mesinhas, ai
foi crescendo, crescendo e ficando com espaço pequeno.
Uma conversa
com Socorro
A importância da tradição.
Eu costumo dizer que o bar da pata não
tem beleza mas sim tradição. A pata é o principal: o prato da casa. É a patinha;
esse molho que nós temos, o pessoal da muita atenção. Pata de uça; é dela que você faz um caldinho. O guaiamum não
pode trabalhar assim, as pessoas não comem o guaiamum da forma que comem o uçá.
Já não temos mais em Alagoas. Já não temos mais; já vem de Sergipe. E a
quantidade não dá, que a gente vende 1.300 patinhas por semana, mas a gente não
ta nem recebendo isso, a gente só ta recebendo 900, no máximo mil. E o pessoal
vem e a gente não tem, e aquela coisa, ta viajando. Esse final de semana mesmo
não teve. Perdemos a sexta e o sábado.
As patinhas estão vindo de longe
Já temos 8 anos ou 10 que vem de lá, e
até porque se você for no Mercado da Produção de Maceió as patinhas são
pequenas, minúsculas, já não recebo nem as grandonas, as grandes. Se eu receber
1300 ai vem 400 grandes, o restante medias e algumas 350, 450 medias. Eu já até
discuto com o pessoal que a clientela não quer isso, quer coisa boa. A gente
congela cozidas.
O Mercado da Produção
A maior parte das coisas, a gente
compra no Mercado da Podução; tem que
ser. Nós temos muitos tira-gostos. Porque isso tudinho é tira-gosto. É filé de
agulha, peixes... tudo tem que ser no Mercado da Produção. Já tem as pessoas
certas; eu ligo, já deixam os meus peixes em postas, sururu, massunim... Agora
essa história, codorna, é... rolinha, as pessoas vai pegar lá e essa mulher
trás aqui em casa. É porque o pessoal exigia, pedia tudo fresquinho do dia.
Depois como faltava ai , começaram a dizer vocês precisam estocar, ai começou
esse negocio de congelamento, ai nós aderimos.
Uma
forma de atendimento
É o seguinte a gente não vem nem aqui
no salão, e somos às antigas, a gente não vem nem aqui, as pessoas diziam que é
um prazer quando a gente chega na mesa, mas sou meio tímida e ela também, mas
ai é o seguinte, mas eu tenho o prazer de ligar, eu ligo, não venho mas ligo.
Ah a senhora ta sendo tratada, aconteceu alguma coisa, um problema aqui com o
pessoal? Pessoas de primeira qualidade, o garçom negou uma cerveja no ato da
conta né? E eles sumiram ai. Um pessoal
sumiu, gente muito fina sabe...
Estavam aqui sábado, a esposa, a
família toda...
Ele deixa até whisky aqui, compra,
manda eu comprar... Aí vem mais dois medicos e a esposa, de 15 em 15 dias,
sábado. E depois de uma conta muito alta o garçom negou uma cerveja dizendo que
eu não ia gostar, eu não acredito, eu morro sabe...
Como é a história? Uma semana, duas,
três não vieram, imediatamente peguei o telefone, liguei pra ele, ele disse, ah
dona Socorro foi uma bobagem. Ele disse não, quero falar com sua esposa, óia pense
o que eu fiz? O garçom quer pedir desculpa, foi nem ele que disse, mas eu
disse, apareça aqui sábado, preparo um camarãozinho um negocio ai, voltaram, ói
só mesmo a gente, fizeram até questão de tirar uma foto com a gente e tal.
Tenho o telefone das pessoas, se eu
souber aniversário eu ligo, sabe? Ai qualquer coisa, novidade eu mando dizer e
essas coisinhas. Todos meus clientes são lindos, maravilhosos eu amo todos. De
estudante a governador que já veio, todos pra mim são clientes especiais
maravilhosos.
Horários de funcionamento
A gente só abre à tarde, de 15h até
23:30h. Não foi sempre assim; vou lhe
dizer porque mudou, talvez é até bom saber. Por causa do estacionamento que não
tem, perdi foi muito, perdi, perdemos 50% de vendas.
Abríamos às 11h da manhã e íamos até
mais tarde, dia de sexta você sabe que abre até mais tarde. Ai abríamos 11h, ai
passei de 11h pra 13h, onde é agora, não vou ta gastando minha energia comecei
abrir de 15h, sexta e sábado a gente abre as 10h da manhã.
Tem peixada aqui, terça e quarta, agora
estamos com esse camarão aqui da vó, típico das ostras.
São 2 garçons e 3 cozinheiras. Uma já
tem 21 anos, a outra tem mais ou menos uns 8 e tem outra mais finais de semana.
Até tem finais de semana que vem mais 2, uma é amiga minha e tem outra de
muitos anos funcionária, que já ta velhinha, aposentada, mas vem ajudar. Tem
dias de sábado que são assim 7 a 8 pessoas na cozinha e ainda não dá.
O segredo do bar
É, tradição pata, ai depois higiene,
iluminação, o pessoal fala demais nisso. Com um irmão seu, quando for montar um
bar, você diga assim, isso é experiência, vocês olhem um bar na higiene e na
iluminação. Porque se chegar um cabra com vontade de querer ser diferente com a
namorada tem que ta tudo bem iluminado, quando chegar um casalzinho diferente
que você sabe que só quer tomar uma cerveja pra ficar de chamego.
O cardápio considero um atrativo
ele. Propaganda é a alma do negócio. Uso
um banner. Se você não conhece e vem
pedir algo sem ver como é... O prato vem de acordo com a foto. Nossos pratos
são diferentes. Eu não faço almoço por
causa do que eu falei o horário. Peixada, pessoal pede muito, vendo muito.
Ah tem, o pessoal ama aqui, tem gente, muitos
que vem, eu vim pra cá por causa da musica, não dá pra ouvir por ai o som e
depois o estilo da musica...
Tem pessoas que dizem, ah não vou no
bar da pata porque tudo é mais caro.
Ai tem outra coisa, ah eu vou baixar
pra começar a ter mais cliente? Deus me livre! A minha clientela não se
incomoda; ói eu tenho 1.300 patas se tivesse 1.500 tudo grande vendia.
O serviço é simples. A gente deixa o
cliente a vontade. A gente conserva
aqui... por exemplo, você não vê mosca aqui, não tem. As mesas sempre
branquinhas. Banheiro é a história do bar. É banheiro, o povo tem pavor de
banheiro, você chega no banheiro, o banheiro tá sujo... Aqui é limpo, tem que
ser. As mulheres não tem que entrar no banheiro e levantar a calça porque é
tudo molhado.
Um pouco sobre a clientela
Minha
clientela é acima de 30 anos, a maioria. E a situação econômica do povo
é a classe média... Socorro – É, média, boa né?
A maioria profissionais liberais. É isso mesmo, tem muito médico, muito
engenheiro, muitos professores de faculdade. Você chega a encontrar uma turma
imensa, médicos, professores. Vem gente de diversos bairros e outros
municípios; nós temos clientes de Arapiraca, Palmeira, já conhece a gente de
muitos anos. Sempre aparece gente nova né.
Eles são fieis a gente, coisa mais
linda. Tem uns que dizem até assim, eu descobri que sou da idade do bar da
pata. Tem, estudantes, pessoas simples e direita, quando eu falei aquela
história que não dá pra ficar aqui, mas tem pessoas bem simples mesmo e bacanas
que são bons.
O que é um bar?
O bar primeiro é um local onde você
vai, você vem as vezes cansado, você vai desopilar, você vai relaxar, eu acho
que bar é isso. Pode chegar num bar, onde você sabe que aquele ambiente é meio
perturbado, ai você devia nem ir, porque você sai pra que? Tomar uma
cervejinha, comer alguma coisa que você gosta, então se você vai pra um
ambiente perturbador já não é pra você mais um bar, aquilo já viro uma
confusão. Eu acho que é um lazer, uma alegria, um lugar pra você comer bem, pra
você ir a um banheiro e ele esteja limpo.
Quero dizer que eu amo o bar da pata,
você só vence se você amar onde você trabalha, se você tiver uma execução que
você não gosta, faça aquilo com carinho, se você não crê em deus você não vai
vencer e quero agradecer agora aos alagoanos até aos nordestinos que aparecem
aqui no bar, pela presença deles e que continuem aqui, porque eu dou de todo o
meu coração, assim o meu trabalho junto com a Osvolúsia no nosso bar da pata e
fico muito feliz por todo mundo e fico contente porque agora assim está em
evidencia com esse livro que saiu, já veio você e a veja que fica ali em
exposição. E fico muito feliz
Osvalúsia
Ela vive e respira Bar da Pata. A gente
mora lá atrás; tem uma residência. Eu digo a ela, o pior dia é o dia de domingo
que fica um silêncio. A gente não abre nem domingo, nem segunda. Agora, hoje
melhora, porque a gente vê o movimento do carro e a gente sai pras compras,
tudo... mas no domingo é aquele silêncio, nós duas sozinhas.
Maceió: ruas, bares e boêmia (I)
Luiz Sávio de Almeida e José de Almeida
Santos
Maceió de dentro e de fora
Este texto é de natureza exploratória, em
nada se comprometendo com conclusões, com precisão conceptual e semelhantes
mementos científicos, deixando-se crescer ao longo do caminho de ruas e bares tradicionais existentes em Maceió e
associados à vida dita de boemia; o texto vai colocando questões, tentando fazer uma leitura exploratória sobre
Maceió, sobre a Orla, sobre o que poderia ser tratado como a Maceió-de-fora e
Maceió-de-dentro. Deseja navegar no tema, sem mesmo procurar saber onde chegar, deixando que observações
aflorem e favoreçam um diálogo com a circunstância e, assim, surgem bem mais perguntas em suas entrelinhas, do que
declarações ou mesmo respostas.
Vamos ser
favorecidos pelo instigante da hermenêutica que, para este mister passa perto
do século XIX com o tom schleiermacheriano necessariamente motivador com o intervalo entre o não
totalmente conhecido e nem desconhecido. Mas isto não nos leva a um aceite da
teoria, tomando-a, apenas, como motivadora do diálogo. Por tal rumo,
vamos nos acercar de uma sociologia histórica ou da rota de uma história antropológica, restando ver o que
acontece.
Parece-nos ser um momento fértil tomar ruas
e bares para discutir Maceió, a sua
aparente dualidade, como se estivéssemos diante de duas cidades diferenciadas
dentro da mesma área física: a de Maceió
e a de Orla. Ambas estão envolvidas pela
mesma aura do capital e, portanto, respondem no mesmo andamento da formação,
embora tenham características diferenciadas dentro do nosso urbano que se
multiplica em diversas condições. Fica
uma pergunta: aquilo que é somado,
necessariamente é integrado? Tempos diferentes poderão coexistir em um mesmo
local?
A razão da pergunta é simples, mas requer uma
discussão de como o urbano integra-se e consegue unidade sobre as diversidades
ou, em outras palavras, o que faz com que as diversas maceiós sejam Maceió? Uma
definição formal? A cidade constrói seu próprio entendimento do que seja ela
mesma? O que faz Maceió uma Maceió? Buscar isto em determinações do poder
institucional do tipo começa aqui e
termina ali? As fronteiras estabelecidas pela ordem legal? Determinar uma
Maceió pela existência de sinais por todos conhecidos? Pela significação de uma
paisagem? Talvez seja razoável procurar
o sentido de Maceió no partilhamento que pode existir dentro do complexo de
ligações de uma rede que se movimenta, articula-se e rearticula-se, crescendo e
decrescendo, indo além e aquém...
O melhor caminho seria considerar que existem
uma rede e um movimento, mas ficar por aqui, pouca instrumentação teríamos para
lidar com o misteriosamente denso que
deve ser Maceió, algo mágico, sem
dúvida, pois todos nos identificamos nela, sabemos que somos e estamos nela,
mas é fugidia, como se a cidade pudesse ser entendida como aquilo que nos foge
em determinações. Jamais a cidade
poderia deixar de ser um lugar, mas o
que é este lugar, será que somente ela daria conta de dizer? Será que daí não
decorre o fato de que ela se contém em sua própria indefinição? Quem sabe
abriríamos caminhos por entre linhas da rede e isto nos ajudaria a chegar perto
do máximo que nos permite de tentativa de definição?
A linha mais insinuante seria a economia
política urbana, com seu trato obrigatório sobre o poder, mas isso não daria
conta da tarefa de situar uma determinação espacial chamada Maceió. O que daria
então? Por onde andar na rede, escolhendo
um pouso nos pontos nodais, pontos de convergência? E quais seriam estes pontos de encontro
fundamentais? A cidade poderá ser definida como um campo de tensão, mas isto
pouco agrega ao conhecimento de sua especificidade. É no cotidiano que se
encontrará a grande expressão deste estado de tensão, retirando-se deste
cotidiano a noção de rotina para entendê-lo como a dinâmica da própria vida, na
sua forma usual de expressar os trânsitos que se verificam.
A ideia é que o cotidiano enlaça o coletivo,
que finaliza o processo histórico que se desenvolve e, também, que no aparente
trivial da vida, encontram-se elementos
capazes de levar à grandes explicações, entendidas como aquelas que produzem
análises sobre o todo do processo. Foi no cotidiano da vida, pondo em relevo o
operário, que Marx, por exemplo, construiu suas propostas políticas, ou seja,
as chamadas condições de vida – expressão usual–, têm a necessária
versatilidade para que se promova o entendimento sobre o processo histórico.
Aparentemente, o cotidiano banalizaria o que deve ser
trabalhado em face de que poderia ser minimizado como trato do corriqueiro – no
que se localiza uma falácia –, como se o
corriqueiro, o usual não fosse necessariamente expressão do todo, como se o
simples tivesse condições de elidir o complexo, o que seria uma imprestável
conclusão; o falacioso vestiria o falso
com verdade e os estragos que produziria na ordem teórica seriam danosos na
percepção do modo como a sociedade expressa a sua ordem de poder. Na realidade,
ou o cotidiano expressa o global ou não faz parte dele. Esta afirmativa que
parece de gosto formal e a bem dizer inerente a uma tábua de verdade, na realidade refere à cadeia de relações, da
rede que não se esgota, é bom deixar claro, numa organização sistêmica.
O cotidiano é o fluxo e o refluxo, ou seja, é
para onde tudo flui e de onde tudo reflui, seguindo um raciocínio derivado de
Lucaks. Se isto é verdadeiro, vamos considerá-lo como a finalização da rede ou
o concreto das formas políticas e, daí, a ligação entre poder e cotidiano ser
cabal. Então será possível dizer que o espaço é uma cotidianeidade ou, sem
maior comprometimento, que o cotidiano é a construção do espaço. Isto nos
permite, inclusive, vencer os danos da
dualidade que se poderia apresentar quando estivemos a propor uma Maceió de
dentro e uma Maceió de fora, como se a modernidade e a mudança pudessem ser
excluídas da relação entre ambas e como se tempos diferentes determinassem duas
condições mutuamente exclusivas.
E vamos a uma segunda natureza
A partir de Marx é possível pensar que a
segunda natureza é integrada e articulada; é possível também seguir para o fato
de que o espaço surge na medida em que se domina a natureza e neste domínio em
busca da reprodução, surgem as relações que jamais poderiam ser consideradas em
abstrato mas concretamente situadas em formas e práticas e eles são e estão no
cotidiano e na fundação da ideia de lugar. Há uma espécie de acusação ao
marxismo – e é bom ler Novelle na sua formação teórica das mentalidades –, de trabalhar com grandes variáveis
esquecendo-se do que seria comum e propalando apenas temas que seriam nobres
como revolução, estado, luta de classe. Sem dúvida, a questão vai ser
enriquecida por uma vertente do marxismo crítico inglês, com Thompson, que traz a history from bellow e a redução ao cotidiano leva com maior
facilidade a esta visão do por baixo das estruturas, indo além, por exemplo, do
formalismo em Godelier que, sem dúvida tem brilhantes textos.
Uma passada pelo cotidiano
Estamos, portanto, dentro de um caminho em
que a cotidianidade nos leva a lugar e a espaço. E, além do mais, é vencida a
dualidade pela impossibilidade da disjunção o que cimenta a ideia de
particularidade e é assim que o cotidiano incorpora a singularidade do espaço e
gera, também, as diversas dimensões deste espaço, também integradas, dimensões
que nos levam a encontrar a possibilidade de o lugar ser sempre um
múltiplo. As dimensões acomodam
significações e não exclusões, propondo, portanto, que tudo é simultâneo. Por
outro lado, apesar do viés frankfurtiano, incorpora com densidade as relações
de trânsito como Mannheim discutia: a formação de valores do trânsito e no
trânsito. O cotidiano então é a mudança
evidenciada na base das práticas sociais e carreando valores que indicam sobre
o tempo ou fase da formação se desejarmos maior ideia do processo histórico.
Neste sentido, é interessante recordar Pascal
na companhia de Nilton Santos. Aliás, Santos quando discute a questão do lugar
e do cotidiano traz, também, Tosltoi. Vamos nos apropriar da sagacidade de
Santos e aplicar à noção de rede que estamos a manusear. De Pascal vem a ideia
da terra como infinito e de que qualquer ponto pode ser seu centro. Se admitirmos
isto, a terra é uma infinitude de centros. Por outro lado, de Tósltoi se toma a
ideia de que da aldeia se fala ao mundo. E se admitirmos isto, de cada centro
se fala sobre o universal. Nisto, tem-se que particular e geral necessitam um
do outro para contextualizarem-se este contexto é o global da tensão onde se
fundamenta a lógica do particular.
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