Quem é quem
Jornalista, Assessora de
Comunicação. Foi editora do blog, Ensaio Geral no Portal CadaMinuto, tem
publicação no Caderno B do Jornal Gazeta de Alagoas. É autora dos contos, Para
Comer, Beber e Dormir Comigo, O Conto das Alagoas, Recife: Ed. Bagaço, 2007, Carlito
Lima, Edilma Bomfim, (orgs.). Coisa de Homem, Agosto, À Sombra do Umbuzeiro,
Casos e Loas, São Paulo, Gráfica Epitaciana, 2006. Só Para Contar, Zilma e Eu
Meio às Penas, À Sombra do Juazeiro, São Paulo, Gráfica Epitaciana, 2008.
Buraco de Entulhos, Entre a Vida e o Tempo, À Sombra da Quixabeira, São Paulo,
Editora Epitaciana, 2010.
FEIRA LIVRE EM SANTANA DO
IPANEMA
Maria
Goretti Brandão
Para além da feira livre,
como território de uso popular do experimento próprio de sociabilidade, está a
magia que se constrói, viva, nos detalhes do cotidiano, em uma mescla de cenas
que se movimentam. São imagens quase estáticas, que se conjugam as
manifestações tradicionais e peculiares da cultura das gentes. Em Santana do
Ipanema, cidade sertaneja das Alagoas, essa experiência quando vista,
generalizada, incorpora-se ao registro comum do ir e vir e das relações
estabelecidas, à compra e venda de produtos, apenas. Porém, nos espaços
subliminares, onde os sentires estão à guisa da observação sutil, elas traduzem
seu repertório, à maneira singela do viver da feira, onde estão expostas
expressivas conotações poéticas, daquele universo das eventualidades, dos sons,
das palavras e dos gestuais.
Os cenários modificam-se
constantemente, permanecendo no cerne dessa movimentação, o registro de
vivências, que se apresentam genuínas e espontâneas. São barracas, bancas, que
dispostas lado a lado, criam a comprida passarela, onde desfilam seus frequentadores.
Os feirantes com seus pregões, os compradores, o burburinho, os murmúrios dos
carreiros, as frases soltas e anônimas, o sobe e desce ladeiras, e até o andar
dessa gente, que parece reinterpretar-se em seu próprio e costumeiro papel.
Visitam as mesmas barracas, falam aos mesmos feirantes dos quais são fregueses,
compram praticamente as mesmas coisas. E encontram com frequência semanal, os
amigos, seus compadres, comadres e afilhados.
Andar pela feira livre é
como embarcar em uma aventura tardia, visto o surgimento de outros modos de
expressões contemporâneas, que também afirmam a cultura e o sobreviver
material. Visitá-la, porém, é festejar olhares sobre cenas que, múltiplas, se
inauguram. Vê-se, por exemplo, claramente, que aquela mulher, carregando uma
sacola de palha, neutraliza-se, abstraída, como se ali não estivesse. O que lhe
passa à cabeça? Livre à atenção da dona, a sacola diverte-se, derrubando o que
alcança sobre as bancas, e ela nem vê. O rapaz maltrapilho apropria-se da
costumeira cara de triste, que como uma máscara, coloca-a sempre que pede
coisas. Cheira a pinga tão cedo da manhã e quer dinheiro para comprar pastel.
Quem acredita nele?
A feira tem alma e vida
próprias, e à cidade cheia de ladeiras, ela é a nobre senhora que convoca
romaria em trajetos sobre calçamentos íngremes. Se o destino a que se
encaminham as gentes, leva-as a decida, chega-se até o Mercado Público. E ainda
mais para adiante, aos seus becos estreitos. Se a direção é outra, amplia-se a
feira pela Praça da Igreja Matriz Senhora Santana. É neste local onde o Museu
Darras Noya impõe-se, construção antiga, tendo sido primeiramente, a residência
do Dr. Arsênio Moreira, médico contratado pelo Governo, para dar assistência
aos soldados, em campanhas às buscas de Lampião. Seja de que modo for e para
qualquer das direções, todo o seu percurso, acompanham-na o rumor das vozes e
de passos misturados.
A cada momento que se
destina o cidadão a percorrê-la, é sempre única e performática, em sua
territorialidade popular. Antiga, renovando-se, ei-la, ritualizada nas falas
apregoadas pelos vendedores ambulantes, no erguer matinal e sempre ordenado das
aparentes mesmices que a evocam e são por ela evocadas. É um fervilhar de
encontros, onde é comum as pessoas esbarrarem umas nas outras. É também espaço
de levezas quase imperceptíveis, que ali existentes, permite-se manifestar sob
os diversos aromas, sabores e sons. Às mãos da gente, as mais variadas texturas
e aos olhos, a profusão de cotidianidades onde tudo, ora mistura-se,
confunde-se, ora salienta-se, exaltando a singularidade de cada coisa, formando
um conjunto, como um painel de naturezas mortas que vicejam.
Homens, mulheres e crianças,
que se projetam juntas e ao mesmo tempo em majestoso coro, somando-se à audição
da vida que é tecida, contemplando e somando-se às feiras, logradouros e
tempos. A alma da feira é fortalecida em suas falas pelo sotaque próprio,
oriundo dali, e expressões comuns derivadas desta mesma origem, que une e
define um lugar no inconsciente coletivo. Destinado aos símbolos que os
constelam, renovam, sobremaneira, a vivência das tradições. O santanense pode
sempre estabelecer-se, sendo representado como tal, também, no ambiente da
feira livre. Pode-se, por licença poética, afirmar, que o clamor que dela
emana, é a sua própria voz, recitando através da sonora e sempre cheia de
força, sua verve, a que expressa à genuína cultura popular.
Carrinhos de mungunzá, de
CD´s e DVD´s, de pastel. Assim como os outros, o seu condutor entra à roda
viva, que exige e imprime ritmo à condução dos passos de cada um, para um
caminhar de todos - àquela sensação despercebida conscientemente à maioria -,
que naturalmente a integra, em todas as repercussões, e potencializa,
revitalizando o lugar, esse, próprio, que se constrói quando se erguem suas
rudimentares estruturas, e evapora-se magicamente, quando do ritual de
desconstrução desse cenário. É interessante perceber a existência dos
mecanismos, que agregam mais elementos que personificam e pontuam
singularidades à feira, como local de convergência humana. A exemplo do seu
ritmo, que vem a ser uma característica marcante, definidora do espaço, como via
frenética, que estimula o conjunto que nela transita, ao mesmo espírito que
traduz o sentido de unidade.
Aqui, grande parte do que é
exposto à venda nas bancas de mangaios, traz consigo, subjetivamente, signos
icônicos, indiciais e simbólicos, que servem ao estímulo à preservação da
identidade local, compartilhada por todos. Ativadas e agrupadas pelos objetos,
comunicam pertencimento e podem servir de ponte para os vínculos desta cultura
às novas gerações. A peteca - brinquedo artesanal - dado agora à modernização
do material do qual é feito, mas, conservando a mesma feitura e as mesmas
características, lá estão. Encontra-se o pião, o cachimbo, o apito. Os sons
dele extraídos, repercutem uma espécie de vibrar interior, que pode incentivar
o desejo de constância à autoestima, daquilo que reforça no santanense, tudo o
que de sertanejo ele é.
O matuto na feira. Dentre
outros tantos, dois comportamentos básicos e distinguíveis. A saber, aquele que
vem à rua a passeio e faz da feira o maior acontecimento semanal. Come, bebe e
passeia o festejar da descontinuidade, esgarçando o seu cotidiano na roça. São
mulheres, moças e crianças, que desfilam exalando fortes perfumes. Os rapazes,
a maioria, tendo aposentado o cavalo como meio de transporte, aparecem com suas
motocicletas e, talvez, se possa dizer - do uso do coxim sobre o assento -, que
eles figuram como resquícios culturais, transpostos, adaptáveis, do lombo do
animal à máquina. Remetendo àquilo, ainda e possivelmente, para a observação de
que possam estar ali o que deve, talvez, ser considerado como indicativo da
presença expressiva de restos simbólicos.
O outro tipo estabelece-se
no cenário, com voracidade à aventura de negociar seus produtos. Destacam-se as
boas vassouras de palha, as panelas de barro, as galinhas e os ovos de
capoeira, ervas medicinais, bolos, tapiocas, os colares de ouricuris, esses,
batizados nos suores dos pescoços das crianças antes de serem comidos. Para
atrair o freguês os chamamentos acontecem. Os chavões criados se fixam na
memória popular, atravessando os tempos, perpetuando seus personagens, da vez
que a verbalização exprime fácil e bem humorada linguagem: “É pra encher a
bolsa com pouco dinheiro”. “Sai daí, dona Maria, quer enganar a quem?”. Dona
Menina, quando a senhora ia pegar os cajus, eu já vinha com as castanhas! ”Olha
aí, olha aí o pastel quentinho. Moça bonita não paga, mas também não leva”!
Cenário sim, um múltiplo e
diverso lugar, onde todos contracenam. E a despeito dos seus limites e da sua
territorialidade, o experimento de percorrê-la e misturar-se, e ser multidão,
vai muito longe. Muito além de onde ela possa fisicamente, começar e terminar.
É para muito longe do simples e autômato comprar e pagar. Ele estende-se,
verdadeiramente, pela cidade interior que habita cada um, em sua própria feira
pessoal e faz nova interpretação, para retornar à ela. Sempre a mesma e sempre
outra. Constela, por fim, razões que dinamizam a estética cultural, onde
permeiam um sem-número de signos, atuantes e que permutam entre si, a
experiência e o sentido humano, que mergulha suas raízes e finca-as, no seio do
povo.
Expressos por meio de
artefatos, esses, deslocados de um contexto comum onde tais costumes são
cultivados, podem estar sendo trazidos de forma espontânea, apontando para uma
possível ressignificação do simbólico, em benefício do vínculo cultural,
reorganizando, naturalmente, as imagens que os captam e os congregam em torno
da identidade sertaneja, em função do coletivo. O que permanece implícito,
entre os silêncios da rua, quando ela, a feira, lá não está? É essa gente,
personagem que dá vida à sua magia. Gente santanense, abençoada pela sua
padroeira, Senhora Santana, testemunha das águas do Rio Ipanema, e que agrega
de si mesma à cultura local, enriquecendo-a, página por página, à sua constante
história a esta bela experiência compartilhada, sob o azul sertanejo do céu
aberto.
Bela apreensão do espírito da feira.
ResponderExcluirPrezado professor Sávio, sou coordenador acadêmico da Unidade Educacional Santana do Ipanema/Campus Sertão da UFAL e nos colocamos à disposição da Goretti e do senhor para auxiliar no desenvolvimento da pesquisa - inclusive, temos um projeto de extensão em andamento para registro e exposição de fotos de possíveis patrimônios culturais da cidade. Segue meu contato institucional: anderson.gomes@santana.ufal.br
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