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terça-feira, 31 de outubro de 2017

A viagem: um alagoano em Cuba e seu livro


Dois dedos de prosa

                


Acredito que este seja o primeiro livro escrito sobre Cuba e publicado em Alagoas. As nossas ligações com Cuba foram realizadas pelo saudoso amigo Freitas Neto. Agora surge este texto com um excelente relato de viagem e escrita de impressões. Com esta publicação, Campus  indica a leitura: o texto concatenado, bem escrito e a temática interessa a todos os que lidam com a questão política.
         O livro pode ser adquirido na Editora Graciliano Ramos. Independendo do que você pensa, o livro deve ser lido.
          Um abraço

          Sávio de Almeida

Marcos Antônio Damasceno, nascido em  Santana do Ipanema, graduado e pós-graduado em geografia pela UFAL. 



A RAZÃO PORQUE ESCREVI O LIVRO
Marcos Antônio Damasceno


Essa obra nasceu da determinação de mostrar uma outra visão, de dar um outro olhar para a questão cubana. Surgiu como um contraponto necessário à imagem hegemônica criada a partir dos interesses do estado estadunidense, e repetido sistematicamente ao longo das décadas pela mídia empresarial aqui no Brasil, bem como em boa parte do mundo. O livro tem por objetivo apresentar uma Cuba que é completamente ignorada ou distorcida pela dita ‘grande’ mídia, e que ao exercer praticamente o monopólio da informação, contribui para criar uma imagem arquetípica da sociedade cubana, do seu processo revolucionário, do seu regime político e do seu sistema econômico e social.

Não se trata de cair no esquerdismo infantil de afirmar que se trata de um ‘paraíso na Terra’, tampouco se trata de atacar a única revolução social de fato vitoriosa nesse hemisfério. Se trata, de transmitir as experiências que vivi na ilha durante as minhas estadias nos diversos períodos cobertos entre os anos de 2006, 2010 e 2013. A obra também está fundamentada em uma vasta bibliografia que faz parte das minhas pesquisas a respeito de Cuba, no livro cito algumas obras, bem como documentários de vários países. O livro é o resultado do edital da imprensa oficial para produção literária de 2016, foi selecionado entre as quinze obras que participaram da seleção que contou com quase cem obras.

Na Praça com Fidel
Marco Antônio Damasceno

         
Para mim, o primeiro de maio de 2006 foi um momento inesquecível, pois não é todo dia que a gente encontra numa praça uma das maiores figuras históricas do século XX, alguém que esteve no ‘olho do furacão’ dos principais acontecimentos geopolíticos.
          A uma distância de 50 metros, na tribuna discursava o velho amigo de Ernesto Guevara, mais conhecido como ‘Che’, o líder da guerrilha de Sierra Maestra, o homem que conduziu seu povo a escrever uma nova página na história, o fiel seguidor dos ideais de José Martí.
          Foi impressionante estar no meio de uma multidão estimada em meio milhão de pessoas, e de vez em quando vinha um som que ia num crescendo, que ia ficando mais forte até se transformar em um ‘Fidel! Fidel! Fidel!’. Eram os jovens a cantar em uníssono uma melodia para um senhor octagenário, que apesar de incontáveis tentativas da CIA e dos grupos terrorista ligados ao ditador Fulgencio Batista, sobrevivera e estava ali diante do seu povo e dos amigos de Cuba. Segundo O documentarista Dolla Cannell no célebre 638 ways to kill Castro, de 2006, foram exatamente 638 tentativas de magnicídios,

Fidel falou de muitos temas durante as duas horas que permaneci na ‘Plaza de La Revolucion’, desde, a necessidade de uma maior eficiência do estado cubano na prestação dos serviços essenciais ao povo, até uma avaliação da conjuntura internacional. Era o ano 47 do triunfo revolucionário. Na tribuna não havia cobertura para nenhuma das personalidades presentes, não havia proteção alguma contra os raios solares, todos, sem exceção estavam expostos ao sol. O Estado maior das Forças Armadas Revolucionárias, ministros e ele também! [...]


Naquele instante não me dei conta que estava presenciando um dos legados da revolução, que é o de, ou se tem para todos ou não se tem pra ninguém.
Havia muitas e muitas bandeiras de praticamente todos os países latino-americanos, vi uma imensa bandeira com o mapa da América do Sul e no seu centro a foto do Che eternizada pela lente de Alberto Koda. Havia praticamente bandeiras de toda a América. México, Argentina, Brasil, Nicarágua, Canadá, Venezuela entre outras nações, estavam ali representadas, era uma grande confraternização internacional.

          Vi o velho líder ser ovacionado inúmeras vezes, vi e também bati palmas junto com aquela massa. Famoso pelos longos discursos, Fidel tem a facilidade de falar em público, fato reconhecido até pelos seus detratores. Sua voz não é uma voz forte, grave. Na verdade sua voz é um pouco aguda. Por duas horas de uma manhã ensolarada e com um céu de brigadeiro, Fidel tinha o domínio completo sobre os temas que expunha. Dono de uma memória privilegiada, o que provocara uma espécie de “hipnose coletiva”, todos, de crianças a idosos, dos jovens às pessoas de ‘meia idade’, prestavam atenção a cada índice, a cada estatística, a cada informação comentada. De vez em quando ele se virava para algum ministro e pedia explicações sobre o porquê de certas deficiências ou por que determinado planejamento estatal não fora cumprido.

          Fiquei pensando numa passagem do livro do mexicano Paco Ignácio Taibo II a respeito da noite em que Che o conheceu na casa de Maria Antonia, exilada cubana que vivia no México, no já distante julho de 1955, que o Che escreveu em seu diário: ‘Fiquei fascinado, de imediato me tornei um expedicionário, Fidel não mandava que invadissem Cuba, ele próprio estava è frente. Foi o primeiro líder que estava disposto a pegar em armas para lutar pelo seu povo. Valeria à pena lutar ao seu lado’. Foi esse jovem de 80 anos que vi na praça da Revolução discursando para uma plateia atenta. Porque isso é uma outra característica do comandante chefe da Revolução Cubana, os anos passam, os cabelos ficam brancos, a pele enruga, mas o espírito de Fidel permanece firme.

          Muitas coisas são escritas e ditas a respeito do comandante da Revolução cubana, raramente o que se publica na dita grande mídia dos países capitalistas, se aproxima do que a maioria do povo cubano sente pelo seu líder. O sociólogo Thetônio dos Santos conta um caso que presenciou em uma de suas visitas a Cuba:
Recordo-me de um carregador de malas no aeroporto de Havana que, nos anos oitenta, insistia em provar-me que Fidel era o maior líder de toda a história. Citava Lênin, Stálin, Roosevelt, Mitterrand, vários outros que conhecia e havia estudado. Fidel ganhava de todos, por seu profundo contato com o povo, pela dimensão do que representava uma pequena ilha como Cuba, ao desafiar o maior poder no mundo [...] No entanto, em grande parte do mundo ocidental, vê-se na mídia uma imagem totalmente distinta de Fidel. Sempre ameaçador, sempre delirante [...] sempre disposto a manter-se no poder sem limites. Quantas coisas terríveis lhe são atribuídas!

Pátria é humanidade!

Uma das principais características do socialismo cubano, é a solidariedade que a maior ilha do caribe pratica em países devastados por guerras civis, abalados por catástrofes naturais como terremotos e tsunamis ou em consequência da pobreza extrema existentes em países da África subsaariana, da Ásia ou da América Central.

Desde os primeiros anos da revolução, Cuba tem mostrado uma solidariedade e um compromisso com os povos humildes da Terra. Assim foi em 1963, quando a Argélia precisou de sua ajuda para consolidar o seu processo de descolonização da França. O próprio Che Guevara foi dar apoio e treinar o congo belga em 1965 contra os mercenários que tinham assassinado o presidente Patrice Lumumba e colocado um déspota no poder, o qual instalou uma das mais cruéis ditaduras pró-ocidente, se mantendo no poder através de um regime extremamente corrupto. Quando finalmente Mobuto foi destituído do poder, levou consigo milhões de dólares roubados da pobre nação africana.

Na época se divulgava na mídia ocidental, que Cuba era um satélite de Moscou, e que de tal forma, teria perdido a sua autonomia e renunciado à sua soberania. A ajuda ao país africano, demonstrou o quanto o ocidente estava equivocado, visto que O Estado-maior cubano não consultou Moscou para poder atender ao pedido do amigo, poeta/presidente angolano sobre a decisão de ajudar os angolanos. De acordo com os princípios revolucionário forjados no calor dos combates em Sierra Maestra, Fidel, Raúl e Che, não aceitariam que a U.R.S.S. interferisse na soberania do país.

Fidel em discurso na assembleia geral da O.N.U. enfatizou o fato de que Cuba era parceira da União Soviética, mas isso não significava transformá-la em um satélite no jogo da Guerra Fria, como muitos gostavam de afirmar naquele período.

Isso ficou muito bem claro quando em meados dos anos 70, a ex-colônia portuguesa de Angola, sob a presidência do poeta Agostinho Neto solicitou ajuda a Fidel e sua revolução. O antigo império português ruía, perdia suas últimas colônias africanas, Angola e Moçambique conseguiam através de seus movimentos de libertação depois de muitos anos de luta, a tão desejada independência. Portugal vivia o período conhecido como a Revolução dos Cravos, quando em 1974 militares com experiência nas colônias africanas se rebelaram contra a ditadura de Marcelo Caetano, pondo fim ao regime Salazarista, regime de cunho fascista aliado de Hitler durante a Segunda Guerra Mundial.

A ilha assumiu todos os custos políticos, militares e econômicos na ajuda africana, o internacionalismo falava mais alto e a ilha se sentia no dever de ajudar onde quer que fosse preciso. Argélia, Etiópia, Vietnã, Moçambique, Nicarágua se precisassem dos cubanos, ali eles estariam seguindo o legado de Martí e do Che.

Ainda durante esta segunda viagem à Cuba, conheci Luiz Caballero. Major reformado das forças armadas revolucionárias cubanas, lutou durante vinte e dois meses no sudoeste africano, fez parte da operação militar que enfrentou e impôs pesadas baixas ao odioso exército sul-africano. Luiz é o que na ilha se chama de internacionalista.


Ele me contou que o estado maior cubano elaborou a operação militar para proteger Angola, tendo Raúl Castro como comandante das forças armadas naquele período, os cubanos batizaram a missão militar de: Operação Carlota. A finalidade foi a de rechaçar as agressões da força invasoras, e assim libertar Angola e Namíbia. O nome da operação era uma homenagem a uma ex-escrava cubana que ajudou muitos escravos conseguirem fugir do cativeiro.
O ano 1998 foi trágico para os países da América central em virtude dos furacões George e Mitch que ocasionaram mais de 10 mil mortos e desaparecidos além de estragos provocados na infraestrutura dos países resultando em milhares de desabrigados.

O governo cubano enviou uma equipe de médicos e demais profissionais de saúde para prestar os primeiros atendimentos às vítimas, a situação da Nicarágua era particularmente trágica, pois o país tinha vivido décadas de luta contra a ditadura dos Somozas, e quando a revolução sandinista triunfa e tenta criar um novo país, passa a enfrentar uma duríssima guerra civil patrocinada pela Casa Branca, ocupada na época por Ronald Reagan. 
Reagan cria uma rede clandestina para abastecer os chamados ‘Contras’, enviando armas, dinheiro e treinando-os em Honduras.

Da dolorosa experiência nicaraguense, Fidel teve a ideia que iria reforçar o sentido da colaboração cubana com o mundo subdesenvolvido: criar uma universidade que iria formar médicos e demais profissionais da educação voltada para a população dessa parte do mundo, ao invés de enviar somente os seus próprios médicos. No dia 15 de novembro de 1999 foi criada a ELAM –Escola Latino América de Medicina.

A ELAM matricula 1500 estudantes de mais de 55 nacionalidades, incluindo a estadunidense. A maioria dos estudantes são filhos de camponeses e operários, são filhos do povo humilde que em seus países enfrentam muitos obstáculos para entrar na universidade. Recebem aulas de espanhol, livros, uma remuneração em forma de bolsa de estudos, alimentação e acomodação durante o tempo de sua formação acadêmica na ilha.

O sucesso científico de Cuba incomoda os grandes laboratórios químicos do mundo, localizados principalmente nos Estados Unidos e na Europa .  É um fato notável que um país pobre, sem acesso ao sistema financeiro internacional, possa apresentar ao mundo resultados espetaculares no desenvolvimento de fármacos, além de demonstrar a existência de outros paradigmas na área de saúde. A medicina preventiva ameaça os lucros exorbitantes dessa indústria que não está necessariamente preocupada em encontrar a cura para tantos males que afligem as pessoas. Manter os doentes na dependência de sua química tem se mostrado um excelente negócio para as grandes corporações do setor.

Em 1986 o mundo ficou chocado com o acidente nuclear de Chernobyl nas proximidades de Kiev, capital da Ucrânia, então uma república da União Soviética. Foi o pior acidente nuclear até então, sendo talvez superado pelo de Fukushima no Japão em virtude da onda gigantesca de atingiu a usina em 2011. Segundo cálculos oficiais, na Ucrânia, a radioatividade afetou, de uma ou de outra maneira, 2,6 milhões de habitantes, incluindo 600.000 mil crianças.

Em 1990, Cuba pôs em marcha um projeto de assistência médica que beneficiou, até agora, vinte mil crianças afetadas pelo desastre, originárias da Ucrânia, Rússia e Bielorrússia, as zonas mais afetadas.
Eduardo Galeano costumava dizer que há um silêncio profundo a respeito dos acertos e das vitórias cubanas, já quanto aos erros e equívocos, costuma-se usar uma lupa para ampliar a dimensão do que ocorre na ilha.
O Brasil também recebe a solidariedade cubana. No ano de 1987 em Goiânia aconteceu o pior acidente envolvendo energia nuclear em nosso país. Como em diversos setores da vida brasileira, nós só nos damos conta da falta de planejamento ou ineficiência das coisas quando o estrago já está feito.

Muitas das vítimas do acidente com o Césio 137 também foram levadas para serem tratadas na ilha. A Doutora Maria Paula Curado, é natural de Goiânia e formou-se em Medicina na Universidade Federal de Goiás (UFG). Fez residência em Oncologia no estado de São Paulo e estagiou nos Estados Unidos e na Europa, ela ajudou na triagem das vítimas que foram levadas para Cuba, testemunha a solidariedade cubana com o drama de Goiânia: ‘Vieram médicos de Cuba e nós, em conjunto com a associação das vítimas, selecionamos um grupo, era uma tentativa de validar ou não o trabalho que estávamos fazendo aqui. Foi uma tentativa boa no sentido de ter uma avaliação externa, porque era importante naquele momento.’

No ano de 2012, governo brasileiro assinou um acordo com o estado cubano para a contratação de 4.000 médicos para auxiliar os colegas brasileiros no SUS. Os profissionais cubanos prestam atendimento inicial, diagnosticando os casos, e encaminhando para que haja o tratamento da enfermidade. Eles vêm em missão internacionalista, atuam onde antes não havia médicos brasileiros. segundo o Mistério da Saúde, existia no Brasil mais de 1.500 municípios sem um único médico para prestar os serviços mais básicos e elementares à população. Em certas localidades da região Norte, o único médico é um veterinário. As entidades classistas como os Conselhos Regionais de Medicina e a Federação Nacional de Medicina tem se posicionado claramente contrárias ao programa federal chamado de ‘Mais Médicos’. O que não deixa de ser contraditório, uma vez que o programa foi criado inicialmente para os médicos nativos, mas dada a pouca procura ou desinteresse, o governo federal convidou médicos de outras nacionalidades.  Ocorre que queiram ou não os detratores do regime cubano, a realidade comprovada pela própria Organização Mundial de Saúde, ou mesmo de políticos insuspeitos, como o prefeito de Nova Iorque, é que Cuba é uma referência internacional quando se trata de medicina preventiva. O número de médicos cubanos contratados pelo programa, atingiu a casa dos sete mil em 2014, e a população antes esquecida, agradece saudavelmente.

Os médicos, os professores e preparadores de educação física da ilha rebelde estão presentes em mais de 70 nações, a maioria delas na África, Ásia Central e América Latina. Como acontece atualmente com as missões voltadas para erradicar o analfabetismo, as cirurgias de catarata na Venezuela, Bolívia ou Equador.

A Unesco declarou em 2005 a Venezuela livre do analfabetismo por causa do método SI YO PUEDO! Milhares de venezuelanos voltaram a enxergar graças ao programa MILAGRO, esse mesmo programa foi levado à Bolívia de Evo Morales, e foi o responsável por devolver a visão de milhares de pessoas, incluindo a do próprio assassino do Che.

Os olhos do homem que disparou a bala que matou Che Guevara foram, quarenta anos depois, curados por médicos cubanos. Recorrer à "Operação Milagre", programa dirigido por Cuba e que presta serviços oftalmológicos por toda a América Latina, foi a solução encontrada por Mario Terán, ex. sargento do Exército boliviano, para resolver os problemas de cataratas que lhe toldavam a vista.

A moral revolucionária defendida por José Martí e pelos barbudos de Sierra Maestra entende que ‘Pátria é humanidade!’



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