Olívia é jornalista, natural de União dos Palmares. É formada pela Universidade Federal de Alagoas e pós graduada em Marketing e Comunicação. pela Unifa. Este texto foi escrito em 2004.
A rua, a escola, a vida
Olívia de Cássia Correia de
Cerqueira
Sumário
1.0 – Meu nascimento - 2.0 -
Personagens que ficaram na imaginação - 3.0 - A ditadura
1.0 - Meu nascimento
Casamento dos pais, |
Minha
mãe contava que quando a parteira chegou para fazer o parto eu já tinha
nascido. A mulher cuidou apenas do corte do cordão umbilical e da limpeza. Meu
pai só veio saber do meu nascimento quase à tarde, segundo me contou minha mãe.
Meu primeiro nome foi uma homenagem à minha avó materna. O segundo nome foi uma
homenagem a minha irmã falecida, à santa e à minha prima-madrinha Rita de
Cássia Paes Peixoto, que mora no Rio de Janeiro.
Quando
tia Osória (irmã mais nova de mamãe) ganhou a sexta filha, também colocou o
nome de Rita de Cássia, minha companheira de brincadeiras e brigas da infância,
e a irmã que eu não tive e que amo muito.
Segundo os comentários que minha mãe fazia, para chegar ao meu nome ela
conversou com algumas amigas e conhecidas. Dona Gerusa da farmácia sugeriu para
mamãe que eu me chamasse Paulina (descobri, quando estava pesquisando a origem
da família, que tive uma tia com este nome), mas mamãe relutou e eu ganhei o
nome da minha avó e da minha madrinha, juntos.
Só pude entrar na escola regular aos sete anos de idade,
porque era uma regra da rede oficial de ensino no Estado, nos anos 60. O fato
me causou muita decepção e raiva da professora Maria Mariá Sarmento, que era
diretora de ensino, em União. Eu achava que tivesse sido má vontade de Mariá e
acreditava que tivesse sido ela quem impediu o meu acesso à escola. Mais tarde
compreendi a questão, isso já moça feita, como diziam no interior. A professora
Mariá era uma mulher inteligente e respeitada na região, conhecida pela sua
irreverência e bom humor. Foi a primeira mulher na cidade a usar calças
compridas. Sua história é muito interessante e seu sobrinho, Paulo de Castro
Sarmento Filho, trata de reavivar a memória dos palmarinos mantendo o acervo da
tia com muito esforço. A casa de Mariá estava em ruínas e foi restaurada pela
prefeitura em convênio com outras parcerias oficiais. Minha tia Osória era muito amiga de Mariá e
lhe tinha muito respeito.
Quando eu entrei na escola oficial, aos sete anos, já sabia
contar até dez, rabiscar meu nome completo e já conhecia as primeiras letras do
alfabeto. Aprendi com meu irmão
Petrúcio, em casa, e com a professora Josete Belém, na escolinha do Bangu, na
Rua da Ponte. Eu gostava muito de estudar, era esforçada, mas sentia
dificuldade no aprendizado. Nos meses em que fiquei doente, pedia para mamãe
colocar os livros na cabeceira da minha cama, ou no travesseiro e caía num
pranto desesperado, porque não podia ir à escola, nem enxergava direito.
Eu
tinha muita ânsia de aprender, gostava dos meus colegas da escola, tinha um
afeto profundo pela professora, mas para ser aprovada no exame do Admissão, que
dava acesso ao antigo ginásio, uma espécie de vestibular do ensino fundamental,
precisou que mamãe me colocasse nas aulas de reforço da professora Doralice, a
Dora, filha de seu Pedro Fogueteiro, junto com meu irmão Paulinho. Foi com Dora
que aprendi a gostar de fazer Palavras Cruzadas. Eu me sentia orgulhosa, quando
ela me emprestava as suas revistas para que eu fizesse Caça-palavras e as
Diretas. Devo a ela, além das aulas que me deram acesso ao ginásio, a
facilidade do aprendizado que desenvolvi com as Cruzadas.
Depois de Dora e já no ginásio, quando fomos morar na Rua
Tavares Bastos, mamãe nos colocou para estudar particular com Aparecida Amaral,
também um doce de criatura. Mas a minha primeira professora, no Rocha
Cavalcante, foi Nina Rosa Sarmento, a quem chamávamos carinhosamente de mamãe
Nina Rosa. Eu e minhas amigas Rosemary Veras e Gracinha Melo, entre outras colegas,
íamos buscar Nina Rosa em casa, de tanto que gostávamos dela. Desenvolvemos
tanto afeto pela professora que quando nasceu o seu primeiro filho nós
costumávamos fazer-lhe breves visitas, na esperança de um afago, de uma palavra
de carinho. No fundo, acho que nós éramos muito carentes de afeto, pelo menos
eu o era.
2.0 - Personagens que
ficaram na imaginação
Criancinha |
Minhas lembranças me remetem agora a
quatro pessoas que viveram em épocas deferentes na minha terra natal e que
ficaram na minha imaginação até hoje. A primeira é uma senhora cujo nome
ninguém dizia ou sabia, mas que a população chamava de dona Eru deixando a
mulher irritada. Não sei se sofria das
faculdades mentais, mas morava numa casinha em frente ao Colégio Santa Maria
Madalena, vizinha ao Grupo Escolar Jorge de Lima e vivia andando pelas ruas de
União dos Palmares.
Os
moleques da rua não perdoavam e quando ela passava, eles gritavam: “Dona Eru” e
ela gritava “é a mãe filho da puta”. E assim, cada dia, com essa irritação
daquela senhora em ser chamada de dona Eru, os meninos aproveitavam para mexer
com ela toda vez que passava, até por que ela chamava muito palavrão e os
meninos, na sua maldade infantil, gostavam de vê-la com raiva.
Outra
gozação em torno dela era por conta das pernas que eram finas e quando havia
bingo nas festas o locutor dizia: “E agora vamos chamar as pernas de dona Eru”.
Era o número onze e todos caíam na gargalhada.
Maniquinho
era um homem negro, alto, tinha as pernas levemente arqueadas lembrando as do
craque Garrincha. Jogava futebol como poucos nos gramados do campo da Rua Nova.
Para sobreviver ele cortava carne no mercado público de União e tinha a arte do
futebol em seus pés. Era um verdadeiro craque e quem viveu naquela época em
União pode confirmar o que estou dizendo.
O único problema de Manica era a cachaça, apesar de ter
família conhecida de todos em União, quando ele se embriagava, dormia em
qualquer canto: nos fundos do alambique de seu Orlando Baía, ou nas calçadas da
cidade. Ninguém mexia com ele porque todo mundo gostava daquela figura, que
virou lenda no futebol palmarino.
Eu ajudava na mercearia no meu pai, principalmente aos
sábados, para ter direito a minha mesada semanal e ele chegava lá, às vezes já
tomado pelo álcool e começava a entabular umas conversas sem nexo e eu passava
um carão nele, no meu entendimento de criança sobre aquele vício que o estava
matando, antes de despachar a bebida, que ele tomava em três tempos e logo
ficava sem sentidos.
Outros
dois personagens da minha história são: Manu e
Cocota (o Arroxa), como chamávamos. Manu era descendente de Zumbi, vivia
descalço, nunca usou calçado e perambulava aleatoriamente pelas ruas da cidade.
Também não tinha discurso articulado e dizia coisas que a gente não entendia
muito bem; sua fala era sempre entrecortada e mansa e subia a Serra da Barriga
quase todos os dias.
O Cocota era um senhor
muito engraçado,. Tinha emprego fixo mas gostava de fazer companhia aos jovens
na Avenida Monsenhor Clóvis Duarte. Era um exímio dançarino e da mesma forma
que a gente ficava sempre ouvindo música no carro do meu amigo Alonsinho, na
Avenida, lá vinha o Cocota nos fazer companhia e ensaiar seus passos
diversificados.
Todos ríamos muito com
aquela disposição para a dança e
ele caía na brincadeira conosco participando dos nossos melhores momentos em
União. Tudo isso me veio à lembrança por conta das fotos do baú das minhas
memórias. O baú da minha avó Olívia.
Na Rua da Ponte, nos anos 60, não tinha água encanada. Na
nossa casa dos fundos da mercearia, mamãe pegava água do rio e colocava em dois
tanques, para os serviços da rotina do nosso lar. Já na outra casa, vizinha ao armazém de
compra e venda de cereais, tinha uma cacimba de grande profundidade, que dona
Antônia se servia para lavar roupa, pratos, o banho da família, e outras
atividades da lida doméstica, mas a água era salobra e não servia para beber.
Sendo assim, íamos buscar água potável em uma cacimba, na Fazenda Jurema, de
propriedade do dr. Antônio Gomes de Barros, pai do ex-governador de Alagoas,
Manoel Gomes de Barros. A cacimba tinha uma água cristalina e, de tão límpida,
era azulada.
A criançada e a vizinhança saíam com latas na cabeça, o que
depois, na escola, resultou num apelido do meu irmão Petrúcio de “Lata d’Água”,
que até hoje ele não gosta. Na nossa ida à busca da água, na Jurema, nós
terminávamos subindo nos pés de manga do sítio de dr. Antônio e saboreávamos
gostosas frutas, além de ficarmos curiosos com o gado zebu da fazenda. Meu
irmão Petrúcio era muito levado e mamãe vivia às turras com ele. Um dia
Petrúcio foi mexer com uma vaca, no sítio de seu Leão, pai de dona
Carminha Leão e avô de José Leão Praxedes. A vaca lhe deu uma cabeçada que lhe
quebrou os dentes. E quando ele chegou em casa, todo ensangüentado, mamãe, que
estava grávida de quatro meses, abortou na hora, segundo ela nos contou quando
já estávamos adultos.
Das
peripécias de meu irmão Petrúcio ficou um episódio de uma briga dele com Zé
Praxedes, que depois veio a se tornar prefeito de União dos Palmares e marido
de Nadja, filha da melhor amiga da minha mãe, dona Neuza, e minha colega de
escola. Da mesma forma que mamãe era de guardar muita mágoa, costumava lembrar
o fato acontecido. A outra molecagem de Petrúcio foi jogar, já na Rua da Ponte,
um mosquito de São João debaixo da saia da filha de uma senhora que todos só
chamavam de “Viúva”, que morava na cabeça da ponte, onde depois funcionou o bar
de seu Antônio Timóteo.
Por
conta desse episódio do mosquito, papai lhe deu uma tremenda surra e o colocou
de castigo, ajoelhado em caroços de milho, com um banco pesado e uma bacia na
cabeça. Papai não brincava quando castigava meu irmão Petrúcio; meu irmão mais
velho foi o que mais apanhou do meu pai.
Petrúcio
fazia muitas brincadeiras conosco e se vestia com um pano velho, preto, de um
guarda-chuva sem uso de papai; imitava o Zorro que assistíamos na televisão em
preto-e-branco. Ele subia na parede da mercearia e ficava “atormentando” lá de cima. Além dessas brincadeiras, tinha a
do “padre Lara Lara”, que era feita em cima das camas, o que rendia muitos
gritos da minha mãe. O “padre Lara Lara”
se vestia de branco (era um lençol de bramante da minha mãe) e ficava dizendo
em voz fúnebre: “Eu sou o padre Lara Lara e vim para pegar vocês”. Eram
brincadeiras gostosas para nós, mas que sempre terminavam em castigo, mais para
o lado do meu irmão.
Nós aprontávamos muito e outra brincadeira que gostávamos
de fazer era a de mocinhos e bandidos, em cima das sacas de algodão, que o
Valdemar ensacava, no armazém de papai. Valdemar às vezes se aborrecia com as
nossas brincadeiras, pois bagunçávamos todo o seu serviço. Nas brincadeiras de
faroeste que nós empreendíamos no armazém eu era sempre a mocinha que seria
resgatada pelo meu irmão Petrúcio. A
mercearia que meu pai possuía na Rua da
Ponte foi o que permitiu que nossos pais nos criasse com dignidade. Foi dela e
do armazém de compra e venda de cereais que papai tirou o nosso sustento. Todo
sábado eu e meus irmãos íamos ajudar a despachar as mercadorias, porque o
movimento era grade ali. O espaço ficava muitas vezes lotado.
Os
matutos e feirantes que moravam nos sítios e na Serra da Barriga, quando
terminavam de comercializar seus produtos na feira, iam pra lá fazer as compras
semanais ou mensais. Meu pai vendia fiado e nós anotávamos todas as contas em
cadernetas. Toda semana, quinzena ou mês os muitos fregueses do meu pai pagavam
suas dívidas. Era uma relação muito mais de confiança que se tinha. A maioria
pagava tudo certinho, mas meu pai também levou muito calote e quando se
aposentou meu irmão teve trabalho para fazer o levantamento dos fiados e para
efetuar as cobranças. Meu pai não era de cobrar aos devedores, porque ficava
com vergonha. Nesse aspecto eu também puxei a seu João Jonas.
Os cavalos dos fregueses da mercearia ficavam amarrados por
uma corda, na porta do estabelecimento e uma vez meu pai sofreu um pequeno acidente
quando foi descarregar milho ou feijão. Levou um coice de um cavalo, que o deixou ferido e ficamos preocupados. A
medicação que se dava quando acontecia acidente no interior, no primeiro
atendimento, era dar para a pessoa acidentada cerveja preta e foi o que
indicaram ao meu pai por conta do ferimento provocado pelo coice do cavalo.
Eu
passava horas e horas na mercearia do meu pai e hoje eu vejo que aquele local
me serviu de laboratório, tantos eram os personagens interessantes, cada um com
uma história de vida para contar. Quando eu não estava ajudando a vender as
mercadorias eu ficava lendo, conversando com algum vizinho ou fazendo Palavras
Cruzadas e aproveitava o tempo ocioso para resolver o Jogo dos Erros, as
Diretas e o Caça-Palavras. Pegava jornais antigos como o Jornal dos Esportes,
que tinha um papel cor-de-rosa; jornais que meu pai comprava em quilo para
embrulhar as mercadorias como sabão, pacotes de café e outros produtos e ficava
resolvendo aqueles jogos durante todo o tempo se não tivesse outra ocupação.
Às sextas-feiras meu pai costumava dar mais esmolas do que
durante a semana. Mendigos, pedintes faziam fila na mercearia para receber a
cota que o meu pai distribuía toda semana. Ele colocava para cada um uma
quantidade de cada produto da cesta básica: café, açúcar, charque, farinha,
sabão, peixe salgado e bacalhau, que naquela época era alimento para pessoas de
poucas posses, ou outro produto que a pessoa necessitada requisitasse.
3.0 - A ditadura
Segundo relatos históricos que pesquisei nos sites de
história na internet e nos livros do professor Florisval Cárcere, em 31 de
março de 1964 até a redemocratização, em 1985, instaura-se no Brasil o regime
militar, que foi um golpe de Estado. O regime foi marcado pelo autoritarismo,
supressão de direitos constitucionais, perseguição policial e militar, prisão e
tortura dos opositores e pela imposição de censura prévia aos meios de
comunicação. Na economia houve uma
rápida diversificação e modernização na indústria e serviços, sustentada por mecanismos
de concentração de renda, endividamento externo e abertura ao capital
estrangeiro. A inflação foi institucionalizada, com correção monetária e passa
a ser uma das formas de financiamento do Estado.
Nesse
período, acentuaram-se as injustiças sociais e as desigualdades; o presidente
João Goulart foi deposto. O presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzilli,
assume formalmente a Presidência e permanece no cargo até 15 de abril de 1964.
Segundo os historiadores, na prática, porém, o poder foi exercido pelos
ministros militares de seu governo: o brigadeiro Correia de Melo, da
Aeronáutica, almirante Augusto Rademaker, da Marinha, e o general Arthur da
Costa e Silva, da Guerra.
Foi
nesse período que os militares instituíram o Ato Institucional nº 1 (AI-1). Os
atos institucionais eram estratégias utilizadas pelos militares para legalizar
ações políticas não previstas e mesmo contrárias à Constituição. De 1964 a 1978
foram decretados 16 atos institucionais e complementares que transformaram a
Constituição de 1946 em uma colcha de retalhos.
O
AI-1, de 9 de abril de 64, transfere o poder político aos militares, suspende
por dez anos os direitos políticos de
centenas de pessoas, entre elas os ex-presidentes João Goulart e Jânio
Quadros, governadores, parlamentares, líderes sindicais e estudantis,
intelectuais e funcionários públicos. As cassações de mandatos alteram a
composição do Congresso e limitam os parlamentares.
Durante 20 anos os militares ocuparam o País e foi nesse
panorama que eu vivi a minha infância e a minha adolescência, em União dos
Palmares. Vivíamos sem nos importar com o que acontecia no País, queríamos
apenas ser felizes e só fui me inteirar mais sobre a falta de liberdade e a
censura, já no segundo grau, hoje ensino médio.
As ações empreendidas pelo governo militar são estimuladas
por grande parte dos oficiais do Exército, principalmente pelos coroneis. A
chamada “linha dura” é instaurada e, usando pressões, os militares conseguem
que o Congresso aprove medidas repressivas.
O ato complementar nº 4, de 24 de novembro de 1965, institui o sistema
bipartidário no País.
A
sexta Constituição e a quinta do Brasil traduz a ordem estabelecida pelo regime
militar e institucionaliza a ditadura, em 1967. Incorpora as decisões definidas
pelos atos institucionais, aumenta o poder do Executivo, que passa a ter a
iniciativa de projetos de emenda constitucional, reduz os poderes e
prerrogativas do Congresso, institui uma nova lei de imprensa e a Lei de
Segurança Nacional. A nova Carta é votada em 24 de janeiro de 1967 e entra em
vigor no dia 15 de março.