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segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Memória: história familiar de uma jornalista




 

 Olívia é jornalista, natural de União dos Palmares. É formada pela Universidade Federal de Alagoas e pós graduada em Marketing e Comunicação. pela Unifa. Este texto foi escrito em 2004.






A rua, a escola, a vida

Olívia de Cássia Correia de Cerqueira



Sumário 

1.0 – Meu nascimento - 2.0 - Personagens que ficaram na imaginação - 3.0 -  A ditadura


 1.0  - Meu nascimento
         
Casamento dos pais,
Nasci em União dos Palmares, Alagoas, aos 9 de janeiro de 1960, entre dez horas da manhã e o meio-dia, na saudosa Rua Demócrito Gracindo, mais conhecida como Rua da Ponte, na casa que ficava vizinha ao antigo hotel de seu José Otacílio (seu Zeca) e dona Lia, pais dos amigos de infância: Lucinha, Inêz, Bida e Babiu, Zé e Mano.
Minha mãe contava que quando a parteira chegou para fazer o parto eu já tinha nascido. A mulher cuidou apenas do corte do cordão umbilical e da limpeza. Meu pai só veio saber do meu nascimento quase à tarde, segundo me contou minha mãe. Meu primeiro nome foi uma homenagem à minha avó materna. O segundo nome foi uma homenagem a minha irmã falecida, à santa e à minha prima-madrinha Rita de Cássia Paes Peixoto, que mora no Rio de Janeiro.
Quando tia Osória (irmã mais nova de mamãe) ganhou a sexta filha, também colocou o nome de Rita de Cássia, minha companheira de brincadeiras e brigas da infância, e a irmã que eu não tive e que amo muito.  Segundo os comentários que minha mãe fazia, para chegar ao meu nome ela conversou com algumas amigas e conhecidas. Dona Gerusa da farmácia sugeriu para mamãe que eu me chamasse Paulina (descobri, quando estava pesquisando a origem da família, que tive uma tia com este nome), mas mamãe relutou e eu ganhei o nome da minha avó e da minha madrinha, juntos.
          Só pude entrar na escola regular aos sete anos de idade, porque era uma regra da rede oficial de ensino no Estado, nos anos 60. O fato me causou muita decepção e raiva da professora Maria Mariá Sarmento, que era diretora de ensino, em União. Eu achava que tivesse sido má vontade de Mariá e acreditava que tivesse sido ela quem impediu o meu acesso à escola. Mais tarde compreendi a questão, isso já moça feita, como diziam no interior. A professora Mariá era uma mulher inteligente e respeitada na região, conhecida pela sua irreverência e bom humor. Foi a primeira mulher na cidade a usar calças compridas. Sua história é muito interessante e seu sobrinho, Paulo de Castro Sarmento Filho, trata de reavivar a memória dos palmarinos mantendo o acervo da tia com muito esforço. A casa de Mariá estava em ruínas e foi restaurada pela prefeitura em convênio com outras parcerias oficiais.  Minha tia Osória era muito amiga de Mariá e lhe tinha muito respeito.
          Quando eu entrei na escola oficial, aos sete anos, já sabia contar até dez, rabiscar meu nome completo e já conhecia as primeiras letras do alfabeto.  Aprendi com meu irmão Petrúcio, em casa, e com a professora Josete Belém, na escolinha do Bangu, na Rua da Ponte. Eu gostava muito de estudar, era esforçada, mas sentia dificuldade no aprendizado. Nos meses em que fiquei doente, pedia para mamãe colocar os livros na cabeceira da minha cama, ou no travesseiro e caía num pranto desesperado, porque não podia ir à escola, nem enxergava direito.
Eu tinha muita ânsia de aprender, gostava dos meus colegas da escola, tinha um afeto profundo pela professora, mas para ser aprovada no exame do Admissão, que dava acesso ao antigo ginásio, uma espécie de vestibular do ensino fundamental, precisou que mamãe me colocasse nas aulas de reforço da professora Doralice, a Dora, filha de seu Pedro Fogueteiro, junto com meu irmão Paulinho. Foi com Dora que aprendi a gostar de fazer Palavras Cruzadas. Eu me sentia orgulhosa, quando ela me emprestava as suas revistas para que eu fizesse Caça-palavras e as Diretas. Devo a ela, além das aulas que me deram acesso ao ginásio, a facilidade do aprendizado que desenvolvi com as Cruzadas.
          Depois de Dora e já no ginásio, quando fomos morar na Rua Tavares Bastos, mamãe nos colocou para estudar particular com Aparecida Amaral, também um doce de criatura. Mas a minha primeira professora, no Rocha Cavalcante, foi Nina Rosa Sarmento, a quem chamávamos carinhosamente de mamãe Nina Rosa. Eu e minhas amigas Rosemary Veras e Gracinha Melo, entre outras colegas, íamos buscar Nina Rosa em casa, de tanto que gostávamos dela. Desenvolvemos tanto afeto pela professora que quando nasceu o seu primeiro filho nós costumávamos fazer-lhe breves visitas, na esperança de um afago, de uma palavra de carinho. No fundo, acho que nós éramos muito carentes de afeto, pelo menos eu o era. 

2.0 - Personagens que ficaram na imaginação

        
Criancinha
                
A literatura brasileira e mundial está recheada de personagens  instigantes que ficaram no imaginário popular; muitos desses personagens se tornaram o retrato de uma época. A realidade muita vezes imita e repete a ficção, até por que muitas vezes a vida imita a arte e a arte, por sua vez, é baseada no nosso cotidiano.
        Minhas lembranças me remetem agora a quatro pessoas que viveram em épocas deferentes na minha terra natal e que ficaram na minha imaginação até hoje. A primeira é uma senhora cujo nome ninguém dizia ou sabia, mas que a população chamava de dona Eru deixando a mulher irritada.  Não sei se sofria das faculdades mentais, mas morava numa casinha em frente ao Colégio Santa Maria Madalena, vizinha ao Grupo Escolar Jorge de Lima e vivia andando pelas ruas de União dos Palmares.
Os moleques da rua não perdoavam e quando ela passava, eles gritavam: “Dona Eru” e ela gritava “é a mãe filho da puta”. E assim, cada dia, com essa irritação daquela senhora em ser chamada de dona Eru, os meninos aproveitavam para mexer com ela toda vez que passava, até por que ela chamava muito palavrão e os meninos, na sua maldade infantil, gostavam de vê-la com raiva.
Outra gozação em torno dela era por conta das pernas que eram finas e quando havia bingo nas festas o locutor dizia: “E agora vamos chamar as pernas de dona Eru”. Era o número onze e todos caíam na gargalhada.
Maniquinho era um homem negro, alto, tinha as pernas levemente arqueadas lembrando as do craque Garrincha. Jogava futebol como poucos nos gramados do campo da Rua Nova. Para sobreviver ele cortava carne no mercado público de União e tinha a arte do futebol em seus pés. Era um verdadeiro craque e quem viveu naquela época em União pode confirmar o que estou dizendo.
          O único problema de Manica era a cachaça, apesar de ter família conhecida de todos em União, quando ele se embriagava, dormia em qualquer canto: nos fundos do alambique de seu Orlando Baía, ou nas calçadas da cidade. Ninguém mexia com ele porque todo mundo gostava daquela figura, que virou lenda no futebol palmarino.
          Eu ajudava na mercearia no meu pai, principalmente aos sábados, para ter direito a minha mesada semanal e ele chegava lá, às vezes já tomado pelo álcool e começava a entabular umas conversas sem nexo e eu passava um carão nele, no meu entendimento de criança sobre aquele vício que o estava matando, antes de despachar a bebida, que ele tomava em três tempos e logo ficava sem sentidos.
         
Naquela minha rotina da mercearia do meu pai convivi com muitos personagens interessantes e que dariam belos romances se fossem pesquisadas suas vidas a fundo. Era um verdadeiro laboratório ficar na mercearia do meu pai, na Rua da Ponte, aos sábados, dia de feira em União. Aprendi muito da vida naquele lugar disso eu tenho certeza.
Outros dois personagens da minha história são: Manu e  Cocota (o Arroxa), como chamávamos. Manu era descendente de Zumbi, vivia descalço, nunca usou calçado e perambulava aleatoriamente pelas ruas da cidade. Também não tinha discurso articulado e dizia coisas que a gente não entendia muito bem; sua fala era sempre entrecortada e mansa e subia a Serra da Barriga quase todos os dias.
          O Cocota  era um senhor muito engraçado,. Tinha emprego fixo mas gostava de fazer companhia aos jovens na Avenida Monsenhor Clóvis Duarte. Era um exímio dançarino e da mesma forma que a gente ficava sempre ouvindo música no carro do meu amigo Alonsinho, na Avenida, lá vinha o Cocota nos fazer companhia e ensaiar seus passos diversificados.
          Todos ríamos muito com  aquela disposição para a dança  e ele caía na brincadeira conosco participando dos nossos melhores momentos em União. Tudo isso me veio à lembrança por conta das fotos do baú das minhas memórias. O baú da minha avó Olívia.
          Na Rua da Ponte, nos anos 60, não tinha água encanada. Na nossa casa dos fundos da mercearia, mamãe pegava água do rio e colocava em dois tanques, para os serviços da rotina do nosso lar.  Já na outra casa, vizinha ao armazém de compra e venda de cereais, tinha uma cacimba de grande profundidade, que dona Antônia se servia para lavar roupa, pratos, o banho da família, e outras atividades da lida doméstica, mas a água era salobra e não servia para beber. Sendo assim, íamos buscar água potável em uma cacimba, na Fazenda Jurema, de propriedade do dr. Antônio Gomes de Barros, pai do ex-governador de Alagoas, Manoel Gomes de Barros. A cacimba tinha uma água cristalina e, de tão límpida, era azulada.
          A criançada e a vizinhança saíam com latas na cabeça, o que depois, na escola, resultou num apelido do meu irmão Petrúcio de “Lata d’Água”, que até hoje ele não gosta. Na nossa ida à busca da água, na Jurema, nós terminávamos subindo nos pés de manga do sítio de dr. Antônio e saboreávamos gostosas frutas, além de ficarmos curiosos com o gado zebu da fazenda. Meu irmão Petrúcio era muito levado e mamãe vivia às turras com ele.  Um dia  Petrúcio foi mexer com uma vaca, no sítio de seu Leão, pai de dona Carminha Leão e avô de José Leão Praxedes. A vaca lhe deu uma cabeçada que lhe quebrou os dentes. E quando ele chegou em casa, todo ensangüentado, mamãe, que estava grávida de quatro meses, abortou na hora, segundo ela nos contou quando já estávamos adultos.
Das peripécias de meu irmão Petrúcio ficou um episódio de uma briga dele com Zé Praxedes, que depois veio a se tornar prefeito de União dos Palmares e marido de Nadja, filha da melhor amiga da minha mãe, dona Neuza, e minha colega de escola. Da mesma forma que mamãe era de guardar muita mágoa, costumava lembrar o fato acontecido. A outra molecagem de Petrúcio foi jogar, já na Rua da Ponte, um mosquito de São João debaixo da saia da filha de uma senhora que todos só chamavam de “Viúva”, que morava na cabeça da ponte, onde depois funcionou o bar de seu Antônio Timóteo.
Por conta desse episódio do mosquito, papai lhe deu uma tremenda surra e o colocou de castigo, ajoelhado em caroços de milho, com um banco pesado e uma bacia na cabeça. Papai não brincava quando castigava meu irmão Petrúcio; meu irmão mais velho foi o que mais apanhou do meu pai.
Petrúcio fazia muitas brincadeiras conosco e se vestia com um pano velho, preto, de um guarda-chuva sem uso de papai; imitava o Zorro que assistíamos na televisão em preto-e-branco. Ele subia na parede da mercearia e ficava “atormentando”  lá de cima. Além dessas brincadeiras, tinha a do “padre Lara Lara”, que era feita em cima das camas, o que rendia muitos gritos da minha mãe.  O “padre Lara Lara” se vestia de branco (era um lençol de bramante da minha mãe) e ficava dizendo em voz fúnebre: “Eu sou o padre Lara Lara e vim para pegar vocês”. Eram brincadeiras gostosas para nós, mas que sempre terminavam em castigo, mais para o lado do meu irmão.
          Nós aprontávamos muito e outra brincadeira que gostávamos de fazer era a de mocinhos e bandidos, em cima das sacas de algodão, que o Valdemar ensacava, no armazém de papai. Valdemar às vezes se aborrecia com as nossas brincadeiras, pois bagunçávamos todo o seu serviço. Nas brincadeiras de faroeste que nós empreendíamos no armazém eu era sempre a mocinha que seria resgatada pelo meu irmão Petrúcio.      A mercearia que meu pai possuía  na Rua da Ponte foi o que permitiu que nossos pais nos criasse com dignidade. Foi dela e do armazém de compra e venda de cereais que papai tirou o nosso sustento. Todo sábado eu e meus irmãos íamos ajudar a despachar as mercadorias, porque o movimento era grade ali. O espaço ficava muitas vezes lotado. 


Os matutos e feirantes que moravam nos sítios e na Serra da Barriga, quando terminavam de comercializar seus produtos na feira, iam pra lá fazer as compras semanais ou mensais. Meu pai vendia fiado e nós anotávamos todas as contas em cadernetas. Toda semana, quinzena ou mês os muitos fregueses do meu pai pagavam suas dívidas. Era uma relação muito mais de confiança que se tinha. A maioria pagava tudo certinho, mas meu pai também levou muito calote e quando se aposentou meu irmão teve trabalho para fazer o levantamento dos fiados e para efetuar as cobranças. Meu pai não era de cobrar aos devedores, porque ficava com vergonha. Nesse aspecto eu também puxei a seu João Jonas. 
          Os cavalos dos fregueses da mercearia ficavam amarrados por uma corda, na porta do estabelecimento e uma vez meu pai sofreu um pequeno acidente quando foi descarregar milho ou feijão. Levou um coice de um cavalo,  que o deixou ferido e ficamos preocupados. A medicação que se dava quando acontecia acidente no interior, no primeiro atendimento, era dar para a pessoa acidentada cerveja preta e foi o que indicaram ao meu pai por conta do ferimento provocado pelo coice do cavalo.
Eu passava horas e horas na mercearia do meu pai e hoje eu vejo que aquele local me serviu de laboratório, tantos eram os personagens interessantes, cada um com uma história de vida para contar. Quando eu não estava ajudando a vender as mercadorias eu ficava lendo, conversando com algum vizinho ou fazendo Palavras Cruzadas e aproveitava o tempo ocioso para resolver o Jogo dos Erros, as Diretas e o Caça-Palavras. Pegava jornais antigos como o Jornal dos Esportes, que tinha um papel cor-de-rosa; jornais que meu pai comprava em quilo para embrulhar as mercadorias como sabão, pacotes de café e outros produtos e ficava resolvendo aqueles jogos durante todo o tempo se não tivesse outra ocupação.
          Às sextas-feiras meu pai costumava dar mais esmolas do que durante a semana. Mendigos, pedintes faziam fila na mercearia para receber a cota que o meu pai distribuía toda semana. Ele colocava para cada um uma quantidade de cada produto da cesta básica: café, açúcar, charque, farinha, sabão, peixe salgado e bacalhau, que naquela época era alimento para pessoas de poucas posses, ou outro produto que a pessoa necessitada requisitasse. 

3.0 - A ditadura



          Segundo relatos históricos que pesquisei nos sites de história na internet e nos livros do professor Florisval Cárcere, em 31 de março de 1964 até a redemocratização, em 1985, instaura-se no Brasil o regime militar, que foi um golpe de Estado. O regime foi marcado pelo autoritarismo, supressão de direitos constitucionais, perseguição policial e militar, prisão e tortura dos opositores e pela imposição de censura prévia aos meios de comunicação.  Na economia houve uma rápida diversificação e modernização na indústria e serviços, sustentada por mecanismos de concentração de renda, endividamento externo e abertura ao capital estrangeiro. A inflação foi institucionalizada, com correção monetária e passa a ser uma das formas de financiamento do Estado.
Nesse período, acentuaram-se as injustiças sociais e as desigualdades; o presidente João Goulart foi deposto. O presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzilli, assume formalmente a Presidência e permanece no cargo até 15 de abril de 1964. Segundo os historiadores, na prática, porém, o poder foi exercido pelos ministros militares de seu governo: o brigadeiro Correia de Melo, da Aeronáutica, almirante Augusto Rademaker, da Marinha, e o general Arthur da Costa e Silva, da Guerra.
Foi nesse período que os militares instituíram o Ato Institucional nº 1 (AI-1). Os atos institucionais eram estratégias utilizadas pelos militares para legalizar ações políticas não previstas e mesmo contrárias à Constituição. De 1964 a 1978 foram decretados 16 atos institucionais e complementares que transformaram a Constituição de 1946 em uma colcha de retalhos.
O AI-1, de 9 de abril de 64, transfere o poder político aos militares, suspende por dez anos os direitos  políticos de centenas  de pessoas, entre elas  os ex-presidentes João Goulart e Jânio Quadros, governadores, parlamentares, líderes sindicais e estudantis, intelectuais e funcionários públicos. As cassações de mandatos alteram a composição do Congresso e limitam os parlamentares.
          Durante 20 anos os militares ocuparam o País e foi nesse panorama que eu vivi a minha infância e a minha adolescência, em União dos Palmares. Vivíamos sem nos importar com o que acontecia no País, queríamos apenas ser felizes e só fui me inteirar mais sobre a falta de liberdade e a censura, já no segundo grau, hoje ensino médio.
          As ações empreendidas pelo governo militar são estimuladas por grande parte dos oficiais do Exército, principalmente pelos coroneis. A chamada “linha dura” é instaurada e, usando pressões, os militares conseguem que o Congresso aprove medidas repressivas.  O ato complementar nº 4, de 24 de novembro de 1965, institui o sistema bipartidário no País.
A sexta Constituição e a quinta do Brasil traduz a ordem estabelecida pelo regime militar e institucionaliza a ditadura, em 1967. Incorpora as decisões definidas pelos atos institucionais, aumenta o poder do Executivo, que passa a ter a iniciativa de projetos de emenda constitucional, reduz os poderes e prerrogativas do Congresso, institui uma nova lei de imprensa e a Lei de Segurança Nacional. A nova Carta é votada em 24 de janeiro de 1967 e entra em vigor no dia 15 de março.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Memória: PARTE DE NOSSA VIDA NAS ALAGOAS


Minha caderneta de  lembranças e pendências com a vida (III)


Luiz Sávio de Almeida


Sumário

Onde se retorna a  Mariquinhas e milagres
Onde se fala em Mariquinhas e na Santa Luzia
Onde se fala em saudade
Onde se fala no  direito de ter saudades
Onde se confessa que a santa foi largada  
Onde se fala de poucas ruas calçadas


     

Onde se retorna a  Mariquinhas e milagres

               Mariquinhas  morre e segundo se disse, todos os bois choraram no pasto e no reservo, com  saudade da Sinhá. Era isto que se contava e várias vezes ouvi quando menino. Veio escravo de tudo quanto era canto e eles ficaram ali, em pranto, enquanto se dava o velório e tinha-se o enterro, seguramente de uma pessoa santa. Não sei se o Dindinho Néo casou novamente: acho que não.   Quem sabe se amigou? Também, nem sei a idade dele quando ficou viúvo... Aqui,  do meu velho banco de pelar porco nunca recebi notícias do fato, nem por conversa,  nem por carta, portador ou pela Voz do Brasil,  onde a mentira é oficialmente dita no Brasil, especialmente no dia 1º de Abril, tradição que dizem ter vindo da França.
               Penso em Mariquinhas como pessoa tranquila, cabelo grande, e que deveria saber flutuar no encanto de seus negócios com Deus, suas novenas e missas cantadas. Sua capelinha deixava a paz para a oração, bem próxima de si mesma e a devoção à Santa Luzia demonstrou o quanto os santos estavam atentos para com sua fé e para com os negócios do mundo.   A narração de seu enterro era, ao mesmo tempo, sua entronização no céu. Uma sinhá tinha o que deixar para ser amado pela família. E Mariquinhas era a virtude em pessoa, nas recordações de minha casa, na boca saudosa de minha mãe, no meio das histórias maravilhosas que ela contava sobre a Capela.
              
Onde se fala em Mariquinhas e na Santa Luzia

Ali mesmo no engenho deram-se milagres e um deles foi de pompa e circunstância, com a Santa impaciente, pois se havia quebrado o preceito de guarda. O dia de guarda não precisa de decreto: é uma encomenda do modo como a fé semeia bentinhos na alma. Não existia uma festa de guarda para Santa Luzia no engenho da Mariquinhas, mas não era preciso pois o braço da hierarquia pouco poderia chegar tantotãolonge culturalmente, resolver as manifestações de fé e, na  Capela respeitava-se a santa dos olhos e no engenho também. Talvez não se guardasse como se dava  o majestoso de um Corpus Christi, talvez o dia mais denso de festa que se faz na  Santa Madre, uma festa que toca na própria eucaristia e que veio das trevas do Monte das Oliveiras. Acho que as mais belas referências a este Corpo sempre são dadas no Evangelho de João.
Aí, voltando ao engenho,  existia uma pequena olaria e tudo funcionava normalmente, produzindo tijolo e telha. Uma pessoa que trabalhava, resolveu quebrar o  preceito e fazer tijolo no dia de Santa Luzia. Como demonstração do mau sucedido e pela manhã do outro dia, tudo estava  pisado e não ficou um que servisse para qualquer coisa. A Santa  não tolerou o desrespeito.  Aliás, tempos depois, na Capela,  deu-se uma nova demonstração de desagrado da Santa Luzia, nascida em Siracusa; na verdade era um pecado dos piores,  trabalhar no seu dia em estilo de guarda, de observância.  O desavisado e pecaminoso   fez telha e tijolo     e nem-nem com a desfeita que não era propriamente à Santa, mas ao sagrado da guarda. Pois lá foi ele e resolveu acender uma vela no alto da Igreja. Ninguém até hoje sabe como, mas o espermacete caiu nos olhos dele e queimou que quase cego  ficou, sendo feio o urro soltado na dor que cobrou a desfeita. Não é brincadeira,  o pingo da vela derretida batendo nos olhos.
               Sem dúvida, era uma história exemplar: não se pode brincar com os santos, como se nada acontecesse. O espermacete fecundou a dor do pecador. A baleia do mar alumiava a capela capelense, um cachalote ajudava a dizer que existe um código e um sistema a ser mantido. Moby Dick poderia desta forma, viver em uma Alagoas que se dimensionava, também, pelas libras de vela,  enquanto o pobre usava o murrão, o tosco pavio de algodão mergulhado no azeite de carrapato, posto em uma quenga de coco a gerar o tremeluzente ou, usando uma palavra engraçada, bruxuleante.  Existia esta espécie de santos óleos de pobre; batizado que foi de pobre, crismava-se no cotidiano da miséria. Aliás, e lá vem pelo mundo da Mariquinhas, o povo da Capela usava um provérbio sábio: “Os mijos de padre, não são santos óleos!”. Resguarde-se, portanto, a Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo das fraquezas humanas de seus sacerdotes.


Eu e minhas irmãs na casa do meu pai





Como se pode ver, se os peixes não tivessem e fizessem sexo,  pouca luz teríamos nos tempos da Mariquinhas e era tudo caro. Talvez de tudo isto, tenha derivado o tratar à vela de libra, mesma coisa que, versando culinária, seria tratar a pão de ló, bolo que alguns atribuem à invenção de um cozinheiro italiano e aí vem toda a história do Pan di Spagna.  Até os bolos não podem viver a própria solidão na história.
               Pois bem, coitada da Santa: dentre as razões de sua santidade existia a de ser virgem. Sofreu perseguição por isto e nunca casou. Bem que podia ser a santa das vitalinas. O cara que queria manter laços de matrimônio com ela,  terminou por iniciar uma perseguição e ela findou decapitada. Sem qualquer  vontade de ser engraçado, era a única forma dela perder a cabeça com alguém. Luzia vem de luz. Antes de ela morrer, coitada, em seu martírio, preferiu arrancar os olhos, preferiu não ver a negar a fé.
Quando cortaram a cabeça dela, a moça era defunta  por sua afirmação de fé. Deu tudo aos pobres, esta gente que anda pelo mundo e nem sabe como. Foi decapitada  nos tempos do Imperador Diocleciano. Era o senhor Caio Aurélio Valério e o engraçado é que Diocleciano significa qualquer coisa como Glória de Deus e, mais engraçado ainda, é estar nas minhas lembranças de vida pela sua fúria imperial  e pela virtude da donzela de Siracusa, que vive também na beira da lagoa, entronizada na senhorial e bela igreja matriz de Santa Luzia que, agora,  é a do Norte referência na geografia da religião à Alagoas do Sul.
A grande intimidade de Santa Luzia comigo, sempre esteve nos meus olhos e em especial quando caía um argueiro. Sempre achei argueiro uma palavra solene e bem melhor do que cisco para expressar o incômodo sofrimento do cristão padecer de arranhado nos olhos.  Toda a palavra que termina em eiro parece ter um gosto especial. Como foi versátil o sufixo latino arius. Engraçado é o que aconteceu com eira, como se o feminino indicasse o lugar onde se coloca: o sapateiro faz sapato, a sapateira é onde fica o sapato, como a saboneteira é onde fica o sabão. Sabão arde muito quando entra nos olhos e minha mãe me ensinou: Passe sabonete com os olhos fechados!
Veja só: teve vez que saiu o argueiro e era sempre pelos cantos dos olhos. Um argueiro arranhento é de baixa qualidade, coisa que chateai. Era massagear, pedir à Santa Luzia e jogar água. Ainda tinha o recurso de outra pessoa dar um sopro no olho abertão e ver se o argueiro corria para o lugar de onde veio: o meio do mundo. O que era um cisco? Quem sabe bem é a galinha que vive ciscando ou, pelo menos, que vivia, galinha acabou: tudo hoje é frango.

Onde se fala em saudade

Uma doença terrível varreu Arapiraca. O povo chamava de dor d’olhos e, também, de uma forma mais nossa de todos os dias: pestana roída,  outra peste chata, mas eu nunca tive. Quando eu era menino, assim dos meus sete a oito anos, ouvia dizer que o povo de Arapiraca tinha a pestana roída: era o tracoma que vinha de um mosquito que dava no fumo, conforme se explicava. Uma pestana roída é muito feia. O povo dizia que o mosquito pousava em olho doente e saía para um sadio. A Eurapiraca de hoje, não sabe o que ela é: sabia da pestana roída, a do tempo da Cruz da Moça, a bem dizer nas alturas do caminho que ia para a Lagoa do Peleve, onde  moraram Tia Nini e Tio Lourenço.
 Hoje, o Peleve está dividido: o Novo e o Velho. Pareço saudosista? Sem dúvida que sou do Peleve Velho, aquele aonde eu chegava rodando em cima de barro. Hoje, somente mora no Peleve um primo meu, filho do Tio Lourenço, o Jassuamim. Estamos com um Old Peleve e um New Peleve e num logo-logo, peloruge-ruge moderno, na encruzilhada, pararemos em um fast food que se vem popularizando pelo interior, especialmente nas franquias das conveniências penduradas nos postos de gasolina, que por sua vez, substituíram as antigas bombas de manivela. A conveniência encontrou, nos postos de gasolina, um lugar for your convenience.
Não é substituto das antigas bodegas; elas foram sendo substituídas pelos mercadinhos.  A Conveniência é um complemento do posto por conveniência do proprietário e tornaram-se presas das franquias. As bodegas que marcavam posição nos bairros foram para as cucuias, desapareceram, como  a bodega do Seu Praxedes na Pajuçara, famosa, tinha de tudo e era a mais desorganizada de todas as organizações. Bodega tinha diversos significados e no dizer de Constâncio, era uma taverna volante, igual às  que se tinha nas feiras. A que eu conheci ao me fazer gente, foi a de Seu Cazuza em Penedo. Nada tinha de volante e nem servia comida, encravada na Rua da Penha, o balcão, o papel grosso de embalar sabão, mas que servia, também, para a quarta de  ceará.
A bodega mudou de significado; os sentidos mudam. Os lugares também mudam de significado e nossos mapas mentais não correspondem à cartografia oficializada. Passo pela Lagoa do Peleve, lembrando-me da Dindinha Nini e do Padrinho Isais e o passado parece rebrotar, embora eu saiba que tudo se encontra no fugidio da lembrança. Vezes que eu ficava na casa da Tia Nini; jamais poderia ir à Arapiraca sem procurá-la e ver seu sorriso carinhoso abrir-se. Quando eu conheci Tio Isaís, ele era administrador do Pitimiju, cujo nome era de madeira e de riacho, e ficava na frente da entrada para o Riachão do Cipó e de onde se avistava o Monte Verde de meu bisavô, o velho José Francisco de Almeida. Ficava no caminho do Arrasto de Santa Efigênia, pasto do Paraibinha, que meu pai dizia ser cheio de ingazeiras. Tio Isaís, mal o dia balançava suas cores, pegava o cavalo, caminhava para o Pitimiju e chegava tardezinha para tomar seu banho, jantar e prosear mais papai. Mais para a frente do Pitimiju, corria a Serra da Lagartixa, paredão bonito e logo o Arrasto, antigo engenho, e povoado por onde vadeou o Capitão Antônio de Almeida Braga: Arrasto de Santa Efigênia.
A Etiópia por via da colonização nos trouxe Santa Efigênia para um dos pequenos morros da mata em Alagoas; ela estava  em Núbia, cidade pagã, quando São Mateus, poucos anos após a morte de Cristo, foi levar a notícia da salvação para aquele mundo. A história dela está sempre ligada a São Mateus e não sei como vieram parar pelos lados do Paraibinha, que passa em leito pedregoso  nos seus arredores. Tive uma bela amiga etíope e castamente chamava-se Salomé. O seu negro de pele era inusitado,  maravilhoso e sinuoso e, para ser sincero, quando eu olhava para ela, jamais recuperava a Santa Efigênia e nem Paraibinha e nem Pitimiju. Havia um amigo etíope (quem me apresentou Salomé) e ele me dizia: ”Cuidado com sua vida: os homens daqui não gostam da gente com as filhas deles”. Falava sobre os fazendeiros de Michigan, do cinturão do milho, famosos por serem wasp: brancos, anglo-saxônicos e protestantes, matriz da altíssima direita americana.
A expansão do cristianismo trouxe a Efigênia e deu-lhe um engenho possivelmente movido a água. O povoado assentou-se embaixo e depois passou para cima e com isto, a Igrejinha ficou de costas para as casas. É muito bonito o caminho que vai do Cajueiro  para o Arrasto, ladeando o Paraibinha e  terras altas. De lá, passando pelo São João, a descida é fácil para as bandas da Cabeça de Porco e isso facilitou as manobras do Capitão Antônio de Almeida Braga nos dias da Revolta da Imperatriz.  Aliás, seguindo direto a entrada para as terras do Riachão do Cipó, onde já houve até uma feira grande,  bem na frente do Pitimiju, se vai para o Pacaviral do Agnelo e de lá se desce para o João Paulo.
Que bela poesia fez o primo Natalício de Almeida para o Pacaviral do primo Agnelo, todos falecidos. Era sobre as excelências da coalhada que se comia. Havia um quê místico de utopia nos versos breves sobre a coalhada, versos que ele, Natalício, quando vivo, bem dizendo, recitou para mim no portão do cemitério da Capela. Saudades do Agnelo e de sua mulher, os dois sentados ali, naquele mundão de paz e sossego que era a varanda da casa. Levei para mim, certa feita, um belo vidro cheio de café torrado e plantado ali mesmo.  Saudade do Natalício que grudava em mim na Capela  que tinha um naco da orelha arrancado mediante bala numa mata fechada. Eram dois a fazer desfeita num dia de caçada. Nada mais certo: um dia é da caça e o outro é do caçador. Natalício correu para a João de Deus e ali ficou na proteção do Coronel. O nome da Usina parece dia de visita de Papa.
Falando nas margens do Paraibinha, deu saudade do ingá; coisa gostosa, especial sendo caixão. Ingazeira sumiu como alguém, que vai a um pagode e não tem mais torna para casa. Quando era no tempo certo, nas feiras aparecia quem vendia o molho. É muita fruta que o açúcar destruiu. Se for lembrar, dá uma lista grande. Sumiu e peluche, sumiu isto, sumiu aquilo e viveu a cana e eu nunca mais vi um maracujá de cobra e coisas assim que não eram de primeira grandeza, mas enfeitavam este mundo imenso das Alagoas de meu Deus. Nossa, o ingá era uma delícia com seu branco aveludado e seu gosto doce que ia tomando gentilmente o céu da boca.  

Onde se fala no  direito de ter saudades

Na certa não sou um saudosista, mas sinto o sumiço do que me foi caro na vida. Não gosto de ver a casa que foi da Tia Lurdes e do Tio Waldomiro ter sumido no crescimento. Não gosto de ver o vazio do mercado da farinha que tanto me encantava, na mistura de farinha e às vezes salão de dança. Não gosto de sentir o desaparecimento do armazém onde aprendi a fazer manoca de fumo.  Pesa em mim, o sucedido com a  Cruz da Moça, um marco de aventura de bicicleta nas andanças com as primas Ivânia e Ieda.  A Eurapiraca passou o asfalto no meu passado. A feira acabou e a minha Arapiraca se transformou em uns poucos primos e cemitério de entes queridos. No entanto, por mais que lastime o asfalto, sei de sua necessidade. A maravilha do passado às vezes se desfaz no meio das razões do presente. Não é Santa Luzia? O que me diz, Santa Efigênia? Fico com os belos versos do Jorge de Altinho: a lembrança hoje é um sonho.
Era a minha Arapiraca da sorveteria Pinguim onde tomei muita cerveja, aquecendo os pés para a jornada de carnaval no Clube dos Fumicultores, cantado e pulando se a canoa não virar, eu chego lá. Salão grande, cheio de gente, não me lembro de ter visto encrenca, a mesa grande, minha Tia Lurdes capitaneando e mais atenta do que missionário que não quer que o diabo  chegue perto.  Também, tinha que estar atenta: carregava filhas, sobrinha e ainda tinha um sobrinho e um filho que entornavam todas: eu e meu primo e compadre Évio. Um dia, a tia observou um mal feito meu, e passou-me a bronca. Sentei-me meio murcho, esperando que ela tivesse sono, mas o quê? Quando dava na hora certa, e somente ela sabia qual, batia em retirada para casa.  Sei apenas, que perdi o assunto que me interessou de perto naquela noite; na outra, nem fui maluco de olhar para ver onde o pecado estava pulando.  Entendo com Alceu Valença que um diabo louro pode chicletizar total. E eu ali, um marmanjo com medo da tia de olhos de águia.

Onde se confessa que a santa foi largada  

             Voltando à santa que foi esquecida, minha mãe me ensinou a tirar argueiro dos olhos. O dedo deveria massagear o olho suavemente, para o argueiro caminhar para um dos lados e dizer com fé: Vai, vai cavalheiro, vai dizer a Santa Luzia para me tirar este argueiro! Às vezes dava certo. Faz é muito tempo que não sinto a chatice do argueiro; será que ele é somente do tempo de criança? Não sei, até que pode ser. Sei que esta tarefa de Santa Luzia, não condiz com o elevado de seu martírio.  É nobre, a função de tirar argueiro e proteger os olhos, ela que  perdeu os seus,  para testemunho de sua fé que sofreu os ataques de Caio Valério Diocleciano. A história dela tirar  os olhos,  desde muito era dita ser mentira, mas deixa a gente triste assim mesmo. Imagine a cena grotesca da bela e virtuosa donzela arrancar seus olhos, o que deve ter sido, com certeza, com uma faca.
Disto, Seixas chamou a atenção de seus leitores, ainda em 1718, quando fala que os antigos biógrafos de santo jamais mencionaram o fato e que, dentre os modernos, apenas um trouxe a afirmativa. Seixas tinha a autoridade que lhe era dada pelo honorífico de Cônego e por ser Lente Jubilado na Sagrada Teologia. Deus pediria tanto à casta donzela em afirmação de fé? Mutilar-se desta forma? Imagine a aparência, com os dois buracos no rosto, ela que era tão formosa? O fato é que Seixas comenta: de fato, seus retratos trazem a formosura e o trágico: ela com uma salva de prata, a carregar seus olhos.
Acho que é raro o santo ta que não sofreu pesada perseguição do poder, no que falo especialmente dos primeiros momentos de expansão, do ganho universal do cristianismo. Aí está uma coisa essencial: há tempo em que o poder era inimigo dos santos e há tempo em que o poder legitima os santos, quando então, a benção papal se dá urb et orbe, com a fundada ideia do católico, do universal em modo diferente do que foi nos princípios da expansão, do qual temos uma bela coleção de cartas no Novo Testamento. Pois é Seixas que em sermão pregado na casa da dita Santa em 1705 traz uma bela reverência à jovem que era de Siracusa: Luzida virgem, esclarecida martyr.
Além de cuidar dos nossos olhos, ela é o orago de Santa Luzia que foi a Vila da Alagoa do Norte e tem a facilidade de ver os pecados de Maceió que fica bem em sua frente. Nem olha para a esquerda e nem para a direita, firme no altar e  a sentir a imensidão da lagoa vista da altura de sua Igreja na pequena colina. Será que ela pode ver? Sei que o jesuíta Manoel do Reis pode dar uma pista para a imagem que se constrói ao afirmar-se que nossa Santa arrancou os olhos. Estamos diante de seus sermões publicados em 1724, em Évora. Esta foi a ação mais dificultosa por ela praticada. Devemos imitá-la, segundo ele afirma, com todo seu arroubo de orador sacro e que deveria ter belos, ilustres e consagradores sermões, além de não gostar d’olhos.
Mais ou menos nesta época, Bluteau nos traz um registro, que mostra como a sabedoria dita popular toma este contencioso siracusano e constrói seus adágios, que devem, por sinal, serem antiquíssimos. Bluteau escreve em 1728 e menciona três adágios, e confesso, nunca os ouvi e-quem sabe?– não seria uma construção popular que cai em desuso, perdurando para a santa a tarefa da proteção aos olhos. A culinária tomou o martírio e transformou em sabor, criando-se um doce chamado Olhos de Santa Luzia, feito com açúcar queimado e ovos, dando-se a forma arredonda d’olhos. É uma comida trágica pois junta o martírio com uma queimadura e a humanidade é tão mesquinha que ainda grita: delícia!
Existe uma belíssima oração transcrita por Pereira, onde ao mesmo tempo se desenha o espanto, o sagrado e a dúvida:
Cadê o garfo que furou
Os olhos de Santa Luzia?
Lá pro céu ela foi cega,
Senhora Santa Luzia !  

Onde se fala de poucas ruas calçadas

Mas,  apois bem, conheci Arapiraca com poucas ruas calçadas, desde o tempo da Força e Luz do Waldomiro, a mandar energia pelo cair da noite, o motor funcionando e alumiando.  Ali na Praça da Prefeitura, nem fiu de calçamento. Andávamos de bicicleta por ali, pela frente dos Correios... Se não me engano, nem a rua do Grupo Escolar era calçada. A água era mais do que salobra; não havia sabão e nem sabonete que fizesse espuma.  Era um banho engraçado, frio feito as seiscentas... Lá no fundo da casa da Tia Lurdes tinha uma cacimba e um tanque. A água do tanque matava de frio e eu nú e tremendo e minha mãe jogando balde d’água. Frescura de frio; eu tinha era que tomar banho e bem tomado e mostrar que havia tirado o godô, o grude detrás das orelhas. Depois veio a água do São Francisco que era um flozô, doce, espumenta, uma beleza de banho, mais fácil de tirar o resultado das andanças que misturavam chãos e poeira.

Referências
Junto ao texto manuscrito encontrava-se a referência que segue:
CONSTÂNCIO, Francisco Solano.  Novo dicionário crítico e etmológico da língua portuguesa. Paris: Oficina Graphyca de Casimir, 1836.
PEREIRA, José Carlos. O encantamento da Sexta-Feira Santa:  manifestações do catolicismo no folclore brasileiro. São Paulo: Annablume, 2005.

REIS, Manoel dos. Sermoens do padre Manoel dos Reys da Companhia de Jesus...Évora: Oficina da Universidade, 1724.

SEYXAS, Joseph da Natividade. Medalha Evangelica Laurada na frente com a rosa alexandrina de Santa Catarina martyr... Liosboa:  Officina de Antônio Pedroso G



Memória: a história familiar




Minha irmã, covardemente assassinada
Se eu recordo, qualquer caminho para o Juazeiro era longe. Os romeiros costumam cantar dolentemente,  o quanto de estrada falta para chegar, muitas vezes o sol nasce e torna a nascer, e o Juazeiro parece perdido na fumaça da terra. Fui de carro; imagine nos tempos de Tio Lourencinho e dos irmãos Dondon e Dionísio.
Minha caderneta de lembranças e pendências com a vida (II)
Luiz Sávio de Almeida

Sumário 

Onde se fala sobre o que se pretende
Onde se fala sobre como Fausto voltou para Capela 
Onde se fala um pouco sobre Fausto
Onde se fala sobre as andanças do Tio Cícero



Onde se fala sobre o que se pretende

Talvez este trecho deveria ter sido escrito no primeiro grupo de lembranças que publiquei. Não fiz e há tempo agora. São anos juntando informações e lembranças. Decidi  começar a publicá-las, como se eu fosse buscar o passado e conta-lo, seguindo uma linha que foi aberta pelo primo e brilhante historiador que foi o Wenceslau de Almeida. Ele publicou alguns artigos, inclusive, que passam pela história da família, na revista do Instituto Histórico. Wenceslau era um erudito sobre a história do vale do Paraíba e, em particular, da área da antiga Atalaia, da qual, até finais do século XIX, Capela era um povoado.
Foi da década de vinte do XX, que Wenceslau começou um levantamento da genealogia da família, coletando dados de cartório, ouvindo fontes em conversa e disto gerou o que conheci como Caderneta do Wenceslau, uma pequena caderneta de anotar compras em bodega, tipo conta corrente. O meio onde escrevia deu nome à escrita. Ainda vi este material, certo dia em que fui com Eustáquio Moreira à casa do Coronel José Otávio para uma conversa. Não sei com quem anda o rico acervo fotográfico que existia na João de Deus, a usina que comandava a economia da Capela, Cajueiro e parte de Atalaia.
O Eustáquio Moreira copiou a parte referente à família dele e tembém vi e copiei o que ele montou. Era a caderneta do Eustáquio, primo, irmão da Áurea,  casada com o Pedro Macário do Metro de Ouro, loja de tecidos na Moreira e Silva em Maceió. Da tia Terezinha conheci o Aberal e o Zé Augusto. Ele era – salvo engano – pracista e nos visitava em Penedo. Parece que ambos foram para o Rio de Janeiro. Acho que a Antônia, prima,  copiou parte do trabalho do Eustáquio e acrescentou informações. Quem tem os cadernos dela é o filho: o Hélio da Gameleira. Falavam que o Efigênio escreveu também uma caderneta, mas o filho me confirmou que não.
O Cícero da Capela deve ter anotado muita coisa; faleceu. O Soriano também: ambos faleceram.  Talvez o registro que tenha ficado e de alta importância é o chamado livro do véio Pedro, irmão do Wenceslau que o ofereceu ao coronel Zé Otávio. Quando o coronel morreu, o livro escafedeu-se, mas estava guardado com o Tonho Moreira.  O Duda Moreira recuperou, mandou datilografar e repassou para nós; recebi uma cópia dada ao Sérgio Moreira.
Tudo isto faz parte de um grande conjunto de informações, mas privilegia Almeidas, pouco existindo sobre os Albuquerque Pontes. Sei que há um trabalho recente e que foi feito pelo pessoal do Clóvis, segundo me disse a Solange, filha dele e minha prima em segundo grau. No entanto, conheço livros de Ieda, prima, filha da Tia Lurdes, trabalhos do Rosival e do Roberval, filhos de Tio Lourenço. Há também um outro  importante trabalho da prima Sonia Xavier de Araujo-Ulrich.
Papai escreveu um livro sobre sua vida e assim fez o Aloísio Costa Melo, primo dele e filho de Tio Pedrinho. Tio Pedrinho também escreveu suas memórias. Faz tempo, meu pai adoentado, eu sempre estive com ele em torno de duas horas por dia e muitas vezes eram todo o sábado e todo o domingo. Haja histórias e mais histórias da Capela e de outros cantos.  Um dia ele me pediu para escrever a história da Capela. Disse que faria e comecei a tomar notas e, além do mais, tenho mania de pegar dados sobre curiosidades que me aparecem.
Assim foi brotando a ideia de escrever esta caderneta de lembranças, deixando os assunto chegarem sem consultar a esquemas e  sem ter preocupações acadêmicas; deveriam ser notas que fossem escritas a pedido do momento e que muitas das observações e anotações guardadas sobre o contexto do tema fossem aproveitadas. Cheira um pouco ao modo narrativo que Tio Pedrinho ensinou para fazer folheto de feira. Tio Pedrinho ensinou a meu pai  que me ensinou a arte do folheto de feira. Minha primeira publicação foi um deles e intitulado voto não se vende e consciência não se compra, publicado pelo Serviço de Assistência Rural da Arquidiocese de Natal.  O segundo foi um folheto intitulado As dores do gigante ou a fachada do Brasil, escrito em parceria com meu Compadre Chico Traira,  já falecido. Vendíamos nas feiras do Rio Grande do Norte.
Dele, não ficou qualquer registro; do primeiro, tem-se, mas o segundo ficou enterrado nas feiras do Rio Grande do Norte. Dos folhetos, ficou a mania de querer brincar com a narrativa;  ter um objetivo, mas andar por desvios e desvios e sempre voltando ao tema. Acho que isto, esta forma de escrever define este relato de lembranças e, nele, por opção, jamais ter como base uma escrita acadêmica. No fundo, estarão as lembranças a mim repassadas e as minhas próprias recordações de vida, vez em quando entrando na história a que vou chamar do prosaico,  com informações que foram anotadas sobre objetos e situações de nosso dia a dia.

Onde se fala sobre como Fausto voltou para Capela
              
Fausto de Almeida
 Imprensado em Maceió, na pobreza da Rua do Cisco, cinco filhos nas costas –  Dondon tinha menino encarrilhado – Fausto vai ter de voltar para Capela, baixar a cabeça, contar com a ajuda que será dada pela Vidinha e pelo Major, irmão da Dondon. Montam outra bodega e a casa ainda hoje existe, perto do Major que era onde está o Clube.  Haviam descoberto, mais uma vez, a repetição do caminho para Fausto Vieira de Almeida: ele teria de ser bodegueiro e agora, esperar pelos bons dias de feira, longe do mercado, quase em frente ao Torquato Cabral, o belíssimo grupo da admirável Capela.
               Era pelos lados do grupo, que vivia a Dindinha Belmina, linda, cabelão descendo pela cintura, oitão do grupo e passagem para a beira do rio. Andava cega, quando a vi.  Casinha, acho de porta e janela, caso me recorde direito.  Se não fosse cega, era abrir a janela e ver o rio ou a pracinha em frente ao grupo. Pois bem, Fausto volta para a Capela e o que fazer da vida? Ser domesticado mesmo como bodegueiro; do que ele poderia viver numa cidade como Capela naquele tempo? Se hoje é difícil, imagine como era.
               Sei que vai vender jogo de bicho, ser cambista.  Minha mãe ajuda o pai e andava preenchendo pule. Sei que vai ser fiscal municipal da feira, espécie de sinecura de baixo ganho e sei, também, que vai ser porteiro do Cine Ceci da Capela, onde Carlito e o Boca Larga faziam dezenas de risos, com a música saltitante do Maestro Chico Caetano. Passar fome, não passaria que Vidinha estava ali, na primeira fila. 

Onde se fala um pouco sobre Fausto

               E pouco se vai falar da vida do velho Fausto Vieira de Almeida, salvo que não ligava para nada, apesar de ser um homem muito bom. Então, dos defeitos, somente o roubar e o beber não existiam. Rabo de saia era seu maior encanto: passava uma e dando a ordem, o velho Fausto correspondia e tudo isto, enquanto tinha uma mulher honesta, pudica e guardada em casa à sua espera. Dondon sofria com Fausto; e lá vinha a obrigação de dar de comer aos filhos e tudo escorado em uma máquina de costura, que muitas vezes era apenas uma imagem para dizer que o irmão ajudava.
               A velha Dondon pegava fogo igual a busca-pé, com extrema facilidade e acho até que Fausto matava com delicadeza, ou na unha como se costuma dizer. Tinha dia que ela começava a gritar e ele dizia baixinho: “Peste!”. Aí é que a Dondon desembestava: ”Fale alto! Tenha coragem! O povo vai pensar que sou doida!”. Aperreios, talvez, de um  amor aos gritos. Separar? Loucura naqueles tempos; era virar uma mulher a um passo da difamação e aí os dois seguiam as ruas da Capela com suas tristes ou alegres afirmações de vida.
               Fausto era calado e Dondon era de arranco. Pavio curto ou vida sofrida? Quem sabe? Não exitava em colocar cinturão com cartucheira nos quartos  e sair procurando uma conversa sincera  com lobisomem. Tinha um bicho sem vergonha que estava correndo e era até de dia, luz do sol acesa. É que um danado inventou de vir andar na Capela e ficar espiando as meninas, as moças tomarem banho no Poço do Pai Pedro. É muita safadeza... E parece que tudo foi no tempo do Juca Malta como delegado, homem duro, sem moleza, não aguentava prosa viesse de onde. Papai trabalhou com ele e contava histórias interessantes.  Pois o lobisomem sumiu para ninguém mais dar notícia, desapareceu assim, misterioso como chegou. 
               Contam que vovô teve uma amizade até de botar casa;  Dondon soube, levantou e foi lá e tocou fogo na casa da mulher que nunca mais viu sombra do Fausto, pois rumou para o oriente médio, numa saída de rabo de foguete. Destemida, sem dúvida, aguentava tranco e talvez fosse bem mais aguerrida de que Fausto. Uma vez, salvou a vida da filha de morte certa na mão de um ladrão.  Não fosse Dondon, a querida tia estaria morta. O ladrão amarrou um arame na porta e por dentro: fechou.  Dondon escuta os gritos e arromba a porta com arame e tudo. O ladrão corre e imagine o que passou no coração da Dondon ao ver a filha ensanguentada por conta das facadas que levou. Ladrão deu ás de Villa Diego e fugiu para a rua. Tio Lourenço ouviu os gritos e veio correndo    e pegou o ladrão, dando-se uma história que é melhor parar por aqui.
 Tio Lourenço era magrinho, mas brabo que nem um siri na lata e somente tinha um canivete no bolso; assim mesmo, era de apontar lápis. Havia um tipo de canivete, onde se usava as lâminas de barbear que já haviam passado no rosto: cega. Quebrava a metade, encaixava em um suporte e isto deu para vadear no ladrão. A Gillete azul deve ter ficado vermelha. Veja que da barba, a Gillete passou para outro uso, ela que foi criada por volta de 1900, vivia junto com um pequeno pote e um pincel de fazer barba, substituindo a navalha que se amolava numa correia, e tirando dinheiro dos barbeiros, numa popularização que deve ter começado a se fazer depois da I Guerra Mundial.
É claro que se usava a navalha em casa. Mas a Gillete era bem mais prática; meu pai tinha um estojo bonito e logo pela manhã, após banhar-se, colocava o creme do rosto e passava a lâmina; não era tarefa difícil, mas havia a necessidade de tomar cuidado para não arrancar os tamboques; tarefa mais delicada era escanhoar, a mão esticando a pele e a outra passando a lâmina, examinando-se sempre por onde ficava pelo e ele era cortado na contra mão. Chato era quando a barba tinha redemoinho. Tinha tempo de menino tirar a barba; era quando os fiapos já ficavam incomodando e estava pelos fins da mudança de voz.
               Pouco vou saber a mais sobre meu avô. Mamãe, que era louca por ele, dizia que era o homem mais bonito do mundo e falava de peito cheio sobre ele; sentia uma verdadeira adoração, mas sempre tinha a ressalva no comportamento, o não ligar para a casa. Seria verdade? Sei que até a notícia de sua morte passa pelo inverossímil: meio dia, tomou um caldo cana picado, mergulhou no Pai Pedro e já saiu roxo, tal o ramo do estupor. Na verdade. Pelo que sei, foi um baita câncer, aquela doença que mata aleijando. Sumiu Fausto Vieira do mundo dos vivos. Nem mesmo a catacumba achei no cemitério da Capela. Disseram-me que se enterrou na cova de um parente. Mostraram. Será? Pois este era Fausto, um grande mistério na vida e na morte.

Onde se fala sobre o casamento de Maria José

Maria José de Almeida
Dondon, se teve outros amores, eu não sei. Apenas, na rua, andava de luto fechado, toda vestida de um preto forte; em casa, roupa mais à vontade, meio cinza, meio viúva já descansada. E assim foi por anos, até morrer, indo à Igreja, missal na mão, curvada para o tempo.  Minha mãe casou de surpresa e quando disse à vovó que iria sentar praça ao lado do  Manué, a velha rebateu: “Mas minha filha, você tem coragem de casar com um homem mais pobre do que você?”. Casar de surpresa era bom.  Não se gastava dinheiro, opção de pobre, casava e depois comunicava aos amigos; era diferente do casar fugida. Pois foi assim que se deu o casamento da Maria José do Fausto mais Dondon com Manué. Mamãe arrastou o padrinho Zé com ela, foram à Igreja e casaram: ela e Manué.
Manué  tinha comido uma tremenda poeira de vida; agora, a Igreja o abraçava, mas já não era tão pobre assim, já havia colocado as asas de fora e poderia sustentar a mulher.  Tomaria o rumo do Quebrangulo e já deveria ser Secretário da Prefeitura da Capela. Era um exagero chamá-lo pobretão. Nem sei para onde foram depois que casaram. Pai morava na Rua de Cima, conhecido lugar de pobreza; acho que morava com a Donana, sua irmã por parte de pai, que depois rumaria para o Rio de Janeiro por onde criaria os filhos. Pouco sei da Donana, minha tia, mas sei que era uma pessoa notável, abandonando tudo na Capela e correndo para o Rio a fazer, bem dizer, uma nova família nas bandas de Niterói. Era a mãe do Heitor, primo e grande amigo de meu pai. Nesta época, seu irmão José de Almeida era dos ricos das Alagoas e ela nem psiu deu: foi embora.

Onde se fala sobre as andanças do Tio Cícero

Os filhos de Dondon iam encontrando seus próprios caminhos; o primeiro morreu e se chamava Bartolomeu; o segundo, Cícero Romão Batista, viveu bangolando na Capela e tomou o destino do Rio de Janeiro, com o primo Dário que o levou com a autorização da Dondon e o ingressou no Partido Comunista sem a autorização dela, para imenso desgosto da velha minha avó. Tia Nini já havia casado com o Tio Isaís;  Maria José tomou seu rumo com o Manué, Lurdes vai ser Mestra Rural e vai viver em Limoeiro de Anadia, com Dondon e Lourenço que, acho, era o caçula, o ponta de rama. Maria José de Almeida também era Mestra Rural, curso tirado no Torquato Cabral.
Conheci o Tio Cícero ainda no Rio de Janeiro. Diz a Jurema minha prima e filha dele que estou errado, mas acho que foi numa loja de vender meias e chamada Olga. Meu pai foi resolver uns negócios e me levou com ele. Tudo terminado, fomos conversar com Tio Cícero, que nesta altura já era casado com a Tia Antônia, pessoa de raiz familiar na Serra Talhada do sertão de Pernambuco. Os dois estão enterrados aqui em Maceió.
Chegamos lá, perguntamos por ele, e ninguém respondia e passa tempo, até que papai diz ser cunhado dele e dá mais uns toques;  então, como seria no cinema, Tio Cícero abre a cortina, sai e dá um espanto: “Manoel!”. Depois me abraçou e tudo ficou assim na minha cansada cabeça. A Dondon e sua filha Lurdes conseguem trazê-lo de volta para o aconchego do lar alagoano e vem com a metade dos filhos e o resto faz aqui mesmo, dentre eles a minha primíssima Jurema.
Eu gostava dele e muito. Fui ao enterro. Ele me chamava de Comandante e, quando bem velhinho, quase se arrastava pelo meio do mundo. Era baixinho, meio peralta, bigode, a cara da Dondon, se minha avó  usasse bigode. Sempre foi muito bom comigo e vezes filei a boia de sua casa. Ele tinha uma estante, onde guardava seus livros da Editorial Progresso, publicados com o ouro de Moscou. Herdei a sua coleção das obras de Lenine. Acho que ele tinha, também, as de Stalin. Tio Cícero foi em cana; não sei se levou umas pitombadas. Dondon morria de agonia e rezava para o menino ter juízo; acho que esteve preso no tempo em que o Zé Maria, primo, estava também, para as amarguras da mãe que chorava suas desventuras.
Nem preciso dizer que estamos diante do Santo Padre do Juazeiro e que o nome do tio era resultado da fé que Dondon vivia, espécie de catolicismo que não acreditava nas loucuras que se diziam com meu padrinho. Dondon foi ao Juazeiro; saiu da Capela, montada em um cavalo e rumou para o Cariri; acho que foi com Salvador, pessoa de confiança e fogueteiro na Capela. Na mesma oportunidade e não sei se foram juntos, viajou o Major Dionísio com destino à Meca. Dizem que o Padrinho pegou na beca do Major, deu-lhe uns sopapos e ninguém soube como o Santo adivinhou a traição que doía na Tia Vidinha. O Padrinho quando pegava bela beca, era como se excomungasse e ele tinha a força no sangue vertido na boca da beata Maria Araújo.
Fazia tempo, que morava no Juazeiro um santo homem de nossa família: Tio Lourencinho. Eu o conheci quando ele voltou para Alagoas; vestia caqui, um lenço vermelho no pescoço e passava o dia lendo livros sagrados. Vendeu tudo o que tinha e foi para o Juazeiro onde montou uma casa de santos e se fez da intimidade do Padrinho. Casou com a Tia Mocinha e tiveram um filho: Paulo.  Paulo morreu quando andava com os burros pelo sertão, a chuva caiu num de repente, a água do rio engrossou e ele não teve tempo de sair do caminho que antes estava seco e esturricado. Tio Lourenço morreu, parece, em Viçosa, refém da marrada de uma vaca braba que pegou nos quartos lá dele.
Quem o trouxe de volta foi a bondade do Clóvis, filho do Antônio Toledo de Albuquerque. Clóvis era primo de minha mãe e ele sabendo das dificuldades de vida do tio, mandou chama-lo e foi assim que ele terminou se findando por aqui. Parece que a Tia Mocinha enterrou-se para onde parte da família mudou.