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segunda-feira, 11 de dezembro de 2017

Memória: história familiar de uma jornalista




 

 Olívia é jornalista, natural de União dos Palmares. É formada pela Universidade Federal de Alagoas e pós graduada em Marketing e Comunicação. pela Unifa. Este texto foi escrito em 2004.






A rua, a escola, a vida

Olívia de Cássia Correia de Cerqueira



Sumário 

1.0 – Meu nascimento - 2.0 - Personagens que ficaram na imaginação - 3.0 -  A ditadura


 1.0  - Meu nascimento
         
Casamento dos pais,
Nasci em União dos Palmares, Alagoas, aos 9 de janeiro de 1960, entre dez horas da manhã e o meio-dia, na saudosa Rua Demócrito Gracindo, mais conhecida como Rua da Ponte, na casa que ficava vizinha ao antigo hotel de seu José Otacílio (seu Zeca) e dona Lia, pais dos amigos de infância: Lucinha, Inêz, Bida e Babiu, Zé e Mano.
Minha mãe contava que quando a parteira chegou para fazer o parto eu já tinha nascido. A mulher cuidou apenas do corte do cordão umbilical e da limpeza. Meu pai só veio saber do meu nascimento quase à tarde, segundo me contou minha mãe. Meu primeiro nome foi uma homenagem à minha avó materna. O segundo nome foi uma homenagem a minha irmã falecida, à santa e à minha prima-madrinha Rita de Cássia Paes Peixoto, que mora no Rio de Janeiro.
Quando tia Osória (irmã mais nova de mamãe) ganhou a sexta filha, também colocou o nome de Rita de Cássia, minha companheira de brincadeiras e brigas da infância, e a irmã que eu não tive e que amo muito.  Segundo os comentários que minha mãe fazia, para chegar ao meu nome ela conversou com algumas amigas e conhecidas. Dona Gerusa da farmácia sugeriu para mamãe que eu me chamasse Paulina (descobri, quando estava pesquisando a origem da família, que tive uma tia com este nome), mas mamãe relutou e eu ganhei o nome da minha avó e da minha madrinha, juntos.
          Só pude entrar na escola regular aos sete anos de idade, porque era uma regra da rede oficial de ensino no Estado, nos anos 60. O fato me causou muita decepção e raiva da professora Maria Mariá Sarmento, que era diretora de ensino, em União. Eu achava que tivesse sido má vontade de Mariá e acreditava que tivesse sido ela quem impediu o meu acesso à escola. Mais tarde compreendi a questão, isso já moça feita, como diziam no interior. A professora Mariá era uma mulher inteligente e respeitada na região, conhecida pela sua irreverência e bom humor. Foi a primeira mulher na cidade a usar calças compridas. Sua história é muito interessante e seu sobrinho, Paulo de Castro Sarmento Filho, trata de reavivar a memória dos palmarinos mantendo o acervo da tia com muito esforço. A casa de Mariá estava em ruínas e foi restaurada pela prefeitura em convênio com outras parcerias oficiais.  Minha tia Osória era muito amiga de Mariá e lhe tinha muito respeito.
          Quando eu entrei na escola oficial, aos sete anos, já sabia contar até dez, rabiscar meu nome completo e já conhecia as primeiras letras do alfabeto.  Aprendi com meu irmão Petrúcio, em casa, e com a professora Josete Belém, na escolinha do Bangu, na Rua da Ponte. Eu gostava muito de estudar, era esforçada, mas sentia dificuldade no aprendizado. Nos meses em que fiquei doente, pedia para mamãe colocar os livros na cabeceira da minha cama, ou no travesseiro e caía num pranto desesperado, porque não podia ir à escola, nem enxergava direito.
Eu tinha muita ânsia de aprender, gostava dos meus colegas da escola, tinha um afeto profundo pela professora, mas para ser aprovada no exame do Admissão, que dava acesso ao antigo ginásio, uma espécie de vestibular do ensino fundamental, precisou que mamãe me colocasse nas aulas de reforço da professora Doralice, a Dora, filha de seu Pedro Fogueteiro, junto com meu irmão Paulinho. Foi com Dora que aprendi a gostar de fazer Palavras Cruzadas. Eu me sentia orgulhosa, quando ela me emprestava as suas revistas para que eu fizesse Caça-palavras e as Diretas. Devo a ela, além das aulas que me deram acesso ao ginásio, a facilidade do aprendizado que desenvolvi com as Cruzadas.
          Depois de Dora e já no ginásio, quando fomos morar na Rua Tavares Bastos, mamãe nos colocou para estudar particular com Aparecida Amaral, também um doce de criatura. Mas a minha primeira professora, no Rocha Cavalcante, foi Nina Rosa Sarmento, a quem chamávamos carinhosamente de mamãe Nina Rosa. Eu e minhas amigas Rosemary Veras e Gracinha Melo, entre outras colegas, íamos buscar Nina Rosa em casa, de tanto que gostávamos dela. Desenvolvemos tanto afeto pela professora que quando nasceu o seu primeiro filho nós costumávamos fazer-lhe breves visitas, na esperança de um afago, de uma palavra de carinho. No fundo, acho que nós éramos muito carentes de afeto, pelo menos eu o era. 

2.0 - Personagens que ficaram na imaginação

        
Criancinha
                
A literatura brasileira e mundial está recheada de personagens  instigantes que ficaram no imaginário popular; muitos desses personagens se tornaram o retrato de uma época. A realidade muita vezes imita e repete a ficção, até por que muitas vezes a vida imita a arte e a arte, por sua vez, é baseada no nosso cotidiano.
        Minhas lembranças me remetem agora a quatro pessoas que viveram em épocas deferentes na minha terra natal e que ficaram na minha imaginação até hoje. A primeira é uma senhora cujo nome ninguém dizia ou sabia, mas que a população chamava de dona Eru deixando a mulher irritada.  Não sei se sofria das faculdades mentais, mas morava numa casinha em frente ao Colégio Santa Maria Madalena, vizinha ao Grupo Escolar Jorge de Lima e vivia andando pelas ruas de União dos Palmares.
Os moleques da rua não perdoavam e quando ela passava, eles gritavam: “Dona Eru” e ela gritava “é a mãe filho da puta”. E assim, cada dia, com essa irritação daquela senhora em ser chamada de dona Eru, os meninos aproveitavam para mexer com ela toda vez que passava, até por que ela chamava muito palavrão e os meninos, na sua maldade infantil, gostavam de vê-la com raiva.
Outra gozação em torno dela era por conta das pernas que eram finas e quando havia bingo nas festas o locutor dizia: “E agora vamos chamar as pernas de dona Eru”. Era o número onze e todos caíam na gargalhada.
Maniquinho era um homem negro, alto, tinha as pernas levemente arqueadas lembrando as do craque Garrincha. Jogava futebol como poucos nos gramados do campo da Rua Nova. Para sobreviver ele cortava carne no mercado público de União e tinha a arte do futebol em seus pés. Era um verdadeiro craque e quem viveu naquela época em União pode confirmar o que estou dizendo.
          O único problema de Manica era a cachaça, apesar de ter família conhecida de todos em União, quando ele se embriagava, dormia em qualquer canto: nos fundos do alambique de seu Orlando Baía, ou nas calçadas da cidade. Ninguém mexia com ele porque todo mundo gostava daquela figura, que virou lenda no futebol palmarino.
          Eu ajudava na mercearia no meu pai, principalmente aos sábados, para ter direito a minha mesada semanal e ele chegava lá, às vezes já tomado pelo álcool e começava a entabular umas conversas sem nexo e eu passava um carão nele, no meu entendimento de criança sobre aquele vício que o estava matando, antes de despachar a bebida, que ele tomava em três tempos e logo ficava sem sentidos.
         
Naquela minha rotina da mercearia do meu pai convivi com muitos personagens interessantes e que dariam belos romances se fossem pesquisadas suas vidas a fundo. Era um verdadeiro laboratório ficar na mercearia do meu pai, na Rua da Ponte, aos sábados, dia de feira em União. Aprendi muito da vida naquele lugar disso eu tenho certeza.
Outros dois personagens da minha história são: Manu e  Cocota (o Arroxa), como chamávamos. Manu era descendente de Zumbi, vivia descalço, nunca usou calçado e perambulava aleatoriamente pelas ruas da cidade. Também não tinha discurso articulado e dizia coisas que a gente não entendia muito bem; sua fala era sempre entrecortada e mansa e subia a Serra da Barriga quase todos os dias.
          O Cocota  era um senhor muito engraçado,. Tinha emprego fixo mas gostava de fazer companhia aos jovens na Avenida Monsenhor Clóvis Duarte. Era um exímio dançarino e da mesma forma que a gente ficava sempre ouvindo música no carro do meu amigo Alonsinho, na Avenida, lá vinha o Cocota nos fazer companhia e ensaiar seus passos diversificados.
          Todos ríamos muito com  aquela disposição para a dança  e ele caía na brincadeira conosco participando dos nossos melhores momentos em União. Tudo isso me veio à lembrança por conta das fotos do baú das minhas memórias. O baú da minha avó Olívia.
          Na Rua da Ponte, nos anos 60, não tinha água encanada. Na nossa casa dos fundos da mercearia, mamãe pegava água do rio e colocava em dois tanques, para os serviços da rotina do nosso lar.  Já na outra casa, vizinha ao armazém de compra e venda de cereais, tinha uma cacimba de grande profundidade, que dona Antônia se servia para lavar roupa, pratos, o banho da família, e outras atividades da lida doméstica, mas a água era salobra e não servia para beber. Sendo assim, íamos buscar água potável em uma cacimba, na Fazenda Jurema, de propriedade do dr. Antônio Gomes de Barros, pai do ex-governador de Alagoas, Manoel Gomes de Barros. A cacimba tinha uma água cristalina e, de tão límpida, era azulada.
          A criançada e a vizinhança saíam com latas na cabeça, o que depois, na escola, resultou num apelido do meu irmão Petrúcio de “Lata d’Água”, que até hoje ele não gosta. Na nossa ida à busca da água, na Jurema, nós terminávamos subindo nos pés de manga do sítio de dr. Antônio e saboreávamos gostosas frutas, além de ficarmos curiosos com o gado zebu da fazenda. Meu irmão Petrúcio era muito levado e mamãe vivia às turras com ele.  Um dia  Petrúcio foi mexer com uma vaca, no sítio de seu Leão, pai de dona Carminha Leão e avô de José Leão Praxedes. A vaca lhe deu uma cabeçada que lhe quebrou os dentes. E quando ele chegou em casa, todo ensangüentado, mamãe, que estava grávida de quatro meses, abortou na hora, segundo ela nos contou quando já estávamos adultos.
Das peripécias de meu irmão Petrúcio ficou um episódio de uma briga dele com Zé Praxedes, que depois veio a se tornar prefeito de União dos Palmares e marido de Nadja, filha da melhor amiga da minha mãe, dona Neuza, e minha colega de escola. Da mesma forma que mamãe era de guardar muita mágoa, costumava lembrar o fato acontecido. A outra molecagem de Petrúcio foi jogar, já na Rua da Ponte, um mosquito de São João debaixo da saia da filha de uma senhora que todos só chamavam de “Viúva”, que morava na cabeça da ponte, onde depois funcionou o bar de seu Antônio Timóteo.
Por conta desse episódio do mosquito, papai lhe deu uma tremenda surra e o colocou de castigo, ajoelhado em caroços de milho, com um banco pesado e uma bacia na cabeça. Papai não brincava quando castigava meu irmão Petrúcio; meu irmão mais velho foi o que mais apanhou do meu pai.
Petrúcio fazia muitas brincadeiras conosco e se vestia com um pano velho, preto, de um guarda-chuva sem uso de papai; imitava o Zorro que assistíamos na televisão em preto-e-branco. Ele subia na parede da mercearia e ficava “atormentando”  lá de cima. Além dessas brincadeiras, tinha a do “padre Lara Lara”, que era feita em cima das camas, o que rendia muitos gritos da minha mãe.  O “padre Lara Lara” se vestia de branco (era um lençol de bramante da minha mãe) e ficava dizendo em voz fúnebre: “Eu sou o padre Lara Lara e vim para pegar vocês”. Eram brincadeiras gostosas para nós, mas que sempre terminavam em castigo, mais para o lado do meu irmão.
          Nós aprontávamos muito e outra brincadeira que gostávamos de fazer era a de mocinhos e bandidos, em cima das sacas de algodão, que o Valdemar ensacava, no armazém de papai. Valdemar às vezes se aborrecia com as nossas brincadeiras, pois bagunçávamos todo o seu serviço. Nas brincadeiras de faroeste que nós empreendíamos no armazém eu era sempre a mocinha que seria resgatada pelo meu irmão Petrúcio.      A mercearia que meu pai possuía  na Rua da Ponte foi o que permitiu que nossos pais nos criasse com dignidade. Foi dela e do armazém de compra e venda de cereais que papai tirou o nosso sustento. Todo sábado eu e meus irmãos íamos ajudar a despachar as mercadorias, porque o movimento era grade ali. O espaço ficava muitas vezes lotado. 


Os matutos e feirantes que moravam nos sítios e na Serra da Barriga, quando terminavam de comercializar seus produtos na feira, iam pra lá fazer as compras semanais ou mensais. Meu pai vendia fiado e nós anotávamos todas as contas em cadernetas. Toda semana, quinzena ou mês os muitos fregueses do meu pai pagavam suas dívidas. Era uma relação muito mais de confiança que se tinha. A maioria pagava tudo certinho, mas meu pai também levou muito calote e quando se aposentou meu irmão teve trabalho para fazer o levantamento dos fiados e para efetuar as cobranças. Meu pai não era de cobrar aos devedores, porque ficava com vergonha. Nesse aspecto eu também puxei a seu João Jonas. 
          Os cavalos dos fregueses da mercearia ficavam amarrados por uma corda, na porta do estabelecimento e uma vez meu pai sofreu um pequeno acidente quando foi descarregar milho ou feijão. Levou um coice de um cavalo,  que o deixou ferido e ficamos preocupados. A medicação que se dava quando acontecia acidente no interior, no primeiro atendimento, era dar para a pessoa acidentada cerveja preta e foi o que indicaram ao meu pai por conta do ferimento provocado pelo coice do cavalo.
Eu passava horas e horas na mercearia do meu pai e hoje eu vejo que aquele local me serviu de laboratório, tantos eram os personagens interessantes, cada um com uma história de vida para contar. Quando eu não estava ajudando a vender as mercadorias eu ficava lendo, conversando com algum vizinho ou fazendo Palavras Cruzadas e aproveitava o tempo ocioso para resolver o Jogo dos Erros, as Diretas e o Caça-Palavras. Pegava jornais antigos como o Jornal dos Esportes, que tinha um papel cor-de-rosa; jornais que meu pai comprava em quilo para embrulhar as mercadorias como sabão, pacotes de café e outros produtos e ficava resolvendo aqueles jogos durante todo o tempo se não tivesse outra ocupação.
          Às sextas-feiras meu pai costumava dar mais esmolas do que durante a semana. Mendigos, pedintes faziam fila na mercearia para receber a cota que o meu pai distribuía toda semana. Ele colocava para cada um uma quantidade de cada produto da cesta básica: café, açúcar, charque, farinha, sabão, peixe salgado e bacalhau, que naquela época era alimento para pessoas de poucas posses, ou outro produto que a pessoa necessitada requisitasse. 

3.0 - A ditadura



          Segundo relatos históricos que pesquisei nos sites de história na internet e nos livros do professor Florisval Cárcere, em 31 de março de 1964 até a redemocratização, em 1985, instaura-se no Brasil o regime militar, que foi um golpe de Estado. O regime foi marcado pelo autoritarismo, supressão de direitos constitucionais, perseguição policial e militar, prisão e tortura dos opositores e pela imposição de censura prévia aos meios de comunicação.  Na economia houve uma rápida diversificação e modernização na indústria e serviços, sustentada por mecanismos de concentração de renda, endividamento externo e abertura ao capital estrangeiro. A inflação foi institucionalizada, com correção monetária e passa a ser uma das formas de financiamento do Estado.
Nesse período, acentuaram-se as injustiças sociais e as desigualdades; o presidente João Goulart foi deposto. O presidente da Câmara Federal, Ranieri Mazzilli, assume formalmente a Presidência e permanece no cargo até 15 de abril de 1964. Segundo os historiadores, na prática, porém, o poder foi exercido pelos ministros militares de seu governo: o brigadeiro Correia de Melo, da Aeronáutica, almirante Augusto Rademaker, da Marinha, e o general Arthur da Costa e Silva, da Guerra.
Foi nesse período que os militares instituíram o Ato Institucional nº 1 (AI-1). Os atos institucionais eram estratégias utilizadas pelos militares para legalizar ações políticas não previstas e mesmo contrárias à Constituição. De 1964 a 1978 foram decretados 16 atos institucionais e complementares que transformaram a Constituição de 1946 em uma colcha de retalhos.
O AI-1, de 9 de abril de 64, transfere o poder político aos militares, suspende por dez anos os direitos  políticos de centenas  de pessoas, entre elas  os ex-presidentes João Goulart e Jânio Quadros, governadores, parlamentares, líderes sindicais e estudantis, intelectuais e funcionários públicos. As cassações de mandatos alteram a composição do Congresso e limitam os parlamentares.
          Durante 20 anos os militares ocuparam o País e foi nesse panorama que eu vivi a minha infância e a minha adolescência, em União dos Palmares. Vivíamos sem nos importar com o que acontecia no País, queríamos apenas ser felizes e só fui me inteirar mais sobre a falta de liberdade e a censura, já no segundo grau, hoje ensino médio.
          As ações empreendidas pelo governo militar são estimuladas por grande parte dos oficiais do Exército, principalmente pelos coroneis. A chamada “linha dura” é instaurada e, usando pressões, os militares conseguem que o Congresso aprove medidas repressivas.  O ato complementar nº 4, de 24 de novembro de 1965, institui o sistema bipartidário no País.
A sexta Constituição e a quinta do Brasil traduz a ordem estabelecida pelo regime militar e institucionaliza a ditadura, em 1967. Incorpora as decisões definidas pelos atos institucionais, aumenta o poder do Executivo, que passa a ter a iniciativa de projetos de emenda constitucional, reduz os poderes e prerrogativas do Congresso, institui uma nova lei de imprensa e a Lei de Segurança Nacional. A nova Carta é votada em 24 de janeiro de 1967 e entra em vigor no dia 15 de março.

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