Ana Cláudia
Laurindo é graduada em Ciências Sociais, Mestra em Educação na linha História e
Política. Autora de quatro livros com enfoque na sociedade alagoana,
registra pormenores da cultura local mediante estudo de campo
e análise sociológica, resgatando história oral e memórias.
Fotos de Ana Cláudia Laurindo
Lembrança é coisa parecida com
mal-me-quer, flor miúda que nasce na beira do caminho para ser despetalada,
arriscando o bem e o mal das experiências da vida; diante dela assim me porto,
sabendo que tem momentos nos quais o bom e o ruim são coisas gêmeas,
semelhantes demais para serem separadas. Da mistura doce e amarga as coisas são
o que são.
A infância no Norte alagoano teve
cheiro de água amarela e banhos proibidos nas águas do Camaragibe, onde meus
olhos de menina desobediente viram as lavadeiras e seus filhos felizes que
nadavam nus e livres, como eu nunca pude fazer. Lençóis mais brancos não
existiam em lugar nenhum, porque o tempo exato gasto para que “quarassem” ao
sol, antes das últimas batidas na pedra, era suprido pelas falações de todas
elas, fazendo correr a fofoca e o elogio, maneira própria de identificar as
melhores patroas e aquelas outras que economizavam na barra de sabão. Aquelas sabiam do perigo que era
cair na boca das lavadeiras, e pechinchavam por conta e risco. Pois uma vez mal
falada, nada mais tiraria a mancha.
Viviam todas distantes das noções
de ecologia, educação ambiental e outros senões que poderiam ter preservado
aquelas águas e salvo o camarão-pitú, que de uma vez abandonou as locas na
margem barrenta - deixando o patrimônio coletivo nas mãos ressequidas da usina
que jogava a “tiborna” e das gestões públicas que jamais desenharam um único
projeto de manutenção das matas ciliares e fiscalização e controle do
saneamento. Aquelas águas escureceram.
Olhar para aquelas bandas me faz
fechar os olhos, e muitas vezes, neste gesto sentir o estalar antigo de um
chicote no lombo, enquanto rememoro os partidos de cana na plenitude agoniada
de um verão, misturando suor e o pelo da cana na mesma pele queimada, que
reveste os músculos do homem que movimenta a foice para cortar as toneladas
necessárias ao mínimo quinhão. Quando a feira era no domingo parecia mais
matuta, e a cada sete dias esse cortador vivia o gozo de ser disputado em
público por aqueles que vendiam o peixe seco – refugo da pesca – para alimentar
sua pobreza, o flau de coco com morango para aliviar a sede e a cachaça
temperada para acender o ânimo.
Nessa feira tantos outros seres
me encantavam, com suas aparições semanais; alguns em forma de velhas artesãs
que construíam as bonecas de pano mais atraentes que uma infância pode contemplar
e vendiam barato para completar o doce dos netinhos. Eu que por sorte era neta
de um grande comerciante local, sempre tinha quem me desse o tostão cobrado
para poder escolher a cor do cabelo de linha ou a veste de chita mais bonita
que as bruxinhas traziam. Dali para a rua das louceiras era um pulo só, e na
vastidão de panelas de barros, jarras e potes, encontrava as panelinhas para
fazer o cozinhado no quintal de casa, meu primeiro guizado teve esse sabor.
Mas encantado mesmo era o “Reino
da Pedra Fina”, que o cordelista lia em voz alta, rimando os infortúnios e a
sorte de uma princesa no meio da rua, cercado de ouvintes analfabetos, que
davam espaço para uma menina letrada comprar vários “folhetos” para ler com o
pai, no sofá da sala. Deixava de lado as aventuras do diabo e do malasarte,
para conhecer a “Princesa da Pedra Fina” e suas colegas de outros reinados.
O incômodo dessas feiras se
resumia às fileiras de cavalos com caçuás despendurados nas ancas, que eram
amarrados próximos a minha casa, aproveitando um beco que havia. Este por sua
vez, recebia tanto mijo quanto aqueles equinos conseguissem despejar,
escorrendo pela rua e perturbando os outros cheiros do lugar. Seus donos
costumavam entrar em um boteco que ficava perto, exibindo as bainhas das
peixeiras sob as camisas finas, olhando para as meninas que passavam e tirando
grosas com copos de cachaça nas mãos, cena que tentava evitar fitar quando
precisava caminhar pelo lugar, e fazia cara amarrada para não dá cabimento a
eles.
- Cuidado com esse orgulho! – me
gritou um deles, certa vez. – Ainda vai cair da ponte! – Me praguejou.
Tempos depois esse mesmo morreu
de cirrose e ao saber da notícia não senti pena, fora pegajoso e constrangia
minha meninice. Sempre detestei o assédio escancarado, principalmente de homens
feitos, que cercavam nossa feminilidade nascente, enquanto formávamos bandos
barulhentos para brincar de pega-pega, cabra-cega e mestre-cuca usando a
tintura do urucum que abundava pela vizinhança. Mas os velhos repetiam que o
homem tinha o direito de “cantar” a própria mãe, pois ela só aceitava se fosse
safada. No entanto, na prática, suas mães sempre eram sagradas, o que me faz
desconfiar de que a frase era uma justificativa para a safadeza com as outras
mulheres.
Todos os dias que se vive se deve
exercitar o perdão aos seres embrutecidos que perambulam à margem da história,
embora a componham e sustentem, pois eles existem para serem por ela
triturados, pertencendo à engenharia da desigualdade desenhada pelos donos do
poder. Enquanto a fome movimenta a vida sempre em busca de alimentos, prefeitos,
juízes e outros possuidores de nomes fortes no lugar, mantém a estrutura de
compadrio, e mesmo quando educados e de fino trato, são cúmplices em atos
espúrios, com um teor maior de violência, porque se abre em largo leque de
alcance social, e seguem assim romantizando crimes e misérias em causa própria.
Nunca confiei naquelas autoridades, desde muito cedo percebia algo errado na
forma como tratavam as pessoas. Ao olhar para suas estruturas castelares, me
desencantava, como uma princesa avessada.
Minha infância camaragibana
conhecia um único efeito de assistência social oferecida por prefeitos: doação
de caixões! Talvez a fábrica de gratidões mais perfeita que conseguiram inventar
tenha sido mesmo esta. Pois as perdas de vidas infantis eram contínuas, e os
olhos lacrimejantes dos pais choravam a morte e a pobreza na hora das exéquias,
pois sem dinheiro não se enterra cristão. Os vi de chapéu entre as mãos na
altura do peito, aguardando na porta da casa do prefeito, prostrado e grato,
choroso e esperançoso, até receber a ordem de despacho para poder enfeitar o
anjo com jasmins. Depois o repicar alegre do sino e a meninada acompanhando o
enterro com farfalhar de festa, coisa que me deprimia, porque ali eu só via
morte e não gostava dela, preferia os bebês brincando.
A pobreza sempre estava diante
dos meus olhos, que mesmo infantis, perceberam cedo o desequilíbrio que ela
causava. Algumas meninas usavam roupas que não cabiam mais em mim, e algumas
delas escondiam meus brinquedos na esperança de levar para casa, quando as suas
mães prestavam algum tipo de serviço, como torrar o café em grão, pisar no
pilão e recolher a preciosidade negra na lata de leite reutilizada; porque
depois de levar uma queimadura, minha mãe decidira pagar e nunca mais pegou um
caco para derreter o açúcar e depois jogar os grãos cheirosos no melaço,
queimando para endurecer, antes de ser jogado no pilão. Eu amava esse ritual.
Mas vi o incidente acontecer, a dor sentida e as cicatrizes deixadas, por isso
apoiava sua decisão.
Conheci a infância de crianças
miseráveis, pois elas desfilavam diante dos meus olhos, e algumas vezes tomei
uma bolsa de tecido que era esquecida em um quarto, para brincar de pedir esmolas
também. Eram tantas as caras ossudas de meninos e meninas que pediam uma
esmolinha batendo palmas na porta, que minha mãe racionava a oferta, e depois
de uma cota de alimentos dados, me ensinava a responder: perdoe! Segundo ela
essa era uma forma de negar sem pecar.
Lembro-me bem da carcaça de sofá
que minha casa descartou na entrada do beco, sendo levada avidamente por um
grupo de irmãs que costumava me atacar quando eu passava pela esquina da casa
onde elas moravam, geralmente quando estava vindo da escola. Meu espanto com
aquela cena diminuiu a raiva que sentia delas, e da covarde atitude de cinco
contra uma, que ainda por cima, não tinha ímpeto nenhum de brigar na rua e era
capaz de mudar a rota para evitar encontros indesejáveis. Aquelas meninas briguentas
não estudavam.
Os trabalhadores sazonais, que
arrancavam as famílias do chão natal e apareciam para o corte da cana ou a
limpa do mato, se arranchando em antigas casas e na senzala desativada, pelas bandas das fazendas Vale e Bom Jesus, traziam
filhos que não podiam esperar o primeiro pagamento semanal, e enfeitavam as
calçadas e portas alheias com rostos pampudos e amarelados, que os adultos da
minha casa afirmavam serem assim porque eles só andavam descalços, me enviando
mensagens sutis. Estes eram os corumbas, gente feia e faminta com quem ninguém
deveria se juntar. Eu tinha muita vontade de saber mais sobre eles, mas meu
instinto de sobrevivência fazia recuar, pois a surra seria grande mesmo.
Contudo, não resistia à passagem
dos ciganos, que quando apenas cruzavam a ponte a cidade inteira já sabia que
chegavam, e os criadores de cavalos e porcos ficavam de orelhas em pé, pois a
fama de ladrões que cegavam as vítimas com magia, os tornava temidos e
detestados. Também se falava da beleza de seus homens e mulheres, e mil
histórias de moças endoidecidas que subiam na garupa dos rapazes cabeludos e
perfilados, matando pais e antigos noivos de desgosto, abalavam as famílias.
Ao passarem as caravanas, eu
recebia ordem de entrar no quarto, para não ser levada, mas nunca conseguia
despregar da janela, e mesmo quando alguma velha cigana se aproximava para
pedir algo, eu não sentia medo, mas fascínio por aqueles que não tinham morada.
Embora não soubesse de fato, o que era aquele povo. Era uma espécie de ricos
que migravam na garupa de cavalos ou de pobres que pediam comida vestidos com
roupas enfeitadas? Os ciganos eram uma aparição fantástica, que aos poucos foi
sumindo e até hoje não voltou com o formato de outrora.
O cenário fértil de informações
culturais por certo era acrescentado na temporada de desfiles, quando a rua
ganhava ares festivos e as duas únicas escolas da cidade, uma municipal e outra
estadual marchavam em homenagem à pátria. Minha mãe era professora na escola do
município, nos meus primeiros anos, e muitas vezes fui sua acompanhante, e
convivi intimamente com alunos mais velhos do que eu aos quais ajudava na lição;
mas estudava na escola estadual.
Havia desde ali uma seleção
perversa, pois as crianças mais pobres eram matriculadas na escola municipal,
que também pagava salário menor aos professores e possuía menos rigor para com
o traje escolar. Os professores da estadual apresentavam estima e a supervisão
escolar aplicava testes de leitura com os alunos além de exigir fardamento
completo, pois os pais podiam pagar. Jamais gostei daquela blusa branca de
tecido, com mangas e um bolso no lado esquerdo a exibir um tipo de brasão com o
nome Grupo Escolar Saturnino Souza, para ser acompanhada por uma saia azul
marinho e sapatos conga com as meias brancas esquentando os pés, praticamente o
ano inteiro.
Os alunos da municipal eram
apelidados de “reborréias”, e apesar de não entender o que significava, eu já
sabia que aquilo não era uma coisa boa. A criatividade popular na construção
neológica dos seus pejorativos abundam pelas plagas da infância, muitas vezes
imaginei um dicionário matrizense, cheio de ofensas engraçadas, embora saiba
que há muita seriedade nisso, pois infelicita a vítima.
Os elementos de distinção estavam
postos, mas seria no desfile de 7 de setembro que a luta entre Estado e
Município ganharia as ruas e a praça, onde um palanque cheio de autoridades
locais aplaudiria os pelotões mais bonitos.
Desfilei de miss Sergipe, baiana,
camponesa, bailarina, telefonista, e também com o pior traje, quando a direção
da escola decidiu que naquele ano, todos os alunos desfilariam de farda. Após
esse trauma, decidi não desfilar nunca mais, me tornando expectadora de
desfiles. Ajudava minha mãe a organizar seus criativos pelotões.
Em um destes desfiles, quando as
escolas se esmeraram nos trajes e na marcha, e a municipal passava na frente do
palanque para ser aplaudida pelo prefeito e vereadores, um grito de “reborréia”
ecoou, e depois outro, mais outros e foi crescendo sem controle, como se todas
as bocas estivessem intimadas a participar da violência simbólica que fez professores
e pais de alunos chorarem, causando imenso desagrado no palanque, que logo promoveu
a tal escola municipal à dona do melhor desfile, causando uma onda comovida de
revoltados, enquanto os pais dos “reborréias” os recolhiam apressados com
instinto de proteção aguçado e prudente.
Apenas o tempo se encarregou de
diminuir paulatinamente as marcas deste confronto, e nos dias atuais não existe
mais a disputa nem o apelido, tudo foi enterrado e só não será esquecido de
todo, porque insisto em resgatar memórias, agradecendo aos céus pela precisão
das lembranças que guardo.
Esse céu amplo que de vez em
quando se transformava em um quadro aberto, no qual Nossa Senhora era coroada
no dia 31 de maio, nos dando um trabalho grande com ensaios na hora própria da
preguiça depois do almoço, assim que chegava da escola e a gente por vezes
deseja deter-se um pouco mais em casa, brincar com as bonecas ou ler um gibi,
chegava então, a amiga pontual gritando na porta, pois as freiras já estavam a
postos, com a entrada lateral da igreja aberta, e um sem fim de estrofes para
que decorássemos. Fui me tornando boa na arte de decorar e a cada dia tinha
menos timidez nas aparições públicas, por isso o recital era garantido, mas
aqui não se tratava disso e tinha outras regras.
Começava a seleção: Meninas
maiores na frente, menores atrás (sempre me parecia injusto!). Mas o pior mesmo
ainda não era isso, era quando em silêncio as freiras escolhiam as meninas de
cabelos lisos e longos para mostrar no altar, praticamente ocultando as de
cabelos cacheados e crespos, que eram necessárias apenas para fazer coro.
Salvo, se alguma “feia” destacasse uma voz afinada, pois então seria a cantora,
que necessariamente não precisava coroar a santa, porque este ato era
naturalmente outorgado às meninas bonitas.
Sempre fiquei no meio, nem era
última, tampouco primeira. Mas uma vez pude coroar, porque uma das freiras
resolveu que Maria seria coroada por uma menina vestida de azul e as vestes que
pertenciam à igreja eram brancas, e minha mãe financiou aquela “mortalhazinha”
para o grande momento. Meus cachos foram oportunamente desconsiderados, e Nossa
Senhora me parecia tão sorridente naquela noite!
Aos poucos eu ia percebendo que
alguns seres humanos eram maus. Não raro estes encontros se davam da forma mais
inusitada possível. Certa vez a igreja promoveu um concurso de cartaz, estava
eu com 7 anos, estudando segunda série, quando alguns mensageiros entraram na
sala de aula para divulgar o evento. Obviamente fiquei empolgada e corri na
venda do avô materno pedir dinheiro para comprar a cartolina e lápis para
colorir.
Desenhei uma pomba de asas
abertas, e a seguinte frase emergiu, “o elemento básico da paz não é o
dinheiro, é o amor”. O cartaz foi feito
por mim, o desenho era meu, e até essa frase grande demais para o meu tamanho
saiu da minha própria cabeça. Fiquei orgulhosa!
Ao entardecer fui visitar uma
colega que morava na Rua São Vicente, e ao chegar lá, fui testemunha da fraude:
ela pagara para um colega desenhista fazer o seu cartaz. O envolvimento com o
tema e o trabalho era econômico, mas ele estava um show!
No sábado à tarde, fui
pessoalmente acompanhar a exposição e o resultado, com meu silêncio aguçando a
percepção sobre os julgadores, quando de repente, uma moça da cidade parou
defronte ao meu cartaz, e emitiu a calúnia:
- Essa frase não é de criança!
Foi feito por um adulto, está desclassificado!
Aquela mesma moça má que
desclassificou o meu cartaz, elegeu em primeiro lugar aquele que a minha colega
comprara, me causando muita tristeza nesse final de semana, no qual nem meus
parentes poderiam me consolar ou defender, pois minha autonomia fora tanta, que
minha participação neste evento não teve nenhuma testemunha.
O cenário marcado pela ignorância
por certo teve sua cota de preparo em minha
personalidade rebelada, pois o que hoje me causa mais medo começou na infância, e com certeza não tenho medo de gente, seja grande ou pequena, olho para cada rosto com a mesma expectativa, gente é previsível demais. Meu maior medo é a cara grande de um boi solto, correndo na rua, perseguido por vaqueiros e acossado por meninos danados e curiosos, gritando em estranho frenesi, endoidando o bicho.
personalidade rebelada, pois o que hoje me causa mais medo começou na infância, e com certeza não tenho medo de gente, seja grande ou pequena, olho para cada rosto com a mesma expectativa, gente é previsível demais. Meu maior medo é a cara grande de um boi solto, correndo na rua, perseguido por vaqueiros e acossado por meninos danados e curiosos, gritando em estranho frenesi, endoidando o bicho.
A primeira experiência se deu
antes dos meus 5 anos, quando aquela festa barulhenta passou pela Rua do Beco,
onde morava, e sem pestanejar corri atrás, sendo pega antes da esquina por meu
pai, que naquela noite me deu a primeira surra com bainha de facão, porque
ficou muito nervoso diante do risco que inocentemente eu correra. Creio que
desse episódio nasceu a fobia e o fascínio, que até hoje me condicionam a olhar
os bovinos sempre a uma distância segura, por mais que me comprovem atestado de
mansidão.
Ao longo de toda a infância corri
deles, não importava local e hora, pois o estado decrépito do matadouro da
cidade permitia fugas semanais, ocorrendo até mais de dois ou três bichos
bravos a avançarem pela praça, ganhando as ruas mais distantes, em um ritual
que se anunciava pelos gritos daqueles mesmos meninos danados e curiosos de
sempre.
A segurança da casa sempre foi o
antídoto contra as ameaças que o mundo apresentava, e horas de leitura me
retiravam do lugar comum que envolvia a infância, enfadando meus parentes e de
modo especial a minha mãe, que sempre criticou o fato de eu viver “com a cara
enfiada no livro”, berrando exemplos de pessoas que endoidaram de tanto ler,
ficando com a mente fraca.
Uma coleção inteirinha de Contos
da Carochinha ela mesma comprou para mim, quando com seis anos andava à cata de
palavras, onde quer que elas estivessem escritas, para ler em voz alta ou
silenciosamente, encantando uns e aborrecendo outros. Mas foi minha tia Silvia
quem alimentou minha fome, comprando livros em catálogos, recebendo 15 dias
depois pelos correios. Quando os livros demoravam a chegar
eu atacava sua biblioteca, e cedo demais conheci Iracema, Helena e Lucíola,
entre outras mulheres que invadiram minha meninice com coisas de adultos e
relações tão semelhantes àquelas que eu observava em meu entorno, porque gente
é coisa fácil demais de identificar, presumir e chegar ao fim da história. Difícil
mesmo é saber para qual o lado o boi vai escolher correr, se vai chifrar ou
somente cabecear o mortal, ou mesmo apenas olhar e ignorar, correndo para longe
da balbúrdia infame. Talvez por isso a força a qual eu mais reverencio seja a
dele, o invasor dos meus pesadelos, o boi da cara preta, branca, vermelha ou
malhada, que chumba meus pés ao chão e resseca minha garganta que sequer emite
gritos, única força que intimidou minha infância.
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