Thiago Mota de Moraes, Mestrando em Teoria e Dogmática do Direito pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e Especialista em Direito Processual
pela Escola Superior da Magistratura de Alagoas (ESMAL). Professor de Direito
Penal e Processual Penal em cursos de graduação e pós-graduação em Alagoas.
Advogado Criminalista. Membro associado do Instituto Brasileiro de Direito
Processual Penal (IBRASPP) e do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais
(IBCCRIM).
Dois dedos de prosa
Campus volta à questão da sociedade, violência e
direito, quem sabe em virtude de ser um tema central em nossa vida, persistindo
na linha de frente de nossos problemas. Violência é uma questão ligada
diretamente à estrutura de sustentação de nossa sociedade e quebrá-la não é
tarefa fácil pois somente a sociedade rfeita poderá minorar seus índices de
geração.
Esta edição de Campus foi coordenada pelo
Professor França Júnior e trouxe dois novos articulistas de nosso suplemento: o
professor Thiago Mota de Moraes e o graduando em direito Bruno Rodrigo Carvalho de Almeida e Silva.
Agradecemos ao Professor França, ao Professor
Thiago e ao graduando Bruno.
Vamos ler
Um abraço
Sávio
Pensando sociedade, direito e violência
França Júnior
Thiago Mota de Moares e Bruno Carvalho de Almeida aceitaram o desafio de, aqui neste
espaço, continuar uma discussão permeada de variáveis complexas. Lidar com os
problemas vivenciados na segurança pública, especialmente a brasileira, quer
seja no campo prático ou teórico, exige coragem cívica e disposição para
debate. Ambos mostraram-se vigorosamente aptos ao atendimento das finalidades
propostas por Campus.
Thiago Mota,
profissional já tarimbado nas ciências criminais, professor festejado nos
quatro cantos do Estado, apresenta-nos a incoerência histórica recorrente de
nossos legisladores, que teimam em acreditar que o inflacionamento do tecido
penal haverá de amainar as taxas de criminalidade ou a sensação de insegurança.
Além disso, argutamente contesta, apresentando dados interessantíssimos, a
relação de causalidade atribuída à violência e as desigualdades sociais. Por
fim, chama à responsabilidade o Estado brasileiro, geralmente omisso e não
raras vezes ineficiente, diante dos graves problemas e principalmente das
promessas de resolutividade encartadas na Constituição.
Já Bruno Carvalho,
destacado graduando do curso de Direito do CESMAC, traz à baila o ambiente
hipócrita com o qual temos convivido, especialmente nos últimos tempos. O uso
dos excessivos redutores de complexidade são contestados por ele, notadamente
os códigos binários, pois sempre são utilizados pelo senso comum em favor do
“homem de bem”, o “cidadão modelo”, uma espécie de ser imaculado, praticamente
“um enviado divino” que deverá servir de parâmetro ao restante do rebanho. Sua
análise reflete a necessidade de adequação dos ditos valores “tradicionais” à
nova sociedade, democrática, portanto, que, apesar das resistências, produz
avanços que devem ser celebrados.
Na verdade, ambos
trazem mais questionamentos que respostas, seus textos são verdadeiras
inquietações sobre os rumos de um ambiente que se pretende verdadeiramente
democrático. Enfim, a visão crítica de ambos os ensaístas, cada um ao seu
estilo, e o cuidado em explorar os “furos lógicos” mantidos pela doutrina do
senso comum, só enriquece o debate e nos faz ter a certeza de que espaços como
estes devem ser preservados e, quiçá, ampliados, para o necessário
amadurecimento de nossa democracia. Dessa forma, sintam-se sempre convidados ao
debate!
Estado, Violência, Criminalidade e Medo: uma conjuntura antidemocrática
Thiago Mota de Moraes
Frente ao crescimento das taxas de delinquência e ao aumento do medo decorrente da pungente criminalidade, principalmente a partir da década de 80, produziram-se, na grande maioria dos países ocidentais, movimentos de política criminal fundados eminentemente na necessidade de endurecimento das leis penais (retribuição e punição) como resposta a uma suposta demanda punitiva ante essa nova realidade.
Esse “populismo punitivo”, aparentemente fundado
num ideário coletivo de perda de credibilidade da lei (do próprio Estado) em
decorrência da inegável sensação de impunidade das infrações cotidianas mais
frequentes, nutriu a expansão de um “culto”, quase totêmico e desguarnecido de
base empírica, de que uma resposta mais repressiva a determinados crimes teria
capacidade de refrear os estímulos à prática delitiva (ou pelo menos
minorá-los).
Tal tendência incriminadora, exteriorizada em
legislações claramente simbólicas e incapazes de qualquer efetividade prática,
constitui um elemento fundamental e abjeto de nosso tempo (que precisa ser
melhor conhecido); mas há vozes contrárias ao discurso punitivista. Nada
obstante, lastreadas em uma desarmonia discursiva (e até mesmo hiperbólica),
ultima-se em passos largos, como no mito de Cassandra, em fomentar cada vez
mais incredulidade a uma possível sombra dissonante.
Por sua vez, o crime, não há que se negar, é
indissociável ao homem; nada obstante, quando a população valora o seu conceito
de criminalidade (e de violência), tais concepções, derivadas de sua
experiência diária, expressam-se no descontrole, no conflito, na beligerância
que tanto atestam os veículos de comunicação social (o vermelho do sangue
aterroriza o inconsciente). Mas, frise-se, violência e criminalidade não são, a
um olhar mais cuidadoso, sinônimos; até porque, nem toda criminalidade é
necessariamente violenta, no sentido de vis absoluta, ou seja, de
ferocidade física e, por óbvio, nem toda a violência é igualmente criminosa.
Desse imbróglio, típico dos paradoxos de nosso
tempo, oriundos da relação cíclica violência-crime, olvida-se, com dada
frequência, da natureza fundamental do delito, enquanto elemento indispensável
à evolução natural do próprio Estado. Mas não só isso; como dissemos no início
de nosso texto, ignora-se que o que move o engenho punitivista sancionador, enquanto
elemento de controle do Estado é o próprio medo.
Neste ponto, tudo que é excepcional, que afronta
nosso dia-a-dia como algo que nos desperta do senso confortável de nossos
comportamentos petrificados, assusta. Na base do que é excêntrico, singular,
está o vulgar, nosso senso de autoproteção e a necessidade de controle de uma
estrutura política paradoxal, que, como advertiu Agamben, captura a vida humana
e, ao mesmo tempo, a abandona à condição de mero ser vivente.
Quantas vezes nos questionamos sobre como
vivíamos mais “tranquilos” em tempos passados!? Curioso é que, enquanto o
discurso político coletivo anseia a abolição da arbitrariedade de vontades
soberanas como técnica política de governo (como se viu na luta pela
redemocratização do Brasil), aplaude-se a utilização, cada vez mais frequente
(e menos restrita), da exceção jurídica como técnica política (e policial) para
“combater” o perigo da “violência”.
Ampliamos o rol de crimes ditos hediondos,
recrudescendo o sistema penal fundado no medo; desenvolvemos sistemas de
execução penal dignas do medievo, insensíveis aos depósitos humanos onde
indivíduos diuturnamente alimentam-se do ódio ao suposto “estado democrático de
direito”; fomentamos uma ampliação do índice de condutas proibidas de forma assistemática
e desproporcional, guiada pelos períodos pré-eleitorais e motivadas na retórica
do “quanto pior melhor”.
Hoje, discutimos a redução da menoridade penal,
o aumento do tempo prisional, legitimamos os linchamentos públicos, tudo diante
de uma “moralidade” construída na base de um estado cada vez mais forte, cada
vez mais amplo, donde suprimem-se as liberdades individuais em prol de uma
condição onde a exceção é norma, e os direitos fundamentais são vistos como
obstáculos ao “aprimoramento” do convívio humano.
Coincidência ou não, o mesmo aparato público que
se destina responsável por “combater” a iniquidade, a injustiça e a desordem,
ao invés de reconhecer sua incapacidade estrutural de lidar com os modelos de
comportamento não institucionalizados, promove sua própria anomia, como forma
de legitimar seu crescimento, justificando uma invasão cada vez mais tórrida em
nossos direitos individuais.
Questiono então: onde chegamos, o que
alcançamos!? O discurso repressivo seduz, porque se dirige ao nosso recôndito
emocional, pois se agrega ao conjunto de nossos pré-conceitos e, parafraseando
Voltaire, penso que o preconceito é uma opinião não submetida à razão.
Editamos mais de uma centena de reformas penais
nos últimos setenta anos, todas com o demagógico sentido de reprimir a
violência por meio do incremento da repressão à criminalidade. Nossos índices,
entretanto, somente demonstram uma exponencial e ininterrupta expansão da
violência, com uma taxa de quase trinta assassinatos por cem mil pessoas.
Onde erramos?! Talvez em pensar no Direito Penal
como um instrumento estatal de solução de problemas sociais, esquecendo-nos que
o “ser democrático” implica num modelo jurídico-político ideal de Estado que
seja sim, máximo, no que se refere aos direitos econômicos, sociais e
culturais, mas mínimo, como advertiu Ricardo de Brito, no que tange à
intervenção no âmbito das liberdades individuais e da segurança jurídica. Nosso
amadurecimento enquanto Estado Soberano, depende, ao nosso ver, de pararmos de
querer resolver velhos problemas com soluções que historicamente se mostraram
ineficientes, incapazes de servir ao propósito almejado.
Nomeadamente, precisamos repensar a ideologia
(mítica) que há várias décadas se implantou em nosso país de que a
criminalidade (e por conseguinte lógico, a violência) são frutos da
desigualdade social e da pobreza. Aliás, apesar de não se poder negar,
racionalmente, que a baixa educação e determinados fatores econômicos
acompanham a violência, isto não quer dizer que há uma relação de causalidade
necessária entre elas.
O exemplo do Estado do Piauí é, neste ponto,
paradigmático. Apesar de pertencer à lista dos Estados mais pobres da
federação, é um dos menos violentos (sua taxa de homicídios é, por exemplo,
inferior à Santa Catarina). No mundo, essa situação se repete, como no caso de
Bangladesh, onde cerca de 150 milhões de seres humanos convivem, ao mesmo
tempo, com condições de miserabilidade inegáveis e uma das menores taxas de
homicídio do planeta.
Quanto à desigualdade, referimo-nos ao estudo
feito por Steven Pinker que atesta o fato de que no ano de 1968, os Estados
Unidos apesar de terem alcançado um padrão extremamente equânime de
distribuição de renda, convivia com picos de criminalidade alarmantes; nada
obstante, já nos anos de 1990 e 2000, esse padrão igualitário não se manteve,
mas a violência despencou.
Identificar a razão da problemática afeta à
criminalidade e a violência é, portanto, um paradigma que merece intenso
debate, numa tentativa de tornar menos problemático o fenômeno da alienação
técnica de nossos políticos (Zaffaroni); por sua vez, a ideia de que a ausência
de estado é a causa da violência, apesar de sedutora, é mais um instrumento
para legitimação do agigantamento do Estado e de todos os problemas que tal
predicamento impõe.
Ora, ampliando a advertência feita por Bene
Barbosa e Francisco Razzo, enfatizamos a premente indulgência de se verificar o
dado inquietante de que, como o Estado detém para si o instrumental de
repressão e clama para si o monopólio da segurança pública, ao não tomar as
medidas necessárias para impedir todo e qualquer tipo de crime, é cúmplice — no
mínimo, por omissão.
Ao criar normas penais de cunho eminentemente
simbólico, reforçando o padrão censurável de sensação de impunidade na
sociedade, ao instituir expectativas que, indubitavelmente, não serão cumpridas
pela auxese apoteótica do sistema criminal, o Estado não só tenta legitimar sua
ampliação e arbitrariedade, como faz ainda mais clara sua incapacidade de
cumprir o mínimo que lhe era reservado tutelar, incrementando uma crise de
valores que subjuga o indivíduo e sobreleva sua descrença nos valores
democráticos.
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