Sexta-feira, 9 de dezembro de 2011
Este texto foi publicado na coluna Espaço no dia 6 de fevereiro de 2011 , O Jornal, Maceió
A Rua da Penha em Penedo: heróis e cinema
Luiz Sávio de Almeida
Os livros de história
     Uma história do arco da velha  era diferente de Trancoso e  Carochinha. Era uma expressão que  no Velho Testamento, outros falam  também se usava para introduzir  desconfiança quando ao que foi falado  ou indicar fantástico, antiguidade...  Alguns lançam a expressão  nas superstições medievais com as  
bruxas. Carocha para mim – e era  assim chamada pelo pessoal da   Bananeira de Baixo, o que leva para uns 150 anos mínimos – era aquela  barata cascuda, grande, que aparecia  e muito em tempo de inverno em  Arapiraca. O povo chamava também de barata de coqueiro. Mas a  palavra já teve significado na  perseguição religiosa, sendo do tempo da inquisição uma mitra feita  de papelão e posta nos feiticeiros, conforme o Dicionário de Folqman,  publicado pelo Impressor do Santo  Ofício em Lisboa, no antigo ano de  1755. Diz Silva que esta carocha é  derivada do inglês: caroack. No  entanto, ele mesmo vai dar como sinônimo de barata (“uma espécie de inseto caseiro no Brasil”), havendo,  
também, o verbo encarochar.
     Esse
 Silva era nascido no Brasil e, em 1831, seu  dicionário tinha 
quatro edições. essa carocha do Santo Ofício está no D. Quixote, na 
cabeça de Sancho. O bicho está em prosaico inseto em Camilo Castelo 
Branco em O que fazem mulheres. Por aí se pode ir e andar muito em 
relação à marca pública e teatral dos crimes da Inquisição. Mas, na Rua 
da Penha, carocha não tinha o senso da ignomínia, ia mesmo para o 
tempo da carochinha, coisa velha. O encarochar da Rua da Penha era 
diferente.
 
   A Rua da Penha tinha história de Trancoso, da carochinha e do arco da
 velha, coisas que se misturavam à tradicional coleta ou à invenção dos 
contos populares, que remontavam tradições para a construção das 
nacionalidades européias. Eu tinha coleção daqueles livrinhos 
de história que a Companhia Melhoramentos editava, como o Gato de Botas,
 a Branca de Neve e toda aquela saraivada cultural de fadas, príncipes, 
reis e rainhas num carnaval de majestade sobre os sonhos infantis da Rua
 da Penha. Tenho todos guardados, encadernados, a capa azul, a fantasia 
européia.        Eu  tinha também livros da editora Del Vecchi, 
formato grande, os melhores contos de fada e Simbad, o marinheiro, além 
de Ali Babá e os Quarenta Ladrões.
 
    Trancoso era, na verdade, o senhor Gonçalo Fernandes Trancoso, que 
publicou uma coletânea de contos ditos morais, tendo sido editado o 
primeiro volume em 1585; o segundo, em 1589; e, finalmente, o terceiro 
apareceu após a sua morte e por iniciativa do seu filho. Tudo passou a 
ser história de Trancoso e a expressão contos de fadas parece que não 
pegou bem ou, então, a experiência histórica fez um recorte separando o 
que vinha da tradição ibérica e o que veio das coletas européias do 
romantismo.
Histórias em quadrinho
     Era, na verdade, o que eu lia; a miscelânea estrangeira que iria aparecer também nas revistas  em quadrinhos, substituindo o romantismo pelo americanismo das tiras. Dentre elas, a minha preferida era a Edições Maravilhosas. Recentemente  recebi um presentão pelos Correios: dois exemplares 
da Edição Maravilhosa, ambos Extra, sendo um de 1956 – Doidinho, de José Lins doRêgo – e outro de 1957 intitulado A terra vai ficando ao longe, de autoria de uma mineira chamadaLasinha Luís Carlos. O primeiro foi adaptado  e desenhado por André Le Blanc e o segundo de responsabilidade de Ramón Llampayas, espanhol que trabalhou para a Ebal. Le Blanc erado Haiti e praticamente foi o criador da famosa boneca Emília, tendo sido ilustrador muito requisitado por Monteiro Lobato.
     Colecionava, com cuidado, a Edição Maravilhosa, bem como Tarzan que – segundo ouvi uma má língua dizer – é o american way of life na selva. Era um mercado que, sem dúvida, foi dominado pela Ebal, editora criada pelo Adolfo Aizen, que pode, na verdade, ser considerado o grande introdutor dos quadrinhos no Brasil. Ela funcionou de 1945 a 1995. Ajudou a cultuar O Capitão América, Super-homem,Fantasma, Mandrake, Batman e tantos outros, 
como, por exemplo, Namor, o príncipe submarino.
 
     Eu gostava do Fantasma, o espírito que anda, fazendo justiça, 
sobretudo, na selva e imortal para quem não sabia seus segredos de 
linhagem. Ele nasceu em 1936, criado e desenhado por Lee Falk. Sua vida 
era copiosamente documentada e os arquivos estavam na Caverna da 
Caveira. A única pessoa a saber desse segredo imenso era Guran, chefe 
dos pigmeus Bandar. Nem a namorada do Fantasma nem o Comandante 
da Patrulha da Selva sabiam de qualquer coisa mais aprofundada sobre o 
herói, que usava uma vestimenta  especial a proteger-lhe o rosto e 
também, para efeito de timbre, um anel com o símbolo da caveira. Ao sair
 da selva, cobria o uniforme usando um chapéu, calças e, sobretudo, 
transformando-se em Christopher Walker e, às vezes, viajando em 
companhia de Capeto, seu lobo de estimação.
 
    Ele andava em um cavalo chamado Herói, tinha um falcão e enrolou por
 anos a Diana Palmer, com quem terminou por casar gerando um futuro 
Fantasma, de quem nada se sabe, mas deve andar aí pela altura da Lagoa 
do Peleve. É uma bela sensação manusear o velho exemplar. É também de 
Lee Falk a criação de Mandrake, um mágico de capacidade 
extraordinária, com seu nome estando associado à mandrágora. Ele usava 
como ninguém a técnica de hipnose, sempre acompanhado pelo seu 
amigo Lotar, um príncipe africano. Mandrake apareceu primeiro em 1934 e 
também passou anos enrolando Narda.
     Gente
 sem qualquer imaginação andou me falando que Mandrake tinha um caso com
 Lotar e somente vai se decidir anos e anos após o amor à primeira vista
 que surgiu pela Narda. Casam em 1997 e foi prá lá de idosos. Acho que 
nem aproveitaram Xanadu. O mesmo malidicente veio me comentar que o 
Robim era caso do Batman. Jamais isso poderia passar pela minha cabeça 
em Penedo. O que de tão secreto havia na vida do trilionário Bruce Wayne
 para ter uma batcaverna, batcarro, batamor? Um batblue? Sei que ele 
ficou meio lelé depois do assassinato de seus pais; talvez, em inglês, 
funcionasse melhor a palavra peculiar ao invés de lelé. Ele adota Dick 
Grayson em 1940, menino filho de artistas de circo. Chato é que Dick 
parece ser um baita palavrão em inglês e nem me atrevo a traduzir. Bom, a
 coisa se complica pelo fato de o homem morcego se casar com a mulher 
gato, com quem vai ter uma filha. A gata morre. Como se pode verificar, 
era uma história solenemente complicada. O Capitão América era o próprio
 defensor da democracia na luta contra os nazistas. 
Foi criado durante a guerra, sofreu diversas transformações e, na Rua da Penha, utilizava o seu escudo fantástico, com o qual fazia a sua guerra. Jamais os super poderiam estar fora do grande universo americano. O azul, o branco e o vermelho eram comuns e não eram as cores das Alagoas. Um outro tipo de Estados Unidos vinha com as aventuras de cowboy como se fossem lições sobre a formação histórica, a conquista e a formação do espaço através de um confronto permanente.
  O quadrinho
 resolvia o mundo e nisso resolvia-se a Rua da Penha, uma determinada 
forma de inclusão em uma lógica radical de cadeias de poder. Nem se 
brincava nem se lia como se, angelicalmente, tudo fosse um em si, uma 
coisa resolvida em si mesma. Então, cada pedra de calçamento da Rua da 
Penha estava em um sistema de relação, embora a ideia de sistema não a 
resolva, e sim a lógica fundante da organização.
Não causaria espanto que Batman, Superhomem, Fantasma e tantos outros andassem por aqui, em piruetas magistrais, com o super poder à disposição da supersalvação. Tudo então faria parte da ilusão de que andávamos em direção a uma parusia, devidamente protegidos pela santificação de iluminados? E quem poderia pensar que haveria uma mera e singela garantia humana? Os anos da construção da guerra demandavam construção de heróis e a demonstração de que a civilização cristã ocidental, se não os tivesse, tinha inteligência para criar ou mesmo importar, como foi o caso de um deles, que veio de Kripton, e de Namor, que era dos atlantes.
Ora, se não havia um culto aos super-heróis na Rua da Penha, pelo menos eles tinham admiração, respeito e apoio, pois vinham vestidos de bem. Fundava-se uma mirabolante Távola Redonda e havia uma escondida busca pelo Santo Graal. Claro que é uma comparação rude e até meio deselegante, mas a salvação da terra estava nas mãos de uma ideologia que dispunha do cálice que coletou o sangue do martírio. Haveria um super-herói bobo? Não lembro. Todos sabiam da força que tinham e de como viver para mantê-la. Afonte da força era longe do humano e, assim, revestia a construção de uma espécie de nova mitologia sem atavios mais sofisticados.
   Eu
 gostava do Homem Borracha; seus poderes fascinavam, mas era mesmo 
ligado no Capitão Marvel, que, na realidade, era Billy Batson ou 
Guilherme Filho de Morcego, bom em inglês e péssimo em português. Ele 
depende de um mágico chamado Shazam, pois foi escolhido para guardar o 
bem. Basta ele gritar e logo se transformava de homem franzino e com 
problemas físicos em um Capitão Marvel, um paladino da justiça. Nesse 
passe de mágica, incorporava as mais excelentes qualidades que a 
história revelou, todas elas derivadas de um ser igualmente mágico. De 
Salomão, ele apanhava a riqueza da sabedoria; de Hércules, recebia a 
força; de Atlas, correspondia-lhe o vigor; Zeus era o poder; Aquiles, 
dava-lhe   coragem; e Mercúrio, a velocidade. Havia uma ponderação de 
excelências históricas: uma judia e o restante grego. Mantinha-se o 
complexo cultural das integrações gregas e judaicas?
    O
 cowboy jamais perdia, mas tudo não passava de uma resolução bem mais 
humana de conflito. Tudo se passava pelo farwest, uma espécie de sertão 
sendo edificado, onde aqui e ali, índios tombavam, estradas de ferro 
rompiam caminho, chineses se manietavam aos trilhos, xerifes corruptos 
bravejavam e tudo aquilo que fazia o mundo da conquista. A violência, a 
correria, a velocidade, tudo isso entusiasmava uma platéia, que se 
ligava totalmente e ficava frenética.  Olhe, o Coliseu devia ser 
daquela forma em termos de algazarra; nós nos comportávamos como se o 
ajuste do mocinho com o bandido fosse o ajuste de todos nós. O 
cinema literalmente caía quando o bandido se arrebentava. E ao soar o 
gongo, ao fim de tudo, todo mundo continuava enredado no meio de socos
e tiros.
Desse tipo de filme, o que mais marcou minha cabeça aparece depois e era com Gary Cooper. Foi A Árvore dos Enforcados, com Maria Schell. A música era belíssima, a ação era densa, ia bem mais longe do que as formas tradicionais da construção do western, além, por exemplo, de diversos filmes do John Wayne, na sua mania da bela América. The Hanging Tree foi de fato a sensação do último verso da música, que, numa tradução literária, solta, dizia qualquer coisa como: Cavalgando para seu sonho e destino.
     Acho
 bonita essa ligação entre sonho e destino. Os cowboys que pipocavam o 
 cinema eram de baixo custo, marcavam tipos, levavam aos fãs a algazarra
 de baixo custo, marcando mocinhos como Audie Murphy (um herói de 
guerra) e Roy Rogers, numa velha estrada que parece ter sido marcada 
pelo Tom Mix passando pelo Hopolong Cassidy. Gene Autry era outro 
arrumadinho, o cowboy cantor. Os mocinhos, alguns tiveram o 
doidelo junto, e um deles era o Gabby Hayes, extraindo gargalhada. 
Ele andava com Roy Rogers, Gene Autry, Bill Elliot, Randolph 
Scott, todos caras de primeira linha.
     Foi do cinema que veio a fixação 
da ideia da beleza feminina em mim. 
Jamais eu poderia dizer que foi uma 
paixão; nada mais importante do que 
os episódios das séries e ninguém 
perderia sem motivo real. É que se 
passaria a discutir, durante toda a 
semana, a solução que o artista daria 
para a situação em que se encontrava 
e era conhecida, na Rua da Penha, 
como o perigo do mocinho. Vi muitos 
seriados, mas o melhor de todos e, 
não me resta dúvida, foi a Deusa de 
Joba; depois aparece Os Tambores de 
Fu Man Chu.
     Hoje tenho ambos completos em casa e, vez em quando, dou 
uma belicorada. Boris Kaloff foi um Fu Manchu, Manchúria. O Dr. 
Fu Manchu vivia em uma série de romances escritos por um inglês 
chamado Sarsfield Ward. Os tambores de Fu Manchu foi um romance 
escrito em 1939 e arrepiou a meninada de Penedo. Logo em 1940, a 
Republic Pictures estava fazendo o seriado em 15 episódios, tamanho 
usual. Eram quase quatro meses de exibição e, com isso, o público não 
cansava, tendo de ser alimentado constantemente, o que obrigava e levava
 a uma alta produção. Jamais poderia haver um sábado penedense sem que 
houvesse um seriado.
      Os seriados começaram a ser produzidos na década de dez, do século
 passado, com as produções chegando perto de 1960. Apartir daí há uma 
severa concorrência da televisão, que muda o estilo de fazer os seriados
 e eles perdem uma característica que era essencial: uma comunidadeque os via. Aquela multidão de menino, de uma hora para outra, era uma 
unidade, embora volátil.    A frente do cinema ficava cheia de menino, 
uns vendendo e trocando estampas, revistas, pedaços de celulóide. 
      Um pedaço de filme valia dinheiro, mormente se era 
colorido, mormente se tinha uma cena do mocinho. Gente inventava que 
havia feito uma máquina de projeção com um despertador velho. Ouvi, mas 
o certo é que se tinha uma espécie de lente feita com lâmpada velha 
e cheia de água. Um mundo existia antes, e ele ia sumindo na medida em 
que se entrava no prédio do cinema. Cinema era um complexo de situações:
 o interno e o externo.
     Lá
 dentro, a algazarra, a gritaria, como se sumisse a massa comportada que
 estava fora. O baleiro e eu comprando chicletes que só Adams fabrica. E
 esse Seu Adams realmente existiu e começou a produzir em 1872, chegando
 ao Brasil em 1945, coisa também da guerra. Comprava também as caixinhas
 de passa de uva da Califórnia. Em Penedo consumi passa e heróis. 
Chicletes também. 
       Tinha vez que eu entrava mais cedo, ia para o camarote para 
jogar helicóptero, enquanto aviões poderiam estar cruzando os ares. Na 
verdade, ainda hoje gosto de jogar helicóptero. Deu chance, o bicho 
desce com as asas rodando e eu cometendo o engano público de sujar as 
ruas. A culpa é da Rua da Penha, que não me larga. Sou engenheiro 
aeronáutico de helicóptero de papel; é preciso ter uma certa prática 
para calcular a envergadura das pás, o corpo de sustentação embaixo. No 
cinema,  a altura e a ventilação eram poucas e o helicóptero logo caía, 
mas a sensação de ver aquilo rodando era impagável. Fui e continuo a ser
 um péssimo fabricante de avião.
       A Rua da Penha sabia muito sobre chicletes. Todo mundo sabia que 
era fabricado com a goma do sapoti e conheci alguns que colecionavam as 
caixinhas pelo númeroque elas tinham nas abas de fechamento. Diziam também que, juntando uma 
determinada quantidade de caixas, a fábrica trocava por uma cadeira de 
rodas, dava a cadeira a alguém. Mas o mais importante é que circulava 
uma informação: era preciso ter cuidado para não engolir, pois grudava 
no estômago e a pessoa morria.
     Lá dentro do cinema, uma bagunça. A matinal ia começar, 
mais silêncio, todo mundo procurava acomodação e tudo seguia o ritual 
do jornal, do desenho, da propaganda dos futuros filmes e aí o mundo 
se remodelava e tudo se unia na repartição do momento, o que não 
significava uma verdadeira comunhão. Ninguém jamais, diante da 
demonstração de tal ordem de atomicidade, poderia conceber que se 
plasmava uma unidade.
Fora a vida, somente o cinema era um grande fabricante de imagens em Penedo. E ele me deu a perfeição feminina justamente na figura de A Deusa de Joba, cujo nome era Valery Tremaine. Joba era uma cidade perdida no meio da selva e Valery foi transformada em sua Deusa, controlada pelo Sacerdote, que era servido por uma tropa de homem morcego. Seu irmão Baru consegue fugir em busca de socorro e é encontrado no meio da selva pelo mocinho, que era Clyde Beat, na verdade, um grande artista americano: domador de leões. Por isso vai que existe cena com leão. A Deus de Joba passou a ser venerada por mim. Ela sempre aparecia com uma túnica branca, que lhe dava uma leveza e uma graça celestial. Era Elaine Shepard, artista que não teve qualquer projeção, mas chegou a ter presença de primeiro plano na área do jornalismo.






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