Quinta-feira, 29 de dezembro de 2011
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OLIVEIRA, Maria Aparecida Batista de. A mulher e a história: a fenomenologia da dor. O Jornal, Maceió,
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Umas poucas palavras
Luiz Sávio de Almeida
Espaço traz um texto da Professora Maria Aparecida Batista de Oliveira. O artigo toma por base um capítulo de sua dissertação orientada pela Professora Doutora Heliane de Almeida Lins Leitão, aprovada com elogio pela banca examinadora. O título da dissertação é: Mulher e violência em Maceió: um pensar sobre sua história.
Este não é
um trabalho apenas acadêmico.
A Professora
Cida - como é conhecida por seus amigos - é expressiva no movimento dos
professores da Universidade Federal de Alagoas, no movimento negro e no de
mulheres, onde ocupa posição de relevo.
Seu trabalho
argumenta uma relação íntima entre a formação da sociedade patriarcal e os
marcos da dominação das mulheres na sociedade brasileira e alagoana em
particular. O texto é construído com fundamentos no cotidiano e, densamente, na
expressão da violência na vida doméstica, com repercussões no espaço público.
Demonstra, sobretudo, a esperança em que este processo de dominação termine e,
para tanto, busca níveis de consciência que estabeleçam novas determinações de
vida.
É
impossível ler o texto sem sentir as vidas, os momentos de dor, sofrimento, alienação
que nutrem todo um quadro social perverso, em que as mulheres sofrem os
cometimentos de gênero e da circunstanciação de uma sociedade que precisa ser
superada pela construção de um universo de liberdade. Há no texto, inclusive, um
chamamento à dignidade.
Espaço
sente-se muito bem por estar em sua companhia. Uma bela e respeitada pessoa
humana está à disposição de nossos leitores. A democracia brasileira para
finalizar-se, deve revisar seus pontos de desencontros e, entre eles, sem
dúvida, avulta o da situação da mulher.
O que Cida faz
Maria Aparecida Batista de Oliveira é natural de União dos
Palmares, onde concluíu o Curso Pedagógico no Colégio Normal Santa Maria
Madalena tendo sido professora no mesmo estabelecimento escolar. Formou-se em
Filosofia pelo antigo Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal de Alagoas (UFAL), do qual foi Diretora. É Mestra em
História e professora de Filosofia e Ética do Instituto de Ciências Humanas,
Comunicação e Artes. No momento, ocupa a presidência da Associação dos Docentes
da Universidade Federal de Alagoas e é, também, Coordenadora do Núcleo Temático Mulher e Cidadania
da UFAL. Ocupa a presidência do Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Mulher.
A mulher e a história de violência: a fenomenologia da dor
Maria Aparecida Batista de Oliveira
FALA DE PANDORA
Minha vida é um inferno.
“Estou com 6 (seis) meses de separada; fui casada por 16 anos. Ultimamente resolvi ter a minha carta de alforria e denunciei ele na Delegacia; passei por muita violência com ele. Quando chegava em casa, tinha dia que nada prestava, e ai eu ia apanhar. Levei murros, beliscões, ponta pés, chute na barriga até quando estava grávida; quantas vezes apanhei por causa do arroz que ele dizia não estava prestando, por causa da camisa que ele dizia está muito mal passada, e, aí, eu era surrada, ele me chamava de burra, de vagabunda. Eu me afastei de todo mundo, das amigas, de minha família. Escondi meu sofrimento durante muito tempo da minha família; vivia em uma grande solidão.
No principio eu não trabalhava, depois eu comecei a vender roupas que pegava da minha mãe, fui crescendo e hoje tenho uma lojinha; estou bem, aos poucos fui construindo minha independência, fui fazendo minha vida, né. Foi por isso que me separei; tomei a decisão quando um dia ao chegar em casa muito cansada do trabalho - um pouco mais tarde, nesse dia teve muito movimento, muitas clientes - ele estava bêbedo, teve crise de ciúme.
perdida, onde andava até uma hora dessas! E já recebi foi o murro, não sei como não perdi o olho, ele gritava ainda: "Vou lhe matar sua p[...]". Eu não agüentava mais tanta humilhação, pois viver com ele
me dava dor no coração, nervoso, dor de cabeça direto, pressão alta, eu vivia tomando remédio direto para pressão e também para ficar calma. Tomava lexotan...
Esse dia foi a gota de água; tomei a decisão, fui direto pra
Delegacia e dei queixa dele; sai de casa com meus filhos, fui morar com minha mãe. Sai sem nada desse casamento.
O processo da separação tá andando; eu disse pra o advogado que não quero nada dele, só ver longe de mim, quero paz, estou des pe da ça da, eu estou me curando dessa dor aos poucos. Hoje eu sou livre, não quero saber mais de depender de homem nenhum; já estou
morando com meus filhos em nossa casa. É alugada, mais meus filhos são traumatizados e nervosos; tenho duas moças, uma de 22 outra de 23 e um menino de treze anos. Elas já estão fazendo Universidade”.
A FALA DE MEDÈIA
Este é meu terceiro relacionamento, o mais
difícil de todos. Agora estou me separando novamente, estou com muita dor que atravessa
o meu corpo inteiro; não sei o que acontece comigo aonde errei. Investi muito
nessa relação, fiz de tudo para dar certo, mas não deu. Ele me bateu várias vezes, a última me
deu um ponta pé, que pensei que ia perder os rins. Aí resolvi com muito
sofrimento dar um basta nessa situação. Passei a dormir no quarto de minha
filha.


Pedi para ele sair de casa, ele chora muito pede
desculpas mas eu não acredito mais em suas promessas; ele fica um doce um anjo,
até me ajuda nas minhas tarefas. Depois tem crise de ciúme e o terror


A violência avilta a dignidade da mulher,
coisificando-a. Ela é, portanto, uma modo extremamente cruel de controle por parte do
poder masculino, que se apodera da liberdade e da dignidade do ser da mulher,
transformando-a em objeto. Socialmente, a coisificação feminina é considerada natural
e é, assim, que se impede a construção da sua alteridade. Na violência presente
no cotidiano da mulher, ela é humilhada, maltratada, desqualificada, desautorizada, o que pode ocorrer
em todas as classes sociais, e tudo geralmente passa despercebido, por conta do
silêncio e porque os atos sempre tendem a acontecer a portas fechadas.

Segundo nossos dados, 51% das mulheres que prestaram
queixa são de prendas domésticas. Isso significa vida econômica dependente de
maridos ou companheiros, situação que pode gerar, além da dependência econômica, uma
grande submissão e, daí, a retirada da queixa que às vezes acontece, o que não
mais ocorrerá, por conta da Lei Maria da Penha. Observasse, ainda, que 20% das
denunciantes têm a ocupação de estudante; 16% são empregadas domésticas; 16%, comerciárias; 4%
funcionárias; 2% comerciantes e 2%% estão na categoria de outras. Fica
evidente, que um bom número de mulheres é estudante, o que nos leva a supor que
o grupo tem procurado a Delegacia, sobretudo por ter adquirido maiores esclarecimentos no que tange aos seus
direitos.
O depoimento da senhora Pandora . nome fictício para
proteção da depoente - com 25 anos, casada, dona de casa com instrução de nível
fundamental completo, revela o sofrimento de dor e humilhação. Verifica-se o quanto
essa mulher chega a ser tomada por sentimentos de ambivalência, pois de um lado sofre e sente
raiva por ter sido agredida de forma física, moral e sexual, e, por outro, sente medo de ficar só e nutre amor
pelo marido. Na maioria significativa dos casos observados, o medo prevalece e
a violência é aceita de forma passiva, contribuindo para sua perpetuação a
partir da justificativa da responsabilidade na criação dos filhos e na manutenção
da família. Por isso, pessoas como Pandora se suportam às atitudes perversas do
companheiro.

Essas atitudes são postas no ideário da sociedade
alagoana pela estrutura patriarcal do casamento, que atribui papéis femininos
inferiorizados no contexto familiar. Este fato facilita a dependência feminina em relação aos homens. No caso
Pandora, a fala de sua mãe justifica a violência. As categorias da tolerância e
da aceitação passiva do ato abusivo são evidenciadas na fala da mãe ao afirmar:
"Tenha paciência, depois ele muda, homem é assim mesmo". É exatamente
esse discurso que permeia o imaginário feminino e social, e que conseqüentemente
vai produzindo, na estrutura mental da mulher, aceitação do ato abusivo.
Assim sendo, percebe-se que a mulher deve viver
(conforme a tradição patriarcal) a condição de objeto, propriedade do parceiro,
devendo satisfazer suas necessidades sexuais mesmo quando estiver sem desejo. Em
nenhum momento, a mãe de Pandora questionou o dano físico e psíquico causado
pela atitude do marido agressivo para com a esposa e filhos que presenciam
cenas e sofrem a violência. Possivelmente, as seqüelas psíquicas marcarão a
história dessas crianças e continuarão presentes na vida adulta.


Os dados apontam que 37% das que deram queixa, foram
agredidas por esposos e 29% por companheiros; 6% por namorados, 5% por
ex-esposo, 12% ex - namorado, 3% desconhecido,
4% pai; 1% filhos; 4% outros parentes. Os resultados mostram que a maior parte
da violência cometida ocorre com quem a mulher estabelece vínculos afetivos, e
o maior número é praticado por maridos e companheiros,
perfazendo somatório de 66% dos registros. Vale salientar que, nesse panorama,
o lar, que por sua representação social deveria significar o lugar do amor, da
segurança, da tranqüilidade, do estabelecimento de laços de relações humanas profundas,
da harmonia para a mulher e para toda a família, contraditoriamente, passa a
ser o lugar onde as relações são extremamente conflituosas e perigosas, postas
sem o estabelecimento do respeito às diferenças e sem o diálogo que poderia
trazer resoluções dos conflitos. Perceba-se, ainda, que 47% dos atos de violência
referem-se à lesão corporal; 34% à ameaça; 1% a estupro; 15% são de atentados
violentos ao pudor e outros são menos de 1%.
A literatura produzida sobre a
questão da violência doméstica tem demonstrado que a ideologia patriarcal
continua forte no ideário social. A mulher, na vida conjugal, ainda
"deve" manter-se obediente, dar conta de suas obrigações do lar e
ainda atender às demandas do marido com esmero e perfeição, mesmo a que trabalha
fora, o que a faz assumir múltiplas jornadas na vida: mãe, companheira, amante, dona de
casa e profissional. O que se torna evidente, segundo os dados descritos, é a crueldade
praticada pelo homem sobre elas. Hera, estado civil separada, idade 45 anos, nível
médio de instrução, profissão comerciante, com seis meses de separada na
oportunidade de nossa pesquisa, revela a angústia e o sofrimento quando dá seu depoimento
ao mostrar como vai aos poucos se engajando, tomando consciência de si, da sua
situação e paulatinamente vai fenomenologizando sua angústia, sua solidão, sua
dor, quando pensa seu vivido, e toma consciência de seu sofrimento.Com efeito,
a consciência de si é exatamente a que Hera tem diante da sua forma de estar no
mundo e, sobretudo de tomar posição em face de sua situação existencial, consciência
que emergiu a partir da compreensão de seu sofrimento e de sua
auto-determinação no desvelamento de sua condição feminina. Ela se pôs na instância
de sua vivência e nesse sentido ela é, sobretudo, uma escolha pela liberdade.

A Medéia - estado civil separada, idade
48 anos, grau de instrução nível superior, pós-graduação – mostra o peso das
decisões. A fala de Medéia revela que a violência atravessa as fronteiras de
classe social e nível intelectual. Seu discurso está revestido de sentimento de
vergonha e culpa. O que é compreensível, pois a cultura da culpa e da vergonha está
inscrita para o vir-a-ser da condição feminina. A mulher em situação de
violência tem apreendido, através da pedagogia social de negação de sua
identidade, que a desagregação familiar é de sua inteira responsabilidade.
Daí a sua angústia diante de sua
facticidade. A cultura da vergonha e da culpa e do medo vão sendo aprendidas
mediante o processo de socialização das mulheres. Essas categorias se
potencializam na forma acentuada da tolerância, do perdão, da passividade, da obrigação
doméstica que as mulheres têm de cumprir e, sobretudo, da crença de que só pode
ser alguém, ser reconhecida e feliz ao lado de um homem, sem poder imaginar-se
bem caso esteja sozinha.
Muito bom
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