Este material foi publicado em Campus, O Dia, nº 137
Fátima
Maria Lyra Cavalcante é advogada especialista em direito público, lecionou as
disciplinas de direito administrativo e direito constitucional na Faculdade
Raimundo Marinho em Penedo e atualmente é Mestranda em Direito Público na
Universidade Federal de Alagoas.
A cidade em tensão
Maceió:
desenvolvimento e exclusão social
A
cidade de Maceió nasce tímida, em meio a uma Alagoas rural. Nem a doação de
terras a Antônio Manuel Duro nem o Engenho Maçayó foram capazes de impulsionar
o seu crescimento. O Porto de Jaraguá foi responsável pelo desenvolvimento da
cidade, graças a sua posição estratégica para a defesa militar e para o
atracamento das embarcações. Com o tempo, as mercadorias produzidas no interior
de Alagoas, então escoadas pelo Porto do Francês, passaram a sê-la pelo Porto
de Jaraguá, assim como o abastecimento dos produtos que aqui não eram feitos. É
com essa posição de entreposto comercial que Maceió incitava a vida urbana.
Com
o desenvolvimento enquanto cidade, faziam-se sentir em Maceió necessidades
urbanas: ruas precisavam ser alargadas e calçadas, pontes precisavam ser
edificadas para facilitar a mobilidade,
praças e passeios públicos precisavam ser construídos para que a
sociedade maceioense usufruísse momentos de lazer, as repartições públicas
precisavam sediar-se em prédios próprios. A “cidade está em festa”, como o
diria Henri Lefebvre – festa nas residências e nos clubes, festas promovidas
pela igreja. Teatros, cinemas, grêmios.
Contudo,
para que uma parcela da sociedade pudesse viver a “cidade em festa”, outra
parte precisou se submeter a alguns desmandos. Assim, para que ruas fossem
ampliadas, as casas mais humildes foram demolidas e em seu lugar ruas
embelezadas surgiam. Para que as praças e passeios públicos fossem construídos
e servissem de lazer à alta sociedade, os socialmente excluídos foram expulsos
daquele local. Para que a Pajuçara despontasse como zona residencial da
aristocracia maceioense, os pescadores que ali habitavam foram direcionados
para a Ponta da Terra. Quer dizer, a urbanização de Maceió promovia-se de forma
seletiva, criando espaços privilegiados para uma parte específica da sociedade.
A
população maceioense incrementava-se, mas não em razão da indústria, como
ocorreu com outras metrópoles. De início, as pessoas eram atraídas pelas oportunidades
de trabalho criadas pelo comércio, mas a concentração populacional de Alagoas
ainda estava no campo. Somente a partir da década de 60 e seguintes, com uma
grande crise sucroalcooleira sofrida no Estado, Maceió recebeu uma grande leva
de migrantes, mas sem estar estruturada para acolhê-los.
A
base da economia alagoana entra em crise, promovendo desemprego em massa. A
legislação trabalhista torna-se mais favorável aos camponeses e, com isso,
muitos são expulsos de suas casas pelos patrões, que não queriam cumprir com as
conquistas trabalhistas.
Esses
camponeses chegam a Maceió precisando de um lugar para morar e de meios que
lhes garantissem a subsistência. O lugar que lhes foi destinado não era a parte
urbanizada da cidade, dotada de mobilidade e serviços, a “cidade em festa”.
Foram-lhes destinadas as grotas e encostas, vazios urbanos impróprios para uma
moradia sadia, mas o local encontrado para se estabelecer. Da mesma forma,
poucos foram aqueles que conseguiram se inserir no mercado formal de trabalho.
É nesse contexto que surgem as favelas de Maceió assim como o incremento da
informalidade de emprego.
A
partir dessa situação, Maceió passa a se preocupar com políticas habitacionais
voltadas à população de baixa renda e a parte alta da cidade foi o espaço
escolhido para esse fim. Não a Pajuçara, Ponta Verde ou Garça Torta. Essas
regiões já estavam reservadas para a mesma parcela privilegiada da sociedade e
para um determinado nicho de mercado.
A
própria legislação municipal reconhece o fato e com ele corrobora. Basta
analisar o Código de Urbanismo e Edificações de Maceió para identificar as
áreas destinadas à habitação de interesse social (e que coincide com a
obrigatoriedade de baixa verticalização): Trapiche, Vergel, Chã da Jaqueira, Cidade
Universitária, Clima Bom, Santos Dumond, Mutange, Feitosa, Jacintinho,
Tabuleiro, Ponta da Terra, Santa Lúcia, só para citar alguns bairros. Em
contraposição, a nova área nobre da cidade – Guaxuma, Jacarecica, Garça Torta –
não comporta habitação de interesse social (aí há a previsão para
verticalização alta, com máximo de 15 e 20 pavimentos). Esses últimos bairros
fazem parte da macrozona de estruturação urbana, enquanto a macrozona
prioritária para a infraestrutura engloba o Clima Bom, Petrópolis, Santa Lúcia,
Tabuleiro, Feitosa, Jacintinho e região lagunar (as mesmas áreas destinadas à
habitação de interesse social). Entretanto, um breve passeio pela cidade
sorriso é suficiente para perceber onde efetivamente a infraestrutura é
prioritária - onde a “cidade está em festa”.
De
cidade portuária e comercial à cidade turística, Maceió se desenvolveu de uma
maneira excludente, reservando espaços privilegiados para uma determinada
parcela da sociedade ao revés de uma população carente. E o que é pior – essa
lógica permeia as normas municipais. É um cenário desafiador para as
comunidades carentes, movimentos sociais, acadêmicos e para o próprio poder
público que se veem, agora, diante da oportunidade de discutir os problemas
urbanos de Maceió e incorporar soluções discutidas em conjunto em um novo Plano
Diretor.
17 de junho de 2015: a desocupação da Vila dos Pescadores de Jaraguá
Jaraguá
amanhece o dia 17 de junho de 2015 com um aparato militar e policial destinado
à desocupação “pacífica” dos moradores da histórica vila dos pescadores. A
praça foi tomada pela imprensa, movimentos sociais, acadêmicos, enfim, pela
sociedade civil organizada que acompanhou de perto a remoção.
Dentre
as famílias removidas, 25 delas tinham assegurado o direito de ter um
apartamento no conjunto habitacional no Trapiche, mas havia cerca de 100
famílias sem destino, dentre pescadores que viviam na vila há gerações e outras
sem vínculo com a pesca e que há pouco tempo ali estavam.
No
dia da desocupação, a Prefeitura ainda procurava uma escola para alojar
provisoriamente as pessoas removidas, a equipe de assistência social cadastrava
as famílias para que fosse concedido aos seus chefes uma auxílio-moradia (R$
250,00 mensais por 3 meses). As famílias que foram para os apartamentos
reclamavam da falta de estrutura: alguns deles tinham portas e janelas
depredadas e em outros não havia fornecimento de água e energia.
Diante
desse cenário, nos questionamos: mesmo que se entenda pelo direito do Poder
Público em desocupar aquele terreno, é razoável deixar as famílias numa
situação tão precária? As normas jurídicas brasileiras permitem a desocupação
de uma área sem que haja um planejamento prévio sobre o destino das pessoas que
ali residiam?
Este
breve artigo não tenciona analisar os motivos que culminaram na decisão
judicial autorizadora do ato. Pretende-se refletir sobre o modo como essa
decisão se concretizou e se haveria um modo alternativo de cumprir com a
determinação judicial de forma menos agressiva.
Bem,
somos um país que se orgulha de ter uma Constituição Cidadã, uma das mais
avançadas em termos de direitos fundamentais em todo o mundo, dentre os quais
podemos apontar a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança,
à intimidade e a proibição de ser submetido a tratamento desumano degradante.
Mas, de outra banda, temos um direito processual (aquele que disciplina o
desenvolvimento do processo judicial) voltado à proteção da propriedade. Não só
o direito processual, mas a própria formação dos profissionais do direito é
focada no resguardo da propriedade individual. Ainda não se conseguiu incutir
nas faculdades de direito um pensamento direcionado à proteção dos bens difusos
e coletivos e isso se reflete na nossa legislação e nas tomadas de decisão.
O
projeto do novo Código de Processo Civil recebeu emendas para se incorporar nos
procedimentos de desocupação (as chamadas ações possessórias) normas do 7º
Comentário do Conselho de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais da ONU, que
versa sobre despejos forçados, mas elas não foram aceitas. Prazo suficiente e
razoável para a notificação de todas as pessoas que serão desalojadas com todas
as informações sobre o despejo e a garantia de que o Estado providenciará uma
moradia adequada para elas foram algumas das normas rejeitadas pelos nossos parlamentares,
para resguardar as pessoas em vias de ser removidas de suas casas.
A
incorporação de normas dessa natureza nos procedimentos das ações que envolvem
as desocupações em massa, em muito auxiliaria a construção de decisões que
simplesmente determina a remoção das pessoas sem atentar para as condições que
elas terão de enfrentar. Mas, apesar de não existirem normas expressas no
direito brasileiro que discipline essa situação, como no caso da vila de
Jaraguá, nosso ordenamento jurídico é formado por um feixe de princípios que,
partindo da dignidade humana, asseguram que essas pessoas tenham um tratamento
humanizado.
Assim,
já existem raras decisões judiciais que condicionam a remoção a um planejamento
prévio de como se dará o reassentamento das famílias. E isso faltou na decisão
que autorizou a remoção dos moradores de Jaraguá. Um plano de logística prévio,
elaborado pela Prefeitura em conjunto com as famílias, com supervisão do
Ministério Público Federal e da Defensoria Pública da União deveria ter sido o
mínimo a se fazer antes da desocupação. O quantitativo das famílias, onde elas
seriam reassentadas, a continuidade da vida escolar das crianças, do Ponto de
Cultura, dos rituais do templo de matriz africana e do trabalho das pessoas
poderia ser algumas das questões a ser tratadas no plano de logística prévio.
A
partir do caso da vila dos pescadores de Jaraguá, nos questionamos sobre a
primazia que a inviolabilidade do direito à segurança, à intimidade, à vida
privada, à proibição do tratamento degradante deveria ter em face do direito de
propriedade ou, pelo menos, uma tentativa em se equilibrar tais direitos.
Parece que é mais cômodo aplicar o regramento de um Código de Processo, cunhado
na ditadura militar, do que interpretá-lo com os valores da Constituição
Cidadã.
O
dia 17 de junho de 2015 reflete bem essa preferência: o poder de propriedade do
Estado prevaleceu face aos direitos existenciais daquelas pessoas.