Este material foi publicado no Suplemento Campus do jornal O Dia e que circula em Maceió. Nº 140
Quem é quem
Ábia Marpin
Hoje pesquisadora, doutoranda do IESP/UERJ, mestre em
Sociologia e jornalista pela Ufal, pesquisa as relações raciais em Alagoas, em
especial no potencial político das expressividades negras em Alagoas; também
atuou em assessoria de comunicação e produção cultural, sendo uma das
fundadoras do grupo percussivo Coletivo AfroCaeté e uma das idealizadoras do
projeto Batuquerê, que une música e cultura popular para a formação cidadã de
crianças e jovens.
Dois dedos de prosa
Este é mais um texto de Ábia Marpin que estamos
publicando em Campus; são reflexões que passam pela questão negra em Alagoas,
por seu movimento e definições.
Agradecemos à Ábia por ter nos atendido, especialmente por sabermos do esforço que é
realizar um doutorado sério e dispor-se a preparar estes textos para seu povo
das Alagoas.
Vamos à leitura
A rede afroalagoana:
as luzes para uma face no escuro
Parte 2: A invenção de
Zumbi
Ábia Marpin
Numa espécie de extensão da
invenção de Palmares, o foco passa a ser o manejo da memória de uma das
principais figuras deste quilombo, seu líder, Zumbi dos Palmares. São difusos
os limites temporais de tal momento, mas a priori eles estão situados
entre meados da década de 1990 e os primeiros anos de 2000. A invenção de Zumbi
aqui se refere a isto.
Em um contexto nacional,
destacam-se dois eventos que esteiam tal fenômeno: a Marcha Zumbi dos Palmares:
contra o Racismo pela Igualdade e a Vida, no dia 20 de novembro de 1995,
reunindo cerca de 30 mil pessoas na capital federal pela celebração da memória
do tricentenário da morte do líder negro – desde então a data foi adotada como
o Dia Nacional da Consciência Negra no calendário histórico nacional; e a sua
inscrição como herói nacional, no Livro dos Heróis da Pátria, por meio da Lei
n° 9.315, de 20 de novembro de 1996, em 21 de março de 1997.
Além de chamar a atenção para a
memória de Zumbi dos Palmares, os manifestantes presentes na Marcha Zumbi, em
sua maioria militantes do movimento social negro, entregaram ao então
presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, um documento com diversas
reivindicações tanto para o combate ao preconceito e a discriminação racial,
como para criar e efetivar direitos culturais, econômicos e sociais da
população negra brasileira que tinha como propósito essencial converter a
“igualdade formal” em “igualdade substancial”. Pois
Como
registra o documento entregue ao Presidente da República pelos organizadores
da “Marcha Zumbi dos Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida”, o
Movimento Negro considera então que já havia feito todas as denúncias,
destruindo o mito da democracia racial; passaria agora a exigir ações efetivas
do Estado: “É dever do Estado Democrático de Direito esforçar-se para favorecer
a criação de condições efetivas que permitam a todos beneficiar-se da igualdade
de oportunidade, assegurando a eliminação de qualquer fonte de discriminação
direta ou indiretamente e reorientando o sistema educacional no sentido da
valorização da pluralidade étnica que caracteriza nossa sociedade”. (JACCOUD e
BEGHIN, 2002:45)
Segundo Helcias Pereira, um dos
fundadores do Anajô, primeiro núcleo dos Agentes da Pastoral Negra (APN) em
Alagoas, a mobilização do movimento negro para e os reflexos da Marcha Zumbi
são um “divisor de águas” para o tratamento do Estado brasileiro para as
questões raciais. Nesse processo foi criado o Grupo de Trabalho
Interministerial de Valorização da População Negra, o GTI População Negra,
criado por decreto presidencial e ligado ao Ministério da Justiça.
Nota-se que na década anterior,
aqui tida como parte do primeiro momento da emergência da rede afroalagoana,
a invenção de Palmares, as demandas são atendidas prioritariamente por ações no
âmbito cultural, na década de 1990, aqui parte do segundo momento, a invenção
de Zumbi, há uma evolução das demandas para reivindicações pelos direitos
civis.
Tal mudança do tratamento do
Estado também pode ser identificada na criação do I Programa Nacional dos
Direitos Humanos (I PNDH), do Ministério da
Justiça, que destina um tópico específico para a população negra. Os objetivos
do movimento negro passam a figurar também na plataforma do poder público.
Entre estes objetivos estão:
(i) propor ações de combate à
discriminação racial; (ii) elaborar e promover políticas governamentais; (iii)
estimular ações da iniciativa privada; (iv) apoiar a elaboração de estudos
atualizados; e (v) estimular iniciativas públicas e privadas que valorizem a
inserção qualificada dos negros nos meios de comunicação. (JACCOUD e BEGHIN, 2002:20)
Alguns militantes do então
florescente movimento negro alagoano, a exemplo do próprio Helcias Pereira,
estiveram presentes não só na Marcha como em sua preparação, o que, como se
observa em sua fala, gera reflexos na mobilização local. “A partir de 94, nós
criamos o Escritório Nacional dos 300 anos de Zumbi, a gente fez parceria com a
CONEN, a Coordenação Nacional
de Entidades Negras, e vieram pra cá os companheiros da Bahia, Aracaju,
Pernambuco e Rio Grande do Norte, foi o escritório nordeste. Aí nesse caso a
gente fez a Marcha [em Alagoas], a gente ocupou a Praça dos Palmares de forma
muito interessante”.
Ainda segundo Helcias, o reflexo
das mobilizações pelos direitos das populações negras em âmbito nacional,
contextualizadas em relação a um momento histórico de reabertura democrática, e
o processo segundo o qual a imagem de Zumbi como ícone negro figura primeiro na
mobilização de grupos de outros estados, causou – e em certa medida ainda causa
– uma inquietação para que sua relevância seja incorporada também a mobilização
do movimento negro local. “Eu costumo dizer, pra mim, aqui de Alagoas, que tá
longe do sudeste, que o movimento lá era mais efervescente, por incrível que
pareça, aqui em Alagoas a gente tinha Serra da Barriga, a história do Quilombo
dos Palmares e Zumbi, e Zumbi era muito mais homenageado lá fora do que aqui,
pela população alagoana”.
O movimento negro alagoano – e o
nacional – também recebe um incremento de legitimidade com a 3º Conferência
Mundial contra o Racismo, Discriminação, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas,
realizada na cidade de Durban, África do Sul, em 2001. O movimento negro e o
Governo brasileiro participaram ativamente do evento.
Os reflexos podem ser
identificados com a criação, por decreto presidencial, do Conselho Nacional de
Combate à Discriminação (CNCD), ligado à Secretaria de
Estado dos Direitos Humanos do Ministério da Justiça (SDH/MJ),
logo em seguida ao retorno de Durban; e o lançamento, já em 2002, do II Plano
Nacional de Direitos Humanos (II PNDH) e do Programa Nacional de Ações
Afirmativas, sob a coordenação da SDH/MJ.
As metas do II PNDH ampliam as
fixadas em 1996 no tocante à valorização da população negra, consagrando o
termo “afrodescendente”, oriundo da Declaração e Plano de Ação de Durban.
Ademais, o II PNDH inova ao propor uma série de medidas que visam equilibrar e
melhorar os indicadores econômicos e sociais dos grupos raciais menos
favorecidos. As ações propostas dizem respeito sobretudo às áreas de justiça,
educação, trabalho e cultura. Há também no II PNDH o reconhecimento dos males
causados pela escravidão e pelo tráfico transatlântico de escravos, que
constituem crime contra a humanidade e cujos efeitos, presentes até hoje, devem
ser combatidos por meio de medidas compensatórias.
Como destaca Helcias Pereira: “As
cotas, o Estatuto [da Igualdade Racial], a SEPPIR... não vieram por vontade
própria ou iluminação do gestor. Vieram por conta da história que foi criada,
da luta do movimento negro.” A inclusão de Zumbi dos Palmares na galeria de
heróis nacionais, também pode ser interpretada como um reflexo disto que Helcias
identificou como “um divisor de águas”.
Apesar de uma óbvia mudança de
paradigma, esta atualização do personagem de Zumbi na historiografia nacional
oficial também trouxe tensões no sentido de que esta inclusão se efetiva sem
que se altere o status da questão negra quando, por exemplo, se mantém intactas
a representação de personagens contradizentes, até antagônicos. Esta tensão foi
identificada também na pesquisa de Andreas Hofbauer:
Se hoje o povo negro de todas as
parte do Brasil com o esforço estupendo se deslocou até aqui a Brasília para
demonstrar a nossa unidade de objetivo é preciso separar a nossa manifestação
com [de] um discurso de que Zumbi neste momento representaria o ideal de todos
os brasileiros. Mas isto não é verdade. Zumbi representa o ideal do povo negro
e do povo oprimido. Porque Zumbi não pode ser colocado na galeria dos heróis
nacionais, ao lado de Domingos Jorge Velho. Zumbi não pode ser colocado na
galeria de heróis nacionais ao lado de princesa Isabel. Porque esses heróis são
heróis deles, Zumbi é herói nosso - e isso tem que ficar afirmado! (discurso de
Luiz Alberto, 20/11/1995). (HOFBAUER, 2006: 388)
A partir da gestão de Ronaldo
Lessa à frente do governo de Alagoas, entre os anos de 1999 e 2006, Zumbi
começa a forjar-se como ícone da alagoanidade, sendo legitimado como patrono de
várias instituições do poder público. Já em seu discurso de posse, Ronaldo
aponta seu interesse na memória do líder negro: “As circunstâncias históricas
depositam sobre nossos ombros a tarefa grandiosa de conduzir esse processo e
contribuir para resgatar a brava memória de Alagoas, bem corporificada na luta
libertária de Zumbi dos Palmares.” (LESSA apud MARTINS e SANTOS, 2013: 104).
De modo recorrente Ronaldo Lessa
declara publicamente suas inclinação ideológica e determinação estratégica de,
enquanto governador, apoiar a reelaboração das narrativas da história alagoana,
incluindo em posição de destaque a memória de Zumbi dos Palmares enquanto
herói. Tal inclinação também se reflete claramente na incorporação de
militantes do movimento negro alagoano em sua equipe de governo e na
implementação de diversas políticas públicas sensíveis às populações negras.
No entanto, está interação se dá
em via de mão dupla, visto que sua eleição para governador foi pleiteada a
partir de uma coligação, Alagoas para todos, constituída por partidos e
ideologias de esquerda – partidos que se constituem em diálogo com movimentos
sociais e demandas de grupos minoritários. A oportunidade de ascensão de uma
liderança de ideologia de esquerda se dá inclusive em uma situação de crise das
lideranças políticas tradicionais do estado. Segundo os historiadores locais,
Carlos Martins e Laurita Santos, “Havia uma crise no seio das elites políticas
alagoanas, e essa instabilidade política associada a um outro fator importante,
o impeachment do presidente Fernando Collor de Melo, na presidência da república, foram elementos
determinantes na vitória das forças de esquerda em Maceió”. (2013: 101)
Vale destacar que a estratégia de
atuação por dentro da máquina pública não foi uma unanimidade no movimento
negro alagoano. Enquanto um setor via na empatia da atual gestão – ou melhor,
do atual gestor – uma oportunidade de avanço, e se sentia atendida na medida em
que vários militantes estavam sendo incorporados na estrutura do governo, outro
setor interpretava esta ascensão de forma negativa, como um risco para o poder
de embate do movimento – uma estratégia de cooptação.
A seguir, os vários equipamentos
públicos criados, subsidiados ou redirecionados para reverenciar Zumbi dos
Palmares e outros que, se não o façam menção direta, apontam para uma
sensibilização institucional para as questões negras naquela gestão:
a) O criação do Instituto Zumbi
dos Palmares, sistema público de comunicação do Estado, por meio da Lei nº
6.224, de 8 janeiro de 2001.
b) A medalha Zumbi dos Palmares,
criada em 2002, e concedida anualmente no dia 20 de novembro, em menção ao Dia
da Consciência Negra.
c) A mudança do nome do aeroporto
internacional de Maceió para Aeroporto Zumbi dos Palmares, ainda em 1999.
Apesar do Ministério da Aeronáutica resistir à mudança, o governador enfatiza
sua necessidade de instaurar um novo tratamento para a memória de Zumbi:
Não posso atinar que “necessidade
técnica” possa justificar a mudança do nome de um aeroporto. […] Zumbi não
prestou serviços diretos a Aviação porque eu seu tempo de vida a Aviação não
existia sequer em sonhos. Mas como herói brasileiro, foi muito mais além:
prestou serviços à humanidade e, por isso, figura naquela categoria de pessoas
cuja grandeza foge às miudezas de qualquer lei efêmera. O nome de Zumbi
honraria qualquer aeroporto, mas sobretudo seria simbólico se figurasse no
aeroporto da terra onde inscreveu uma das páginas mais autenticas, mais
libertárias, mais corajosas da História do Brasil. (LESSA, 2007 apud MARTINS e SANTOS, 2013:
107)
d) A mudança
no nome do palácio do governo para Palácio República dos Palmares, tendo seus
espaços internos também identificados com personagens negras e quilombolas.
e) A criação da Secretaria
Extraordinária de Programas e Projetos Especiais (SEPES/AL), que em 2003, passa a ser a Secretaria
Especializada de Defesa e Proteção das Minorias (SEDEM/AL), órgão responsável por de implementar políticas públicas de promoção
da igualdade racial, defesa e inclusão dos diversos segmentos sociais vítimas
de discriminação. A gestão ficou a cargo de Zezito Araújo.
f) A criação da Secretaria
Especializada da Mulher, por meio da Lei nº 6.326, de 03 de julho de 2002,
órgão responsável por de implementar
políticas públicas para as mulheres, atendendo a demanda de ordem econômica,
social, cultural e racial. A gestão ficou a cargo de Vanda Menezes.
g) A criação do Núcleo Temático
da Identidade Negra na Escola, por meio da portaria nº 806, de 07 de março de
2004, vinculado à Secretaria Executiva de Educação, com vistas a atender as
demandas da Lei Federal nº 10.639 e da Lei Estadual nº. 6.814/07[i]. A gestão
ficou a cargo de Arísia Barros.
h) A criação do projeto Xirê que,
segundo Helcias Pereira, “Era uma articulação de educadores, era uma comissão
pela transversalidade pela educação na questão étnica. A partir dessa discussão
do Xirê na educação, na rede estadual de educação, várias políticas começaram a
acontecer dentro da instância da instituição.” (In: MARTINS e SANTOS, 2013:
119-20)
Em síntese, a gestão de Ronaldo
Lessa pode ser considerada a face institucional – impossível de ser
compreendida sem suas interlocução e interação com o movimento negro alagoano –
da invenção de Zumbi. Na avaliação do ex-governador, sua atuação teria colado
definitivamente a imagem de Zumbi à identidade de Alagoas.
A outra face iluminada neste
processo de invenção de Zumbi é a da cultura popular e periférica – agora
assimilada e autoproclamada enquanto cultura “afro”. Para a análise da
emergência da rede afroalagoana, esta dimensão se destaca por dois
aspectos em particular: o contingente “invisível” – que não figura na memória
coletiva e pública, a não ser em grupos restritos, e nem mesmo na pesquisa
profissional[ii]
–; e a influência do prestígio e visibilidade dos grupos de samba reggae
de Salvador nesta explosão de grupos percussivos nas periferias de Maceió.
Segundo o percussionista Wilson
Santos, o sucesso nacional do grupo Olodum foi um estímulo determinante para os
movimentos negros de Alagoas, em especial os de cunho cultural: “E no início da
década de 90 o movimento negro aqui em Alagoas ele foi forte! Fortíssimo! Ele
foi muito forte... E acho que 1993, mais ou menos, aí começa essa história de
Olodum, né? […] Quando chega o Olodum no Brasil todo, aí neguinho falou: “Opa,
também quero!”. Aí surgiu o Afro Mandela, né? A partir do Olodum. Do Afro
Mandela já surgiu num sei quem... daqui a pouco a gente tinha uns trinta grupos
de samba reggae na cidade. Mas era muito
tambor, velho! Era muito tambor…”
O que coincide com a memória do
militante Ari Consciência: “Quando o [Afro] Mandela surgiu – que foi o primeiro
grupo [negro] musical cultural de Alagoas, logo depois surgiram vários grupos.
[…] Aí foi um bum. Nós tínhamos aproximadamente uns vinte grupos, ou mais, aqui
em Alagoas. Isso tudo na década de 90.”
Depoimentos como esses, e outros
colhidos durante a pesquisa, ratificam a hipótese de que o prestígio e a visibilidade
de grupos como Ilê Aiê e Olodum foram estímulos diretos para esta mobilização
em Maceió.
No entanto, ao entender a
continuidade com o momento anterior da emergência da rede afroalagoana,
percebe-se que esta explosão também atende a uma demanda do movimento negro
local, que ao assimilar as críticas da folclorização do negro, buscam
privilegiar a escolha de expressões artísticas o mais distantes possível dos
folguedos e correlatos. Em artigo, Zezito Araújo traz esta nova relação entre a
cultura negra e o folclore.
Tal processo [folclorização da
cultura negra] consiste em transformar as manifestações culturais dos negros em
algo irrelevante ou em recheios ideais para se montarem esquemas de
entretenimento para vastas camadas da população, em especial para aquelas que,
independentemente da cor, podem usufruir, de forma mais plena, certo tipo de
lazer produzido pela sociedade brasileira. (ARAÚJO, 2006: 109)
Fato é que estes grupos “afro”
estavam ligados, mesmo que de forma muito instável, a um processo de ressignificação
da identidade negra em Alagoas. Este processo, como destaca o percussionista
Wilson Santos, chamou a atenção da periferia para as questões étnicas
intrínsecas a sua exclusão social: “Isso por um lado foi bom porque movimentou
as comunidades e criava um espaço de discussão, mas que ainda eram deficientes,
tá ligado? Eram espaços deficientes. Se a gente tivesse o amadurecimento que a
gente tem hoje eu acho que a gente poderia com aquele movimento, a gente
poderia transformar e sei lá... mesmo que a gente não conseguisse resgatar uma
identidade passada, mas talvez a gente conseguisse elementos pra trabalhar uma
identidade alagoana”.
Esta deficiência a que Wilson
Santos se refere também pode ser interpretada como um sinal de que estes eram
ainda rudimentos de espaço de discussão, e reflexo de um movimento negro
despreparado para lidar com o potencial mobilizador da arte e da cultura não só
como meio de agregar e entreter, mas inclusive como meio de discutir e
barganhar direitos políticos, visto que apesar de numeroso, o movimento
centralizava as discussões e a maioria dos sujeitos figurava no movimento sem
associar a expressividade do grupo percussivo de que fazia parte com à questão da negritude em sua dimensão
política. Segundo Wilson, “O movimento foi muito forte, as vezes a gente
conseguia, sei lá, 500, 600 pessoas naquela praça dos Palmares, ali lotava. Aí
o pessoal ia mesmo e tal. Mas, claro, você tinha as lideranças que conduziam a
massa, porém a massa, o foco da massa, era somente o tambor”.
A ausência de elementos que
fixassem essa modalidade de expressividade como hábito representativo de
identidade, tornou este movimento vulnerável. Os referenciais que vinham a
reboque com estímulo dos grupos baianos, também se esvaem com o declínio do prestígio
e da visibilidade desses grupos: “Olodum sobe, Olodum desce, e quando o Olodum
desce, naturalmente, esse movimento também começa a descer”, lamenta Wilson
Santos.
Ainda que seja clara a referência
aos grupos baianos, não se pode confundir os grupos alagoanos com cópias vazias
de sentido. Ao considerar que os grupo baianos, com a amplitude de sua
legitimidade e representatividade, forjam um significado característico de
negritude, coadunado aos elementos culturais da origem africana dos negros baianos
– e brasileiros –, e aos da periferia negra, e este significado característico
despontou como um valor universal. Tal valor universal para a negritude, ao
colocar em relevo as similaridades das comunidades periféricas em todo
território nacional a partir do referencial baiano, irrefletidamente desbota as
distinções, seja do grau e tipo de vínculo com a África, seja das
singularidades de cada periferia em particular.
Todo este processo, seja em sua
face institucional, seja em sua face da cultura popular e periférica, está
sendo legitimado pela revisão da memória de um ícone, Zumbi dos Palmares, algo
que serve como um forte argumento mobilizador que toca o afeto dos sujeitos.
Tais afetos, e não o argumento mobilizador, é que justificam a mudança de habitus
que põe em marcha a emergência da rede de valorização da expressividade
afroalagoana.
Referências
ARAÚJO, Zezito. Folclorização e Significado Cultural do Negro. In:
CAVALCANTI, Bruno César; FERNANDES, Clara Suassuna; BARROS, Rachel Rocha de
Almeida (org.) Kulé-Kulé: visibilidades negras. Maceió: EDUFAL, 2006. p.
106-9.
HOFBAUER, Andreas. Uma história de embranquecimento ou o negro em
questão. São Paulo: UNESP, 2006.
JACCOUD, Luciana de Barros e BEGHIN, Nathalie. Desigualdades raciais
no Brasil: um balanço da intervenção governamental. Brasília : Ipea, 2002.
LIMA, Ábia. Luzes para uma face no escuro: a emergência de uma
rede de valorização da expressividade
afroalagoana. 23 de fev 2015. 164. Tese (Doutorado) - Instituto de Ciências
Sociais da Universidade Federal de Alagoas. Maceió, 2015.
MARTINS, Carlos e SANTOS, Laurita. Movimento Social Negro e Estado:
a política pública como resultado dessa correlação. Maceió: Edufal, 2013.
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