Viver
e lembrar: o apanhador de lembranças
Jornalista Railton Texeira
Todos nós temos o que
lembrar. Temos uma história em particular que só nós sabemos e podemos afirmar o
que de fato teria acontecido. Isso por se só já nos tornaria autores
‘originais’ com toda uma bagagem literária – por que não clássica – do processo
da vida que por meio das lembranças nos é possível reconstruir e conservar o
passado do que poderíamos chamar da gente, dos nossos, do nosso lugar, ou, de
momentos da vida.
Essa nossa escrita da
vida nem sempre é trazida para o conhecimento de quem possa realmente
interessar. Trazemos em nossa linha da vida uma narrativa muito interessante
que é pessoal e intransferível, responsável pelo andamento da história do homem,
inevitavelmente, da humanidade e elas nos possibilita um entendimento de que a ‘história’
acontece no aqui e no agora, diferenciando de uma (h)istória enlatada e
empurrada, como diz na periferia, de goela abaixo, pelos livros oficiais, pena
que essa discussão não será feita neste primeiro momento.
Tenho um profundo
respeito e sou um defensor dos bons papos regados com histórias inusitadas de
vidas, chegando a passar horas ouvido-as e reconstruindo um quebra-cabeça socio-histórico
na tentativa de entender a engrenagem da sociedade a partir de várias
perspectivas. O respeito vai além, o recorte que é feito e o momento lembrado é
por nós encarado como confiança de um alguém que se dispõe a confidenciar suas
lembranças, ou seja, imortalizar suas lembranças, pois elas passaram a fazer
parte da vida de quem às apanham.
Lembro-me de várias
ocasiões que quando criança os parentes sabendo que iríamos viajar para
Correntes, em Pernambuco, terra de meu pai, vinham até a nossa casa para mandar
lembranças para seus familiares. “Mandem lembranças para fulano, para cicrano”.
Simples recomendações que eram dadas e que foram fidedignamente transmitidas,
gerando por parte de quem as recebiam, emoções e lágrimas – quase que em uma
sintonia – para ser sincero, muitas vezes incompreendidas
para uma criança, mas que inconscientemente éramos – eu e meu pai – os
portadores e transmissores de lembranças, conhecidas ou não, que eram confiadas
e, sem querer, nos possibilitava o exercício de um jornalismo, digamos que
popular.
Vez ou outra dona
Cecília, esposa do meu tio avô Jordão, chamava-me para escrever cartas que
seriam enviadas para seus parentes. As cartas eram escritas na mesa de jantar
em uma casa clássica para os moradores da Grota do Cigano que ficava no chamado
pé da ladeira, único local onde vendeu carvão por uns vinte anos na região.
Tinha sempre biscoito, café e muitas histórias sobre o que ela chamava de sua
‘mocidade’. As lembranças ainda estão vivas no pensamento, já que não é mais
possível coleta-las para uma futura apresentação, pois ela e meu tio Jordão já
faleceram.
E as lembranças foram
se tornando – inconscientemente – um objeto sagrado de extremo respeito e
admiração que mesmo no jornalismo foi capaz de exercer, como insistentemente me
dizia o amigo Sávio de Almeida, uma militância e, consequentemente, um oficio
que durante muitos anos nos levou a coletar as lembranças de trabalhadores
rurais em luta em áreas de acampamento e assentamento. Já que lembrar é viver,
em certa ocasião durante a gravação de uma história de vida de uma acampada
ouço uma voz no pé do ouvido: “Estou ligado qual é a sua companheiro, você é um
apanhador de lembranças”.
Reconheci pela voz o
camarada Misso que em várias ocasiões – quando possível – era o repórter
fotográfico do coletivo de comunicação Bruno Maranhão. Era uma parceria, como
ele mesmo dizia, “de mil grau” e, nesta ocasião, estávamos no acampamento
Capiana, em Porto Calvo. Tinha acabado de fazer fotos do acampamento e apurar
as informações que eram necessárias para o coletivo e como era de costume ia
atrás de histórias interessantes e, para não mentir, atrás de um cafezinho e daquelas
tripinhas seca.
Não tinha encontrado a
tripinha seca, mas encontrei um barraco e uma senhora, trabalhadora rural, que
beirava seus 80 e poucos anos que me permitiu conhecer sua história. Durante
horas conversamos e, com um café, ouvi o recorte do que lhe era importante e
que merecia – de uma forma ou de outra – ser pelo menos, uma vez na vida
contada para alguém. Não sabia que Misso vinha me acompanhando, inclusive, todo
o desenrolar do processo que resultou naquela conversa que durou para lá de
duas horas.
“Agora entendi o porque
de você dá suas sumidas e demorar companheiro, você é um jornalista que gosta
de apanhar o que as pessoas lembram”, destacou. De fato, Misso tinha razão e ele
foi um dos poucos a perceber as inclinações que estava dando em direção para
apanhar as lembranças. Pois é, Misso tinha razão e não é que ele não tem mais,
porém ele foi tombado por pistoleiros no próprio assentamento e só ficarei com
suas boas lembranças.
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