O negro em Alagoas: história e doença falciforme
Rosana Brandão Vilela e Luiz Sávio de Almeida
Uma pequena introdução
Desde 1995,
o Programa Falciforme (UFAL) se desenvolve em Alagoas e vem exigindo uma
avaliação de sua sistemática de trabalho e da produção científica que promove,
operando, a avaliação, em pelo menos cinco eixos essenciais: o da excelência, o
da implicação social dos resultados das pesquisas, o que diz respeito à vida acadêmica,
o que se refere à implicação nas políticas públicas e, finalmente, o do nível de organização da sociedade civil
através da militância de familiares e de pessoas portadoras da doença.
Essa avaliação
está sendo programada e requer uma reflexão sobre a rede social da doença, as
suas articulações com o conjunto da sociedade, economia e política. Estamos
diante da ligação entre o processo histórico
falciforme e o contexto onde
a doença se localiza. A
introdução da expressão processo histórico
falciforme implica considerar que não se fala da doença apenas como ente
biológico, mas como elemento do próprio processo histórico.
Este nosso artigo é pensado no
âmbito da avaliação que deve acontecer, mas seu objetivo essencial é destacar a
relação entre o processo falciforme e o cotidiano, e nos louvaremos, sobretudo,
no que foi produzido no âmbito do Programa Falciforme (UFAL). O nosso caminho
será o de ressaltar os dados obtidos no contexto epidemiológico, tanto sobre o
social como sobre o genético, devendo, contudo, ser considerado, com
ênfase, que entendemos o processo como político, tanto por se tratar da baixa
renda, como por se tratar do negro. O que é chamado de doença jamais poderia
escapar do jogo do poder.
Da anemia à doença falciforme
Evidentemente, desde muito, a
doença falciforme, por conta do escravismo, ampliou seu território, vindo da
África para - no caso – o Brasil em
geral e Alagoas em particular. Este é um movimento que
seguramente vem do século XVI e se intensificou ao longo do tráfico de
escravos. O processo histórico fez a nossa doença falciforme; ela, apesar de
manter uma raiz africana no tempo, é detalhe de outro local e circunstância, nos
quais existe e interage: o cotidiano de Alagoas. Desde logo fica claro que é
uma imprudência pensar em falciforme abstraindo o contexto alagoano,
significando dizer que se tem toda uma estrutura local inerente ao modo e forma
do processo ou do andamento do falciforme no tempo das relações comunitárias.
Peter Fry (2005) quando escreve
sobre as relações entre falciforme e corpo, apresenta, com base em Melburner Tapper ,
que se desenvolveram quatro discursos principais sobre a anemia falciforme: o
da biologia molecular, o da medicina clínica, da antropologia biológica e,
finalmente, o da genética, no qual, segundo enfatiza, prevalece a lógica
mendeliana.
Na verdade, são vertentes que,
cada uma a seu modo, falam obrigatoriamente da organização política inerente a
este processo falciforme, mesmo que não fique evidente nos textos. É um processo
em que se realça o poder, inclusive, pelo fato de ter impulso na consistência
que assume o movimento negro e na paulatina inclusão da doença falciforme na luta
pela afirmação negra.
A partir de 1990, a doença falciforme
vai se tornando matéria de preocupação política negra, colocada gradativamente
no centro das reivindicações dos setores engajados na questão e formados na
sociedade civil, atingindo o Estado, inclusive, no sentido da pressão por políticas públicas. A
patologia passa a assumir, então, um papel essencial no corpo das
reivindicações do movimento e perde a carga negativa de mera doença, apontando
para os ganhos necessários em saúde, transformando-se, portanto, em matéria de
reivindição. Desse modo, o falciforme, bem mais do que uma doença, transforma-se
em enunciado nas reivindicações que circulam em torno do vasto espectro do que
pode ser chamado de elementos da luta pela reconstrução do papel do negro na sociedade
brasileira. A afirmação política do falciforme abrange em torno de 20 anos de
política brasileira. E, no caso, estamos
a um século da descrição da doença nos Estados Unidos em 1910.
Há, portanto, uma marcha nacional
brasileira da incorporação da doença falciforme como doença nossa e ela acontece
na medida em que se coloca o negro como evidência; ele na correlação nacional
de forças. Não fosse assim, ficaria tão
excluída quanto se procurava fazer crer que o próprio negro estava. Note-se que
o aconselhamento genético no Brasil vem da década de 50, conforme se pode ler
em Diniz e Guedes (2003). Ocorre uma
ligação intrínseca entre movimento negro e geração de uma perspectiva pública
para a doença falciforme, como se pode ver discutido em diversos textos e com
diversos enfoques, como o repasse
realizado por Macedo:
Ao longo da dissertação busquei demonstrar que a década de
1990 inaugura uma série de políticas como resposta a demandas do movimento
negro no que tange à denominada saúde da população negra. O caso da doença
falciforme foi destacado enquanto política específica dentre as inúmeras
propostas de políticas de recorte racial. De acordo com Fry (2005, p.276), a
emergência da doença falciforme no contexto da “saúde da população negra”
representa que a doença, mais do que uma condição biológica do indivíduo portador,
atua como um elemento importante na formação de uma identidade racial. (2006, p.71)
Há
necessidade de se estabelecer uma distinção. Ao longo do tempo, houve forma
diferenciada de trato político e clínico do que seria entendido como
falciforme. Falava-se enfaticamente de
anemia e com isto restringia-se o universo do que poderia ser diagnosticado e
reivindicado. Foi então dada a amplitude que se estabelece na expressão doença
falciforme, basicamente no final da década de 90. O termo doença falciforme,
hoje, se restringe ao gen βs em homozigoze (SS), enquanto que doença
falciforme abrange a anemia e também a associação do gen βs com
outras hemoglobinopatias.
Nota-se que os discursos genéticos não isolam,
mas embasam condições políticas, da mesma forma, por exemplo, que trazem os
haplótipos quando se trata da biologia molecular. Estamos diante também de
interferências na medicina clínica, na dita antropologia biológica e na integração
da lógica mendeliana, dando-nos a entender que um elemento do universo político
consolida o processo falciforme: a noção de poder perpassada pela de movimento
em reivindicação e que, como hipótese, poderia ser explorada dentro da questão
étnica e não categoricamente racial.
Os ganhos
em reivindicação política foram paulatinamente reforçados pelos ganhos no
conhecimento científico, de tal forma que no processo histórico falciforme foi
sendo dada maior abrangência de pressão sobre as linhas públicas de saúde, a
partir de posições da sociedade civil organizada em movimento. Desse
modo, pode ser observado que ganhos na ciência tiveram condições de ser ganhos
políticos, o que não aconteceria sem a vigilância do movimento, mesmo que não
tenha sido formal e, sem dúvida, ela pressionou pela resposta do Estado.
Este pode ser considerado como um raro
momento, em que o movimento popular apropria-se do conhecimento científico e o
toma para as pautas imediatas de reivindicações. Por outro lado, deve ser
considerado que não é matéria, grosso modo, de prioridade para o que poderíamos
chamar de elite, ao contrário de outras patologias menos frequentes e que detêm
verbas orçamentárias bem superiores às destinadas à doença falciforme. O
jornalista Biancarelli (2003) escreve na Folha de S. Paulo, em seu artigo Pacientes organizados têm mais
benefícios:
Viver ou morrer depende não só
da doença que se tem, mas também do lobby que se organiza em torno dela.
O nível de gravidade e letalidade das patologias costuma depender igualmente do
grau de organização de seus pacientes e familiares... Às vezes este critério
chega a ser mais cruel e discriminatório do que a própria doença.
Em grande parte, da pressão do
movimento popular resultaram três importantes portarias ministeriais. A
primeira instituiu, em 1996, o Programa de Anemia Falciforme (PAF); a segunda
(2001) determinou a realização da triagem neonatal e a terceira (2005), o atendimento
integral ao paciente falciforme. Nota-se, sem dúvida, um avanço em direção ao
trato do falciforme e ele ocorre em torno de dez anos mínimos de pressão,
embora o primeiro momento organizado de reivindicação do movimento negro sobre
a doença falciforme leve-nos à década de setenta do século passado, conforme
Jesus et al. (2008) No marco inicial
existe uma tomada de consciência da questão da associação genética e da
afinidade política entre negro e falciforme, fundada na anemia que se
transforma em símbolo de uma condição de saúde tipicamente negra e que pode ser
estendida para a discussão de etnia.
Há um avanço no diagnóstico da
presença falciforme na população, com a triagem neonatal que, imediatamente,
aponta para demanda por serviços de saúde especializados. Amplia-se qualitativa
e quantitativamente o trato do falciforme pela abrangência sobre as
hemoglobinopatias e criação de um mecanismo de informe público e de
identificação de portadores do gen βs ao nascer. Devemos considerar
que essa é uma inovação fundamental, pois o sistema, responsabilizando-se pela
identificação em massa neonatal, seria obrigado a aceitar o conjunto falciforme
como responsabilidade pública.
Doença, cultura e cotidiano
Basicamente, a fisiopatologia da
doença falciforme consiste na substituição de uma base no códon 6 do gene da
globina beta, com a substituição de uma adenina por timina (GAG → GTG). Esta mutação resulta na
permuta do resíduo glutamil pelo valil (β6Glu →
Val), provocando a polimerização das moléculas dessa hemoglobina anormal (HbS)
quando desoxigenadas (COSTA, 2001).
As moléculas de HbS, quando
desoxigenadas, se organizam em longos feixes rodeados de seis filamentos duplos
de polímeros. Esses feixes de "cristais" dentro das hemácias
determinam as deformações das células, dando à hemácia uma forma alongada conhecida
por "hemácia em foice" (COSTA, 2001; ZAGO; PINTO, 2007).
Os eventos citados caracterizam a
doença falciforme por episódios vaso-oclusivos, hemólise, ativação de
mediadores inflamatórios e disfunção das células epiteliais. Isso ocasiona uma
diminuição do fluxo sanguineo e obstrução da microcirculação acarretando
anemia, crises álgicas e insuficiência de múltiplos órgãos (COSTA, 2001; COSTA;
ZAGO, 2001; ZAGO; PINTO, 2007).
É sabido que o processo
saúde-doença não pode representar um campo separado da dinâmica social. Pelo
contrário, tem um caráter peculiar que inclui a multidimensionalidade e,
portanto, a multidisciplinaridade. O processo não pode ser considerado como
algo em si, mas em uma relação em que se tem desde o biológico até o
cultural. Minayo afirma:
Saúde e doença constituem metáforas privilegiadas para
explicação da sociedade: engendram atitudes, comportamentos e revelam
concepções de mundo. (2008, p.258)
Trata-se, portanto, de um fenômeno
clínico e social vivido culturalmente e, assim, importa tanto por seus efeitos
no corpo, como por suas repercussões no imaginário. Para o estudioso da
psicologia social Moscovici (1978), as representações sociais circulam, cruzam
e cristalizam-se através da comunicação em nosso universo cotidiano.
A investigação das representações
sociais sobre saúde e doença em uma determinada patologia, remete-nos,
necessariamente, ao campo de uma “teoria popular”, a um conhecimento particular
acerca do fenômeno saúde/doença entre o grupo, elaborado a partir de
experiências de vida num contexto sociocultural determinado.
Embora frequente na população, a doença falciforme ainda não faz parte do dia a dia do
diagnóstico médico e de profissionais em saúde e nem da sociedade em geral. Isso se deve,
possivelmente, à associação dos sinais e sintomas a outras doenças mais frequentes
como a anemia ferropriva, hepatite e doenças reumáticas, algumas relatadas
entre os afro-descendentes desde muito tempo (FREITAS, 1935). Esse
desconhecimento também na classe médica é uma realidade nossa que tende a ser
minimizada com a triagem neonatal.
Capra (1995) comenta que o modelo
biomédico que orienta o pensamento dos profissionais da saúde está influenciado
pelo paradigma cartesiano, no qual o corpo humano é considerado uma máquina que
pode ser analisado por peças. Essa visão, em nossa opinião, reduz a
possibilidade de compreender o processo saúde-doença como fenômeno
multidimensional, pois revela que a concepção da racionalidade científica
privilegia apenas as variáveis biológicas desse processo.
Como uma doença crônica ainda pouco conhecida e, portanto,
negligenciada, o diagnóstico é tardio, e muitas vezes são comuns no cotidiano
destas pessoas inúmeros atendimentos em serviços de emergência e frequentes
internações que se constituem em momentos de desequilíbrio e de dificuldades
para o paciente. Além disso, conforme Cordeiro e
Ferreira:
[...] o contexto dos serviços de saúde como espaço de
manutenção e legitimação das desigualdades sociais e raciais permite que sejam
criados mecanismos para práticas de discriminação racial e de gênero por meio
de atitudes negativas (2009, p. 354).
Um pouco sobre o processo falciforme em Alagoas
Início e Programa Falciforme
É interessante notar que um dos
artigos pioneiros sobre a doença falciforme no Brasil data de 1947 e foi
escrito em área de grande densidade negra: a Bahia. Trata-se do texto de J.
Acioly, intitulado Anemia falciforme:
apresentação de um caso de infantilismo ([1947]1973). O primeiro diagnóstico em Alagoas – de que temos conhecimento -
foi realizado no Laboratório de Análise Clínica do Hospital José Carneiro –
confirmado por laboratório americano – por Alzeni Câmara Carvalho de
Almeida. No entanto, a pesquisa sobre a
doença no estado só vem ter expressão na década de noventa, cerca de trinta
anos após. Observe-se que o inusitado do diagnóstico levou a uma consulta em
centro avançado de pesquisa. É necessário o movimento negro forçar, como
representante de segmento da sociedade civil, as armações dos serviços
classistas do estado, que jamais iriam priorizar a baixa renda, as populações
marginais ao sistema e, especialmente, negro, elemento marginalizado tanto no
escravismo quanto no capitalismo.
Como passo inicial do que
acontecerá em nosso estado, deve ser visto que na década de 70 surgiu o
Hemocentro de Alagoas (HEMOAL), que diagnosticava e acompanhava clinicamente
casos de doença falciforme, sem, no entanto, ter condições laboratoriais, na
época, para exames mais refinados, capazes, por exemplo, de identificação de
associação entre as hemoglobinopatias. Não se pode deixar de reconhecer que a
criação do HEMOAL foi de alta importância para o trato da hematologia e
hemoterapia no estado, e, no caso da doença falciforme, teve um papel central
tanto de conhecimento como de prestação de serviços. E este panorama passa a
mudar, na medida direta em que, na década de 1990, teve-se a estruturação do
Programa Falciforme no Hospital Universitário Professor Alberto Antunes (HUPAA)
da Universidade Federal de Alagoas.
Na realidade, contudo, o HEMOAL ainda
não tinha a função de pesquisa, embora ligado à Escola de Ciências Médicas,
atual Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (UNCISAL) e que se
encontrava em consolidação, sem maiores atividades de pesquisa e extensão. A
consolidação da pesquisa sobre a doença falciforme foi possível na Universidade
Federal de Alagoas (UFAL), pela integração, basicamente, de genética médica e
hematologia. Disso resultam projetos de iniciação científica, trabalhos de
conclusão de curso e pós-graduações, repercutindo tanto no HUPAA quanto no
HEMOAL. Como se nota, gradualmente foi sendo formado um corpo de pesquisadores
e interessados no estudo da doença falciforme, inclusive ampliando para outras
áreas científicas, como ciências sociais e psicologia.
Posteriormente, o HEMOAL atualiza-se
técnica e cientificamente, ao ponto de podermos falar na existência no estado,
atualmente, de dois núcleos de referência em doença falciforme: ele e o HUPAA.
Na época em que se institucionaliza o Programa, ele era ligado aos serviços de
Hematologia do HUPAA, onde permanece, com integração acadêmica com as áreas de
Genética Médica, Clínica Médica, Pediatria, Ciências Sociais e Psicologia.
Na realidade, quando surge o
Programa Falciforme, em 1995, sua preocupação básica era referente ao trabalho
social junto a pessoas portadoras de doença falciforme e seus familiares.
Frisamos o fato de ser um trabalho social para demonstrar que estava além da
linha laboratorial ou simplesmente clínica.
O fundo de suas preocupações era o repasse de informações com o objetivo
de possibilitar o autocuidado, facilitando o trato da pessoa e da sua família
com a doença, numa perspectiva de educação não formal associada a grupos
específicos; no caso seria educação para a saúde, privilegiando o falciforme.
Um dos caminhos seguidos foi a
promoção de encontros de pessoas portadoras de doença falciforme e seus
familiares. A constância e o nível da discussão estabelecida levaram a que os
participantes fundassem a Associação de Falcêmicos de Alagoas (AFAL) e,
posteriormente, a Associação de Pessoas com Hemoglobinopatias de Alagoas
(APHAL), para maior representatividade social e política das pessoas portadoras
da doença. Isso, sem dúvida, fortalecia a possibilidade de uma atuação em defesa
dos interesses do grupo, pela organização daquela parcela da sociedade civil.
Hoje a APHAL, junto ao HEMOAL, assumem o programa educativo para as pessoas
portadoras de doença falciforme e seus familiares.
No entanto, o Programa gerava
outros ganhos. Um deles foi a estruturação do Ambulatório do HUPAA para o
paciente falciforme, com a organização dos protocolos e sistemática de
atendimento. Isso inaugurou uma continuidade de trato ao paciente e, então, ao
acompanhamento, o que representava, também, ganhos de conhecimento sobre a
doença falciforme e seu modo de apresentar-se social e clinicamente.
Ao mesmo tempo, deslanchou uma
programação de pesquisa somando alunos e professores que começaram a estudar
com maior ênfase o falciforme, gerando trabalhos de conclusão de curso,
projetos de iniciação científica, textos para cursos de especialização e
mestrado, além de material para encontros, congressos e similares, abrindo para
áreas não médicas, como ciências sociais e psicologia.
Neste contexto o laboratório do HUPAA
foi fundamental para subsidiar as investigações e tratamentos clínicos, mesmo
não dispondo de métodos sofisticados para o diagnóstico da doença. Atualmente,
o diagnóstico da doença falciforme pode ser realizado no HEMOAL e no
Laboratório de Triagem Neonatal do Estado, havendo possibilidade de
investigação no nível molecular.
Um informe sobre as pesquisas realizadas em Alagoas
O campo de pesquisa percorreu uma
trajetória. Iniciou com trabalhos de natureza genética/epidemiológica; depois surgiram textos clínicos e,
posteriormente, apareceram escritos na
área de biologia molecular e, finalmente, as investigações incorporaram as linhas de ciências sociais e
psicologia. É claro que a temática vai se somando ao longo da construção do
campo, mas a nossa tendência se encontra na área clínica, especialmente pela
deficiência no Estado, quanto à infraestrutura de investigação laboratorial.
Uma grande parte desta produção vem da iniciação científica e trabalhos de
conclusão de curso, mormente na Clínica Médica.
Mencionaremos,
em primeiro lugar, os trabalhos que falam sobre genética e epidemiologia da
doença falciforme. O primeiro trabalho
foi publicado em 1995. Essa pesquisa mostrou uma prevalência de 4% do gen βs
– traço falcêmico – entre as gestantes do HUPAA e serviu de incentivo para
outras pesquisas sobre o assunto. O quadro 1 apresenta o apanhado dos trabalhos
publicados, realizados em Alagoas em populações distintas. Os resultados
mostram que as pesquisas realizadas com os recursos existentes naquela época
são coerentes com os resultados que aparecem nos dados oficiais da triagem
neonatal do Estado de Alagoas (2010): 3,00%, relatados durante o Fórum Alagoano
sobre Doença Falciforme (ESTELITA, 2010).
Quadro 1
Trabalhos publicados
sobre prevalência do traço falciforme em Alagoas
Publicação
|
Autor
|
População
|
Prevalência
em %
|
1995
|
Vilela; Silva;
Bandeira (1995)
|
Gestantes
do HUPAA
|
4,0
|
1997
|
Silva;
Figueiredo (1997)
|
Serviço
militar do 59º B!MTZ
|
2,72
|
1999
|
Brasil Jr
(1999)
|
Alunos de
escolas fundamentais por amostragem de todas as regiões do Estado
|
3,07
|
2001
|
Thomaz;
Moreira; Souza (2001)
|
Gestantes
do HUPAA
Recém
nascidos (HUPAA)
|
3,16
2,26
|
2005
|
Gomes
(2005)
|
Doadores
do HEMOAL
|
2,06
|
2009
|
Lipinski-Figueiredo
et al., 2009);
|
Amostra
dos recém-nascidos do SRTN
|
2,35
|
Fonte: os autores do artigo
Ainda sobre genética e epidemiologia,
foram produzidas investigações sobre o genótipo das pessoas portadoras de
doença falciforme. Como se pode ver, muda o escopo da investigação. No primeiro
grupo de pesquisas, sabendo-se que a causa da doença falciforme é uma mutação
pontual do gen β globina que codifica uma hemoglobina anormal –
hemoglobina S –, a preocupação estava em encontrar pessoas portadoras do gen βs
– traço falcêmico –, dentro da população em geral ou segmentos dela. Neste segundo
caso que estamos comentando, a preocupação era com a tipagem do genótipo do
paciente acompanhado nos centros de referência para a doença: HUPAA e HEMOAL.
Como se pode verificar, houve
demanda por maior complexidade na
pesquisa, o que implicava maior instrumental laboratorial, especialmente
para a quantificação das hemoglobinas e identificação dos haplótipos.
A fisiopatologia multifacetada da
doença apresenta alterações que
acarretam anemia, crises de dor e insuficiência de múltiplos órgãos. As manifestações
clínicas complexas e diversificadas são influenciadas pela característica
genética, que determina a concentração intracelular de hemoglobina S e pelos
haplótipos, entre outros fatores.
A dupla herança é o genótipo mais
frequente no nosso meio, tanto que em Souza (2004) aparece em 77,95% dos
pacientes do HUPAA e em Lima (2009) o genótipo SS aparece em 62,2% dos
pacientes do HEMOAL, como podemos observar no quadro 2.
Quadro 2
Trabalhos publicados
sobre prevalência do genótipo em pessoas portadoras de doença falciforme em
Alagoas
Ano
|
Autor
|
População
|
Genótipo (%)
|
|||
|
|
|
SS
|
Sβ+
|
Sβ0
|
SC
|
2004
|
Souza, JS
|
Pessoas
com DF acompanhadas pelo serviço de hematologia do HUPAA (N=59)
|
77,95
|
6,77
|
3,38
|
1,69
|
2009
|
Lima
|
Pessoas
com hemoglobinopatias acompanhadas pelo HEMOAL (N=188)
|
62,2%
|
1,1 %
|
5,1%
|
Fonte: os
autores do artigo
As diferenças observadas entre as
duas pesquisas podem estar associadas a diversos fatores, como o tipo de
registro, objetivo e método de investigação laboratorial diferentes; além disso,
no HUPAA, os registros trabalhados foram especificamente de pacientes com a
doença falciforme, enquanto que no HEMOAL trabalhou-se com o conjunto das
hemoglobinoplatias.
No que diz respeito às pesquisas
realizadas sobre a determinação dos haplótipos do gen βs das pessoas
portadoras da doença falciforme no Estado de Alagoas, existe apenas a conduzida
por Vilela, Almeida e Figueiredo, datada de 1998, que discute também os
resultados, tendo em vista o processo de formação da sociedade brasileira,
desalojando o haplótipo como apenas indicador no escravismo, para trabalhar a
sua feição no capitalismo brasileiro e seus resultados regionais. Apesar de os
dados estarem defasados no que diz respeito às informações sobre África e
Brasil em geral, decidimos incorporar elementos do trabalho original com a
finalidade de demonstrar o que vamos chamar de geografia do haplótipo
brasileiro.
Tendo em vista
a escassez de dados em relação aos haplótipos do gen bs, a frequência da doença falciforme em nosso Estado , e a
acentuada heterogeneidade genética da população brasileira, o estudo realizado
se propôs a analisar a frequência dos
diversos haplótipos do gen bs entre os pacientes com anemia falciforme (SS)
do Serviço de Hematologia do HUPAA/UFAL para confirmar a origem antropológica
do gene, suas relações sociais e distribuição espacial.
Nos países
Africanos, haplótipos específicos estão consistentemente associados a grupos
étnicos da região. Desta forma, os haplótipos são nomeados pelo nome da região
geográfica onde eles são mais frequentemente encontrados: Benin (BEN),
República Centro Africana (CAR), Senegal (SEN), Arábia Saudita, Ásia ou Cameroon
(CAM). Os três mais frequentes haplótipos encontrados nas Américas são BEN, CAR
e SEN (POWARS, 1991).
A
frequência de haplótipos do gen βs no Brasil foi analisada por
alguns estudos que sugerem predomínio do haplótipo CAR em S. Paulo e, na Bahia, as
frequências dos cromossomos CAR e BEN são semelhantes (ZAGO; FIGUEREDO; OGO,
1992; COSTA et al, 1993; FIGUEIREDO,1993; QUEIROZ, 1996). Além do aspecto
antropológico, a descoberta dos haplótipos do gene da HbS representou interesse
particular na anemia falciforme, pois os diferentes haplótipos poderiam
fornecer informações sobre as variações na gravidade clínica nesta doença (ZAGO;
FIGUEREDO, OGO, 1992).
Na
tabela I estão resumidos os resultados da análise dos haplótipos. 54 (79,4%) de
68 cromossomos estudados foram do tipo CAR (Bantu), e 14 (20,6%) foram do tipo
BEN (Benin). A combinação mais comum foi CAR/CAR (21 pacientes) seguida por
CAR/BEN (12 pacientes). Apenas um paciente apresentou a combinação BEN/BEN
(Tabela II).
Tabela I - Distribuição do
Haplótipo βs nos cromossomas de pacientes com anemia falciforme do
HU/UFAL
Haplótipo βs
|
Cromossomas
n
%
|
|
Bantu
|
54
|
79,4
|
Benin
|
14
|
20,6
|
TOTAL
|
68
|
100,0
|
Tabela II - Combinação dos Haplótipos em Pacientes com anemia falciforme do HUPAA/UFAL
Combinação dos Haplótipos
|
Pacientes
---------------------------
n %
|
|
CAR/CAR
|
21
|
61,8
|
CAR/BEN
|
12
|
35,3
|
BEN/BEN
|
01
|
2,9
|
TOTAL
|
34
|
100,0
|
Tabela III - Distribuição da Combinação dos Haplótipos em São Paulo , Salvador e
Alagoas
Combinação dos Haplótipos
|
São Paulo
(%)
|
Salvador
(%)
|
Alagoas
(%)
|
CAR/CAR
|
38,16
|
20,00
|
61,80
|
CAR/BEN
|
44,74
|
52,70
|
35,30
|
BEN/BEN
|
10,53
|
17,40
|
2,90
|
Na
literatura sobre a escravidão, é pacífica a afirmativa quanto à existência de
um lastro bantu na feitura da colonização açucareira nordestina, tão logo
Portugal avançou sobre o que era chamado de Angola. Desse modo, não causa
qualquer surpresa verificar os dados produzidos sobre os pacientes do HUPAA,
informações que doravante serão citados como Alagoas. Também não causa qualquer
surpresa estudar os resultados que foram produzidos para São Paulo e Salvador.
A possibilidade de trabalhar comparativamente esses dados é animadora e
significativa, pois nos dá margem a ir às raízes do processo histórico
nacional. Nessa comparação está levantada uma tese: os haplótipos, para fazerem
sentido em sua historicidade, devem ir, obrigatoriamente, para além do
escravismo.
Convém
considerar que os haplótipos são atualidades, e que são elementos políticos.
Desejamos deixar claro que, do ponto de vista histórico, não falam apenas sobre
singularidades orgânicas, mas sobre coletividade. Tudo decorre do fato de que
sangue é tempo e, nisso, não é um marcador cronológico, mas em andamento, algo
contínuo. Somente partindo dessas proposições é que os resultados obtidos pelos
autores começam a ter peso historiográfico, pelo fato de estarem sendo vistos
como implicados em relações sociais, em rede. Então , a expressão estatística do haplótipo
aparece associada ao tráfico intenso, externo e interno e ao processo de
migração que se deu, especialmente, fora do escravismo. Sabemos o quanto de
polêmico é abrigado pelo termo escravismo. É fundamental esclarecer que para
efeito deste texto ele está sendo entendido como sistema de produção que tem
como base a força de trabalho escrava. Essa proposição reduz a pompa teórica
das discussões, mas é suficientemente operacional para o objetivo do texto.
Ao
que nos parece, a tendência da literatura que vem lidando com o haplótipo
(observação realizada em 1998) é a de realçar o escravismo pelo previlegiamento
dado à origem, como se, sub-repticiamente, se desejasse deslocar o Brasil para
a época ou deslocar-se a África para o Brasil. Essa nossa afirmativa relativa
ao deslocamento é necessariamente provocativa, pois implica, inclusive, o modo
de lidar historicamente com o genético: não é o encadeamento orgânico que
atribui um local ao fato; essa atribuição é dada pela natureza e forma das
relações sociais.
Possivelmente,
vários fatores estão circunstanciando esse privilegiamento das origens, do qual
decorre aquele pertinente ao escravismo. No momento, é possível destacar alguns
fatores, mas desejamos referir apenas: (a) o genético sem o seu contexto, (b) o
fascínio da garimpagem do tempo no DNA e (c), como decorrência, a velha
sensação de encontrar marcos iniciais de algo.
A
origem é essencial, mas levar à fixação
em torno dela pode ser – e de fato é – um sério inconveniente para a análise
histórica, pois ela será mais valorizada que o processo, forçando a abstração
do que é essencial ao sangue que estamos comentando: o político, ele mesmo uma
permanente mutação. Desse modo, o elemento fundamental do haplótipo é a sua
mutação, é o fato de ser tempo. O escravismo se encontra implicado ao
haplótipo, mas ele, o haplótipo vai bem mais além, pois, por ser o processo encontra-se
na superação do escravismo. É necessário romper com o quase místico da origem para
dar ao sangue a sua densidade de tempo.
Nesse
ponto, o que parece óbvio deve ser revisitado: São Paulo, Salvador e Alagoas
não são locais do escravismo, mas do capitalismo. Sendo tempo, o sangue
atualizou-se em sua coleta, e nisso o haplótipo trouxe o que poderia ser
considerado como essencial: o trânsito, a mudança e com isso se refere, sem
dúvida, ao quadro estrutural que é o modo como se procedeu a diferenciação
regional brasileira; essa regionalização ainda tem suas melhores indicações em
Francisco de Oliveira (1993), trabalho a merecer permanente releitura.
Francisco de Oliveira é tão básico sobre o Nordeste quanto Manoel Correia de
Andrade (1963), pesando uma diferença de enfoque entre ambos.
Esta
discussão que realizamos, ampliando o significado do sangue, assentando o orgânico
na formação social, permite-nos afirmar que estamos diante de um sangue
radicalmente diferente do sangue do escravismo, embora continue mantendo um
registro: a origem.
Vamos
tomar as indicações de São Paulo quanto ao haplótipo (Tabela III). Pelo menos
dois fatores de grande importância estão implicados: a expansão cafeeira e a
substituição das importações. Essa é a condição histórica do haplótipo estudado
naquele Estado. Ela está associada à construção social, da mesma forma que a
doença esteve associada com a malária (Hill et al, 1991), numa implicação
direta com a natureza africana. O haplótipo se faz dentro do conjunto chamado
cultura, chegando a ocupar posição central e de relevo, como se pode ver no
trabalho de Edelstein (1986), que pontua a caracterização de mitos.
A
expansão do café e a substituição das importações correspondem a passos de
realinhamento regional brasileiro e,
grosso modo, estariam correspondendo também à montagem do eixo de
concentração do capital, que privilegiará sul e sudeste, e não o norte e
nordeste. É dessa montagem e é desse eixo que especialmente o haplótipo de São
Paulo fala. Com o café, transfere-se parte dos escravos nordestinos e com a
substituição das importações, tem-se a transferência da pobreza nordestina,
dentre inúmeros outros fatores, valendo recordar que já havia ocorrido
remanejamento do escravo no século XVIII.
Empobrecidos
e negros são elementos mutuamente implicados; foi isso que o senhorial levou
séculos construindo. Desse modo, quando os empobrecidos nordestinos vão para
SP, carregam os negros nordestinos. Tomando emprestada uma expressão de Octávio
Ianni citada por Almeida (2003), do ponto de vista do haplótipo, na medida em
que se dá a metamorfose do escravo, ele engata-se no que vai ser chamado braço
livre. Desse modo, ao atualizar-se na massa empobrecida, o haplótipo é, ao
mesmo tempo, prova, testemunho e participação no processo nacional.
A
combinação dos haplótipos CAR/CAR – 38,16% em SP (Tabela III) – demonstra a expansão
do capitalismo quanto à base bantu e, ao
mesmo tempo, como, na região, deu-se a combinação de tipos, correspondendo a
uma junção do que o escravismo teimou em
fazer disjunto. Ele, que sempre tendeu a desunir o escravo, tendeu a unir a
base empobrecida: CAR/CAR está em 38,16%, CAR/BEN, 44,74% e BEN/BEN, em 10,53%.
Juntando os semelhantes, temos uma base de 48,70%. O que se sabe é que a junção
de semelhanças estimulava os temores pânicos senhoriais, mas não parecia
assustar uma São Paulo capitalista, onde Angola, Congo, Moçambique e outras
partes do mundo negro se transformaram em periferia, em desemprego e lupem, para usar a antiga expressão
marxista, não como saudosismo político, mas como identificação de um contingente
urbano. Como se nota, quando o sangue se
transforma em tempo na escrita, ele passa a ser um dado essencialmente
político; o DNA se expande pelo conjunto de indicações que o haplótipo fornece
sobre o processo do qual se demonstra inerente.
A composição de Salvador responde,
também, pela adequação entre o encontro do haplótipo e as matrizes da formação
histórica. Sabe-se da sequência das importações dos escravos, da transferência
de população e o haplótipo sugere que a predominância nagô tem a ver com o
processo histórico. A base está refletida na combinação. Observe-se que há uma
predominância de CAR/CAR sobre BEN/BEN, dando-nos um subconjunto de 37,40%,
inferior ao de São Paulo, cuja diferenciação, possivelmente, se dá pela
expressão CAR/CAR (Tabela III).
Nessa matriz de dados gerada pela
pesquisa e pela comparação com os estudos de Salvador e São Paulo, o caso de
Alagoas sugere uma realidade diferenciada. Quando se trabalha com a combinação
dos haplótipos (Tabela III), São Paulo e Salvador tendem a um cluster, enquanto Alagoas é
diferenciada. Em que, portanto, Alagoas se distingue; e no que o haplótipo
estaria apontando para sua história? Convém considerar, de imediato, a
diferenciação existente no tocante aos percentuais da combinação CAR/CAR,
apontando para um nível bantu que foge
do peculiar às outras duas cidades, possibilitando-nos supor que há uma origem
enfaticamente bantu e uma permanência bantu também enfática. Aqui, novamente, o
sangue-tempo abre diversas hipóteses e ter-se-ia que conhecer em detalhes a formação histórica
estadual, para que alguém tivesse condições de afirmativas cabais sobre esta
relação populacional com a base bantu, diferente de Salvador e de São Paulo,
implicando a hipótese de diferentes combinações de haplótipos por áreas de
escravismo e de construção do capitalismo. Possivelmente o processo econômico,
mormente do açúcar e do algodão, construiu uma condição idêntica para Alagoas e
Pernambuco (BEZERRA et al, 2007), que mantém também expressiva quantificação
bantu.
Alagoas é um dos estados mais
empobrecidos dentro do Nordeste brasileiro. O modo típico de organização de sua
produção, sua taxa de geração de emprego, a pressão até mesmo vegetativa do
crescimento de sua população economicamente ativa e outros tantos fatores funcionam
como expulsores de população.
Alagoas expulsa população e não
recebe; desse modo, a reprodução tende a ser sempre com elementos também de
Alagoas e, no máximo, quando se pensa em litoral e mata, de gente procedente da
área açucareira de Pernambuco; assim, a origem bantu tende a permanecer ou, em outras palavras, é altamente
provável que sejamos um estado bantu, marcadamente na mata e litoral, regiões
historicamente açucareiras, com a expressão CAR/BEN e BEN/BEN tendo sido constadas pelas áreas do baixo São
Francisco.
O resultado do estudo aponta para
a necessidade de fazer uma história oral e familiar das pessoas que tiveram o
DNA pesquisado e cujas vidas foram sumariadas no haplótipo, esta espécie de
datação histórica e , na verdade, bom indicador sobre o processo.
Nesse caminho da história de vida
e do cotidiano o sangue vulgariza-se, no sentido de que passa a ser algo do
vulgo, do indistinto, e não da ciência, e o DNA remete não para uma simples
origem, mas para uma situação social perversa que vive o possuidor da doença
falciforme. Até mesmo o nome falciforme tem um quê simbólico; refere-se à
imagem da foice, aquela mesma que a morte carrega. No caso, não é apenas uma
morte física; é também uma morte anunciada pelas condições sociais, conforme já
diagnosticado em outro trabalho (Vilela e Almeida, 1997), na medida em que foi
estudada a situação socioeconômica dos pacientes do HUPAA, ligados ao Projeto
Falciforme, integrando-os dentro das linhas de pobreza estaduais. Com efeito,
estamos diante de famílias com média de 5 componentes, e o paciente tende,
neste contexto, a ser um entre cinco ou um entre três filhos de casais
portadores do traço falcêmico. Isso significa um acentuado peso financeiro da
doença sobre o conjunto familiar.
Os dados batem com o consignado
para todo o Estado de Alagoas, e não vamos repetir o que é conhecido, mas
desejamos destacar que, no conjunto, cada elemento que trabalha sustenta a si
mesmo e a mais dois componentes da família, um dos quais, possivelmente, é o
paciente. No entanto, em alguns casos, é ele que vai sustentar a família com o
benefício que recebe.
Em resumo, o perfil das famílias
falciformes é de extremo empobrecimento e, sem dúvida, a doença falciforme
agrava financeiramente o orçamento familiar.
Outro estudo (ARAÚJO; SILVA; VILELA) em 2004, também
realizou uma identificação das características socioeconômicas
e, basicamente, repete em suas conclusões os resultados de
Vilela e Almeida em 1997. Não houve modificação no alinhamento das
características socioeconômicas da população falciforme. O estudo repete o fato
de as famílias serem desfavorecidas economicamente, e que a doença tem peso
negativo sobre o orçamento familiar, tornando-os ainda mais susceptíveis às
complicações da doença e requerendo maior número de internações para as
crianças portadoras de doença falciforme cujas mães eram menos alfabetizadas (OLIVEIRA;
SANTANA; VILELA, 2000). No entanto, ela avança ao indicar ser necessária que os
falciformes atuem politicamente para uma reivindicação direta por benefícios de
políticas públicas consequentes, nos diversos níveis de administração.
É extremamente difícil realizar um repasse do que se
construiu em Alagoas em torno da doença falciforme, mas julgamos que fizemos um
apanhado breve, porém significativo sobre o que foi produzido e sobre problemas
orgânicos e sociais derivados dessa doença. Esperamos que haja uma contínua
pressão sobre o poder público partindo da sociedade civil, e que o meio
acadêmico, ampliado que está em Alagoas, integre-se ao que chamamos de família
falciforme, um grupo social e político que representa sentido de alta
importância histórica no conjunto da formação social brasileira. Conforme se
pode derivar de Octavio Ianni, em escritos de Almeida (2003), a anemia, as
doenças, o falciforme estão no que chamamos de processo e no deslocamento
dentro da construção capitalista, numa sociedade que vive com inumeráveis
inacabados.
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