- A lição da juventude estudantil ao Judiciário
Lucas Farias
– Supervisor judiciário,
bacharel em Direito pela UFAL e ativista dos direitos humanos
g1 |
O alvorecer da Primavera Secundarista
tem assinalado o protagonismo estudantil no debate público sobre a situação da
educação brasileira e seus rumos futuros.
Ao longo do último trimestre de 2016,
milhares de estudantes têm manifestado impressionante força mobilizadora ao
organizar ocupações pacíficas de escolas e universidades, em todas as regiões
do país e por quase todos os seus estados.
Com todas as especificidades locais e
regionais, o vigoroso movimento estudantil tem apresentado ao cenário político
nacional uma pauta de reivindicações abrangentes que partem de uma base comum,
assentada na garantia de acesso, amplo e irrestrito, à educação pública,
gratuita e de qualidade, no respeito à liberdade de pensamento, no estímulo à
reflexão crítica e na participação estudantil nos espaços e nos processos de
tomada de decisão.
As pujantes ações de nossos estudantes
se inserem no contexto dos mais profundos problemas de nossos tempos, que vão
desde a crise do modelo democrático-representativo em vigor aos limites dos
governos e dos poderes constituídos em fazer cumprir as promessas
constitucionais de uma sociedade justa, fraterna e solidária, com fundamento na
dignidade da pessoa humana.
O que a juventude tem visto em resposta
às suas legítimas expectativas, porém, não traz nada de alvissareiro: a título
de exemplo, aponte-se a ampla reforma do ensino médio imposta autoritariamente
pela Medida Provisória nº 746, sem diálogo com a sociedade civil, estudantes e
professores, que promove drásticas mudanças curriculares ao retirar a
obrigatoriedade de matérias críticas como filosofia e sociologia. A ela se
somam as iniciativas de governos estaduais, como no Paraná e em São Paulo, que,
a pretexto de “reorganizar” a oferta de ensino, fecham escolas públicas,
retiram direitos trabalhistas e previdenciários de professores e reprimem, com
violência injustificável, manifestações pacíficas e necessárias. Adicione-se a
essa atmosfera carregada a proposta de emenda constitucional (PEC 55) que
objetiva o congelamento de investimentos públicos em educação, saúde e outras
áreas fundamentais por vinte anos e temos a tempestade perfeita para a revolta
popular.
É diante desse cenário geral de intensa
disputa política e de engajamento saudável da juventude estudantil na prática
da cidadania que o Poder Judiciário é chamado a intervir.
Esta quadra histórica traz um imenso
desafio que demanda dos agentes do sistema de justiça um agudo e sincero
exercício de autocrítica reflexiva sobre o papel que desempenham em sociedade.
Tal afirmação advém de duas constatações básicas: a primeira consiste no fato
de que o poder jurisdicional é essencialmente político e, portanto – eis a
segunda tese –, também seus agentes e suas ações repercutem e são repercutidos
pelo domínio da política.
Não se trata – é bom que se ressalte –
de ignorar a existência prévia de regras jurídicas a partir das quais se
desenvolve a atividade dos agentes do sistema de justiça, cuja atuação é
pautada por normas constitucionais e legais. O problema que se coloca aos
chamados “operadores do direito” é que seu objeto de trabalho não é um produto
pronto e acabado, não é uma mera ferramenta ou simples engrenagem que, para ser
acionada, segue uma instrução específica, um método de funcionamento que
independe da subjetividade de seu agente.
Aonde essas associações metafóricas nos
levam? Tudo isso quer dizer que, ao aplicar uma regra jurídica para a resolução
de um caso concreto, o agente do sistema de justiça se vê diante de um leque de
interpretações e hipóteses com amplas possibilidades de produção de efeitos
sobre os conflitos políticos na sociedade.
Tomem-se como exemplos disso as
diferentes posições tomadas por juízes brasileiros de estados distintos ao
julgar casos análogos. Ao determinar a desocupação de uma escola ocupada por
secundaristas – em regra, crianças e adolescentes – no processo nº 2016.01.3.011286-6,
um magistrado do Distrito Federal autorizou a polícia a fazer uso de técnicas
de repressão absolutamente condenáveis, violadoras da dignidade humana e da
integridade desses jovens, como instrumentos sonoros de impedimento ao sono e
corte no fornecimento de alimentação e água. Trata-se da aplicação de um
tratamento cruel e degradante enfaticamente vedado por nossa Constituição
Federal, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e por tratados
internacionais de proteção aos Direitos Humanos de que o Brasil é signatário.
Por outro lado, registre-se o que decidiu
o Tribunal de Justiça de São Paulo ao rejeitar pedido de reintegração de posse
do Estado e decidir realizar audiência de conciliação com os manifestantes
(processo nº 2243232-25.2015.8.26.0000), ao argumento de que a gestão
democrática das políticas públicas integra a estrutura de uma democracia
participativa, na qual estudantes, familiares e professores têm o direito de se
manifestar, e o Estado, o dever de pavimentar canais de diálogo e de
intervenção propositiva dos interessados na definição dos assuntos que os
afetem.
Nesse último caso, um dos magistrados
responsáveis pelo julgamento fez questão de assinalar a “dificuldade atávica que o Estado Brasileiro tem ao lidar em momentos
sociais”, em função da “matriz
autoritária da sua gênese”, daí porque não seria “com essa postura de criminalizar e ‘Satanizar’ os movimentos sociais e
reivindicatórios legítimos que o Estado Brasileiro alcançará os valores
abrigados na Constituição Federal, a saber, a construção de uma sociedade
justa, ética e pluralista, no qual a igualdade entre os homens e a dignidade de
todos os cidadãos deixe de ser uma retórica vazia para se concretizar
plenamente”.
Como se vê, são dois casos que envolvem
a mesma situação de conflito, mas que inspiraram decisões judicias essencialmente
antagônicas em seus pressupostos teóricos e jurídicos e em suas consequências
práticas. Eis a provocação que devemos lançar ao Judiciário: é preciso saber
lidar com os conflitos sociais no sentido de sempre garantir o respeito a
direitos fundamentais.
O desafio que se impõe a todos os
agentes do sistema de justiça, em especial àqueles investidos do poder de
julgar, está em conceber as ocupações estudantis não sob o viés infracional e
criminalizante, mas como expressões legítimas do direito à manifestação, à
expressão e à desobediência civil. Decisões que reprimam, multem ou prendam os
estudantes poderão ser efetivas para encerrar as ocupações, mas potencializarão
conflitos dissonantes que irrompem da tessitura social. A vitória da violência
institucional é a derrota da democracia participativa como espaço de solução de
conflitos.
Os meios de que se valem os estudantes
para vocalizar suas pautas, suas angústias e seus sonhos são instrumentos que
problematizam questões políticas, a demandar a abertura de canais de diálogo, a
criação de instâncias horizontais de decisão e a democratização do poder de
definir os rumos de seu próprio futuro.
É por isso que insistimos: o Judiciário
tem muito a aprender com a lição dos estudantes.
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