CAMPUS é suplemento publicado
pelo jornal O Dia de Maceió, Alagoas. Tem Luiz Sávio de Almeida como
coordenador, Luhanoa Rocha como articuladora, Jobson Pedrosa como diagramador,
Cícero Rodrigues como ilustrador.
Deraldo Francisco é o editor geral.
Este texto Catracas Púrpuras de Pablo Carvalho foi publicado na semana de 13 a 19 de abril de 2014, ano 2, nº 59. Desejando obter o texto publicado, dirija-se a redacao@odia-al.com.br
Dois dedos de prosa
Pablo Carvalho
construiu sua carreira em literatura, ainda em Maceió, quando estudante; posteriormente, dedicou-se
ao campo policial, tornando-se delegado na Paraíba e, posteriormente, em
Pernambuco, onde ainda se encontra: Recife. Seu romance Catracas Púrpuras foi
premiado pela FUNARTE em concurso nacional. Isto não concede, automaticamente,
registro de qualidade, mas sem dúvida indica sobre um belíssimo caminho a ser
percorrido.
O
registro de qualidade não é o sinete do Estado, mas o texto em toda a sua
expressão e onde beleza e crueza de
cotidiano articulam um contexto significativamente verdadeiro, demonstrando que
a arte é quase sempre mais versátil para com a verdade do que a chamada
ciência, com todo um corpo minado pelo formalismo.
Cáscara Púrpura, para mim, é uma reflexão
pesada sobre o cotidiano fazendo com que brotem os modos mais profundos da
expressão de pessoas em situação limite na vivência do dia a dia. É isto que se
encontra, ao se andar pela sublimidade
feia expressa pelo autor.
A
fronteira entre a literatura e as narrativas sociais é muito tênue e, sem
dúvida, ela incorpora, pela sua linguagem, uma fertilidade sobre o mundo que a
científica pode tolher. A dor, o prazer, os sentimentos estão mais plenamente
na arte do que na ciência, uma espécie de letra fria, sempre imprensada pela
dilaceração da verdade, enquanto a obra de arte a constrói. Jamais estaríamos
negando a importância do trabalho científico, mas apenas chamando a atenção
para a versatilidade da literatura em entrar por caminhos onde o humano é mais
facilmente radicado.
É
justamente o que se encontra na raiz do texto de Pablo: o humano, demonstrando
por outro lado que condições como beleza e estética não têm fronteiras. Qual a
razão que impediria um Delegado de Polícia vê-las? Nenhuma. Delegado de Polícia
é um dever de ofício, sentir a beleza demanda o olor da poesia. A pergunta é
muita da tola.
Meu
amigo, Campus tem o imenso prazer de
chegar às pessoas, o seu texto bonito e oportuno; na leitura que
você faz da vida, dá-nos sede de procurar pelas Alagoas profundas,
aquelas Alagoas onde o mistério da vida efetivamente se demonstra, para onde se pode ir desde que
se tenha olhos para ver e ouvidos para ouvir.
Um
beijo na sua testa.
Luiz
Sávio de Almeida
Fio a Pavio,
abril de 2014
O
alagoano Pablo de Carvalho é romancista, cronista e compositor. Vencedor do
programa Bolsa Funarte de Criação Literária 2011, da Fundação Nacional de Artes
do Ministério da Cultura, com o romance policial Catracas Púrpuras. O
lançamento aconteceu na sede da Funarte, no Rio de Janeiro, em novembro de
2012. Catracas Púrpuras concorreu com cerca de seis mil projetos do país
inteiro, e foi o único representante nordestino dentre os cinco vencedores. Pablo
é também vencedor do prêmio Alagoas em cena 2006, com o romance Iulana,
publicado no mesmo ano pela Universidade Federal de Alagoas. Escreveu a novela
O Eunuco (Edições Catavento, 2001), e o romance O Canteiro de Quimeras
(Writers, 2000). Compôs, em parceria com Chico Elpídio, o disco Contemporâneos,
disponível em http://chicoelpidio.blogspot.com.br. Delegado de Polícia, atuou por três anos no
alto sertão da Paraíba, e por três anos e meio no Departamento de Homicídios de
Recife. Atualmente chefia a delegacia de polícia do bairro de Afogados e
comanda uma equipe da Divisão Especial de Apuração de Homicídios do DHPP, ambos
em Recife, PE.
Carlo Magno Santa Cruz e Gabriel
Conceição, a mando do coronel e ex-Secretário de Defesa Social João Batista
Dias, percorrem o submundo atrás de José Emanuel Bunto, estuprador e assassino.
Nessa história sem inocentes nem culpados, em que as palavras e os sentidos, as
técnicas e os sentimentos vivem trocando de lugar, brutalidade e lirismo, canto
e tortura, sinceridade e ganância se encontram, se misturam, se perdem, se
separam e se reencontram em torno dos dois investigadores. Por caminhos objetivos,
por ruas, prostíbulos, praias, sertões, o livro segue seu claro enredo de fatos
concatenados; mas, por caminhos pessoais, sentimentais e estéticos, o mesmo
livro veste a natureza do ato humano com novas formas. Mas que fique claro:
Carlo Magno Santa Cruz e Gabriel Conceição, a mando do coronel e ex-Secretário
de Defesa Social João Batista Dias, percorrem o submundo atrás de José Emanuel
Bunto, estuprador e assassino.
Com doçura poética e sentimentalismo
costurados a rasgos de crueza e realismo brutal, a literatura, com sua magia,
casa visões aparentemente inconciliáveis: cria a poética na desgraça e vai suturando
abstrações dentro do caminho implacável que seguem Carlo Magno Santa Cruz e
Gabriel Conceição, homens de violência. O autor testemunha dois mundos e junta
na mesma caixa o que viveu em sua carreira nas polícias de Alagoas, Paraíba e
Pernambuco, ao universo abstrato e metafórico criado quando escreveu o romance
Iulana. Aparentemente, Catracas Púrpuras leva o leitor a viajar por dois mundos
distintos, mas quando a aventura de Carlo e Gabriel chega ao fim, a realidade
se torna coisa só, e já não se sabe mais se um dia houve as fronteiras da
convenção e da mania de classificar a vida. No fim de tudo, Catracas Púrpuras é
um livro sobre a realidade das coisas.
Catracas
Púrpuras
Pablo
Carvalho
Catracas Púrpuras nasce de minha
estranheza diante da violência. Não digo estranheza pelo fato da violência em
si, mas pelo fato de as pessoas não enxergarem na violência a sua inafastável
carga poética. Durante meus anos todos de polícia, sempre percebi naquelas
tragédias de delegacia, naquelas formas emocionais, naquele sangue espalhado, algo
de uma, digamos, sublimidade feia, que toca a alma muito mais que a simples compaixão
ou o choque da narrativa de um fato bruto e criminoso. Claro que isso não
significa frieza diante da dor alheia; ao contrário, significa expandir os
horizontes, o alcance, a estética diante do ciclo da tragédia humana em uma de
suas expressões mais explosivas, que é a que se dá no palco da vida policial,
talvez menos intenso apenas que o da guerra.
Sendo mais claro: eu lia os poetas,
ouvia os músicos, divagava, meditava e, sempre que estava diante de um drama
policial, de um homicídio, por exemplo, aquelas formas artísticas invadiam
minha visão junto com a cena do cadáver esfolado em torno de sua moldura de
sangue, e isso não afastava de mim o fato em si, brutal, duro; isso apenas o
adornava de algo mais completo. E eu não via essa conjugação de coisas na
ficção, na poesia – se existe, desconheço. O que eu via eram expressões ou de
puro distanciamento artístico para a abstração, de um lado, ou, em seu extremo
oposto, de um realismo objetivo e quase jornalístico.
Assim, comecei a escrever essa poética
da desgraça em estilo lírico, em estado de fantasia de forma e conteúdo, depois
fui rasgando o texto com entradas de realidade nua e crua. E invertia o jogo: o
que aqui se narrava com sutileza e musicalidade, ali se narrava com objetiva
grosseria. Fazia isso na narração, depois na descrição, e por fim nos próprios
diálogos. Depois, feito quem pinta uma tela ou talha uma escultura, eu me
afastava e observava o resultado. Ficou bacana: quase não acredito!
Enfim, minha visão da coisa era aquela:
aquele lance vertical que considerava tudo, engolia tudo, reparava em tudo,
desde a matéria em decomposição até o mais refinado contorno metafórico que
estava ao meu alcance. Mas flutuava a pergunta essencial: as pessoas haveriam
de entender aquilo? Fiz o teste. Mandei trechos a uns amigos. Surpresa minha:
entendiam claramente. Chocavam-se, achavam estranho, mas o texto era, no final
das contas, perfeitamente compreensível, mesmo a leitores não habituados à
literatura de arte. Nada de hermetismo. O livro estava claro como o dia.
O segundo teste foi concorrer pelo Bolsa
Funarte de Criação Literária, do Ministério da Cultura. Era uma parada
duríssima: um desconhecido escritor, delegado de polícia, nordestino do pé
rachado, nascido e crescido em Alagoas e agora morador de Pernambuco,
inscrevendo um projeto de livro exótico para concorrer com quase seis mil projetos
do Brasil inteiro. Passei na primeira fase, a regional. Na segunda fase, a
nacional, a FUNARTE escolheria apenas cinco livros para publicar por seu selo.
Catracas Púrpuras foi escolhido dentre os cinco, e aqui estamos.
Mas Catracas Púrpuras ainda é um livro
desconhecido dos públicos alagoano e pernambucano, muito pouco divulgado – os
jornalistas Luis Vilar, Vanessa Alencar e Simone Cavalcante ainda escreveram
sobre a obra e seu lançamento. De quem é a culpa desse desconhecimento? Minha,
principalmente. Confesso que sou uma desgraça em termos de autopromoção:
tímido, caseiro, não-tribalizado etc. Outro fato contra é que o livro apenas
pode ser comprado na livraria da FUNARTE (http://www.funarte.gov.br/edicoes/.), no Rio de
Janeiro, ou em alguns sites. Mas, em breve, a FUNARTE, detentora dos direitos
autorais, irá disponibilizar a obra para download grátis. Vamos aguardar. Estou
otimista com essa possibilidade de difusão ampla e gratuita.
Vinheta
Dois olhos, injetados de pura raiva, enquadram
a vítima.
Mas a raiva, coisa densa e externa, está apenas
nas sobrancelhas que se juntam em compressão, e nas pupilas sobre as quais as
pálpebras caem diagonalmente: dentro do homem o ambiente é de calma. É tudo e o
mais em silêncio e quietude. Em torno ao coração parece haver uma neblina, ou
garoa de doce umidade, de manhã serrana, embora faça meio-dia em ponto no tempo
de fora.
O antebraço se contrai e enverga o indicador,
que atrasa o gatilho – apesar de o movimento ser à retaguarda, passa tanta
sensação de avanço que nos confunde ver e sentir.
O cão, que tem forma de cavalo e aspecto de
cão, segue em marcha à ré a intenção do irmão gatilho, de quebra girando o
tambor como que com a ponta da pata.
De repente o esforço se detém. O gatilho para a
milímetros do guarda-mato. O cão, que tem aspecto de cavalo e forma de cão (ou
será o inverso?), oscila em gesto de touro estudando.
Uma pupila, em forma de túnel, mantém a visada
perfeita; a outra, coberta da pálpebra, está desligada. O dedo avança (ou
retrocede?) e o cão chifra o percussor que espeta a espoleta que incendeia a
pólvora que explode e expande gases que empurram o projétil pelo cano fora, e o
projétil (agora, desaceleremos) avança com sua cena para o parágrafo abaixo.
O projétil, nave de chumbo com astronauta
remoto, gira e perfura o ar, como uma broca (e isso, destoando quase deste
jeito de fazer literatura, é literalmente assim), preciso e espiralado,
desfazendo-se de resíduos e fogo e fuligem e som, purificando-se a girar
linearmente até entrar pela nuca de um homem cujos olhos só se esbugalham de
susto quando o projétil já lhe extrapola os tecidos pelo orifício de saída.
Deixando para trás o corpo que se ajoelha, e
antes mesmo de esse corpo ajoelhar-se, o projétil, rajado de sangue e
polvilhado de fragmentos ósseos, choca-se contra um poste de concreto e ganha
forma de cogumelo.
Esse cogumelo, uma vez rebatendo do poste – bem
em frente à lente da câmera –, é cercado por uma expansão de cimento, sangue,
chumbo e farpas de ossos cranianos.
Justo nesse momento, justo quando as forças e
as coisas se afastam e crescem para cessar, paralisemos a cena e enviesemos,
saindo do nada, o nome Catracas Púrpuras.
Boa leitura.
- Os injustiçados
Noite, noite enorme, infinita
noite de azul desviado em preto. Noite invisível às pessoas que estão debaixo
da iluminação pública, sob lâmpadas invejosas de estrelas; lâmpadas municipais
que não deixam ver mais que o brilho tributado de suas caras. Sim, noite de
começar um livro, noite que fez começar todos os livros, as palavras todas da
tristeza dos homens.
Por entre essas palavras, que
estão em tudo, na composição dos prédios, nas pedras do calçamento, no ar e na
água, nos pés e nas mãos, Maria Silva caminha com um caderno abraçado aos
peitos. Caminha, passeia, ajeita os cabelos com suavidade, e de um instante
para outro, do tempo novo que engoliu o tempo novo, se vê raptada, arrastada
para o mato, rumo à cena que segue.
*
José Manoel Bunto, apelido Bunto,
resfolegava, gemia, rangia dentes em pleno ato de estupro. Batia nas carnes de
Maria Silva, e dos sexos unidos fundos gritos infernais ressoavam. As mãos do
casal se tateavam com sofreguidão. Ele lhe acarinhava os cabelos; ela gozava
inúmeros estribilhos irritados. Enquanto isso, o mato em torno se debruçava e
se encaroçava em flores de pétalas voltadas para dentro. Maria Silva ardia e
machucava os cotovelos no barro, rezando para que Santa Cecília, que nada vê,
lhe cuspisse uma unção por ela gostar tanto assim de sofrer por dentro, e de
maldizer o que ama: a violência funda, a subjugação, o tapa no rosto com reação
delicada de noiva em mão para aliança – nunca houve, delirava ela, nem haverá,
mais que a noiva, figura de mulher oferecida.
Depois do gozo, uma viagem
íntima, em submarino, em asa de arraia, rente à delicadeza que cresce, como
liquens, nas paredes do coração. Depois do o gozo, carnes mortas, bocejos de
tempestade, e mãos acarinhando tudo em tato vermelho, amanhecendo de dentro
para fora. Depois do gozo, a consciência decanta, os olhos se abrem, os ouvidos
atentam às vozes do mundo.
(...)
Depois do gozo – daquele –, outro
gozo vinha:
Para ele, o estuprador, o gozo
bastante provisório de contemplar a mulher desfalecente, sangrando pelo cabo da
adaga, morrendo em torno de uma poça onde as estrelas mortas da noite boiavam
como rosas acesas; de contemplá-la gemendo, boquiaberta, aos partos, aos gozos,
às separações, entre um espelho carmim e a vista de flores inalcançáveis, acima
e abaixo, além de além, dentro do intervalo em que aparece a figura do monstro,
ainda olhos dos seus olhos de macho, ainda dono do instante.
Para ela, a estuprada, o gozo
definitivo de ser penetrada no ventre, o de espalhar em torno de seu corpo
pálido um jardim de intimidade; o de morrer com a vista submersa em si,
vendo-se enrubescida por si mesma. Poderia cantar, a pobre moça, pois estava
feliz, e tanto mais feliz quanto mais anêmica, tanto mais leve quanto menos
sanguínea. Amou o momento derradeiro como a admirar um homem aparentado ao
Cristo.
2. Os
injustiçantes
Era segunda-feira, cedo, muito
cedo, mesmo para um dia assim antiquíssimo. A primeira hora de luz descortina o
cadáver, desembainha mil lamentações e as põe em espera, olhos em vigília,
eternamente à esquerda e à direita. O cadáver é uma mulher que paralisou a
velhice – mas, em compensação, abriu mão da juventude –, emoldurada por uma
aura de sangue coagulando, coroa de flores em outono de fora para dentro.
Debruçada, boia no vermelho e infla a pele, já ensaiando ir até Deus do céu.
Perto dali, uma garotinha passeia seus pequeninos pés pelo canteiro, através da
mais pura realidade. Sente o cheiro da carniça, cogumelo abstrato. Uma folha
podre nasce sobre sua língua, lâmina delicada que se dissolve e vaza pelas
narinas. Aproxima-se por uma trilha. Não crê, mas vê o terrível presépio: a
mulher morta, visão em impacto, agonia no tempo. Corre à procura de si mesma:
às pernas de pai e mãe. Duas horas depois o noticiário escancara sua parolagem
sobre os edifícios acinzentados:
– A cidade está em luto. Foi
encontrado o corpo de Maria Silva, desaparecida há dois dias. A jovem estudante
foi estuprada e em seguida morta com um golpe de punhal no abdome. Ainda não há
suspeitos, mas a polícia segue em incansável investigação. Maria era filha do
coronel da reserva e ex-Secretário de Estado João Batista Dias, conhecido por
todos como Doutor. Doutor, que também é cantor, lançaria, no próximo sábado,
seu primeiro disco, intitulado O Seresteiro. O evento, que aconteceria
no Clube de Iatismo, foi cancelado.
Longe da difusão, a mãe de Maria
Silva vomitava sobre o tapete da sala um enorme álbum de fotografias, que arrebentavam
da garganta e secavam a fogo e dor. Metia as unhas nas cortinas da vida,
tentando rasgá-las e encontrar a filha sã, numa camada que houvesse atrás das
que teimavam em iludir seus olhos com imagens tão inacreditáveis. Mas nada
havia que desmentisse o que estava posto. Morte. Morte. Morte presente: a filha
ainda existia, mas só onde a ausência de oxigênio.
– Desgraçado! Cão! Matou minha
filhinha; tão nova, tão cheia de sonhos!... Digam que é mentira! Quero falar
com ela; liguem para o celular dela... Quero ouvir sua voz... Cão,
desgraçado...
O pai, ao seu lado, tragava
aquele vômito colorido, respirava a dor dispersa e projetava um ronco
subterrâneo, cheio de luz em trevas, amando a filha, ninando-a em ódio. As
canções que, dias antes, voavam por sua cuca, vazando por seus assobios,
transformaram-se em britas, caíram e se espalharam, a machucar as plantas de
seus pés, que seguiam, um ante o outro, em marcha pesada rumo à hora do
sepultamento. Ele juntou as cifras num baú velho: inúteis coisas, música sem
sentido. Britas do que eram frases! – nem podia atirá-las contra as cordas do
violão, a ver se ao menos uma nota torta surgia: era agora o anticantor,
fundamente, como se em batistério proclamado.
– Eu pego, eu mato, eu esmago os
colh. do desgraçado! Arranco as unhas, furo os olhos! Filho de uma puta,
amaldiçoado! Como pôde?!
4. O pai deseja a
morte
Na delegacia de homicídios, entra
o pai de Maria Silva. Arqueado, olhos arrastando-se no chão, as pupilas
arranhadas. Senta-se em frente à mesa e ao sentar ergue-se, que, embora
rasteje, o homem varado de dor senta (e todo homem vivo, no termo dos atos,
senta, inequivocamente: os que voam pousam, os caídos erguem-se; bem assim os
que caminham, os que acordam; os que sentem os intestinos revirar; os que
acabaram de foder e, fodendo ou não, sentem fome; os que jogam, bebem,
escrevem; os internautas, os atormentados – e por esse caminho cacete e
infindável segue o que segue: que todos os viventes, na vírgula de cada ação,
sentam-se). O pai ferido espalha pela mesa do delegado de polícia a maquete da
tumba, mata a filha novamente, chora sangue puríssimo, quase pastoso, a
esbravejar:
– Não prenda não, doutor! Mate,
mate esse filho de uma puta! Mate devagar, arrancando as unhas, depois castre
com um alicate, e no final jogue gasolina e ateie fogo! Mas me chame, eu quero
participar!...
– Meu senhor, Doutor, até agora a
gente só tem uma pista: uma amostra de sêmen colhida no interior do corpo. Não
havia tecidos debaixo das unhas dela, o que é incomum. É preciso haver, no
mínimo, um suspeito para fazer o exame de comparação de DNA! Já estamos
intimando pessoas da vizinhança, mas é difícil, pois se trata de lugar ermo.
Inclusive, Doutor, é interessante o senhor usar seus conhecimentos pra apressar
esse exame preliminar, pois, quando a
gente consegue autorização para fazer o referido exame, que custa caro, o
resultado pode levar meses para voltar... Mas, como se trata de caso de
repercussão...
– Doutor digo eu: lhe dou
quarenta mil reais! Lhe dou um carro zero!
– O senhor não está me escutando,
Coronel: ainda não há indícios!
– Dou um carro, Doutor; dou
quarenta e cinco mil!
– Por favor, Coronel, com todo o
respeito... O senhor está transtornado, o que é perfeitamente compreensível...
Mas eu tenho de trabalhar...
O pai, escurecido, fechou a
gaveta de oferendas tórax adentro, abotoou o luto novamente. Voltou para casa.
Perscrutou a vizinhança em busca da ausência (quem busca ausência, busca
remédio) da filha; mas não havia ausência, e não havendo ausência, dor havia,
dor enorme: a filha espalhada por todo o bairro, sua voz atrás das árvores,
seus pés eternamente fugindo ao longo das calçadas, seus cabelos balançando num
galope eternamente de costas que é de dizer, imitando inevitavelmente o compositor
(Chico Buarque de Holanda): quanto mais corria, mais ficava.
Entrou em casa. Aliviou-se por um
segundo – mas não mais que isso. Encontrou a mãe, no quarto, com o peso da
filha dependurado nos ombros, que cediam, tornavam-se aduncos, queriam
tocar-se, fechar o rosto materno feito castanha, protegê-lo da visão do mundo:
a mãe, agora mais jovem que a filha. Ela ergueu ao marido um olhar aquoso, que
repetia o estupro e o homicídio – repetia-os sempre, aliás, como novidades
perenes. A dor lhe imolava os nervos. O coração estava pendurado apenas por uma
pelanca. Era uma criatura que parecia só ter bebido água ao longo de cinquenta
e dois anos – e de fato era mesmo.
– E então, ele vai matar?
– Ele nem imagina quem seja... Só
tem uma amostra de esperma, mas não tem suspeitos.
– Chame os dois, homem; chame!
– Mulher, há tanto tempo estou de
mãos limpas; estou em Cristo... Estou aposentado.
– Mas foi nossa filha, nossa
filha!
– Eu sei. Não me aguento mais de
dor.
– Chame, por amor de Deus!
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