Esta matéria foi originalmente publicada em Campus/O Dia
Luiz
Sávio de Almeida é Coordenador de Campus e Viviane Rodrigues, relações públicas,
assessora do Museu Cultura Periférica, membro do Centro de Estudos e Pesquisa
Afro Alagoano Quilombo
Em
torno de 2012 começamos a levantar depoimentos que identificavam um conjunto de
circunstâncias sobre a história de nossa periferia. Neste caminho, sempre
mantivemos estreita relação com Museu Cultura Periférica, ligado ao Centro de Estudos
e Pesquisa Afro Alagoano Quilombo. Nosso
objetivo, era apenas o de recolher informações e publicarmos para ajudar a
algum pesquisador que se dedicasse a estudar as manifestações culturais de
nossa periferia.
Decidimos divulgar alguns textos de nossa colaboração, nada
detalhando e nem mesmo afirmando: apenas preocupações que podem ou não fazer
sentido mas que podem e talvez devam entrar na ordem da discussão.
Próximos Campus aparecerão os textos
dos depoimentos, especialmente falas de DJs. Aliás, deve ser dito que em Espaço
em O Jornal, publicamos vários textos sobre a periferia e, dentre eles, dois
sobre hip-hop. Este texto é bem antigo, mas responde, ainda, pela vida dos
artistas deste campo em Maceió. Ele está como foi escrito (uns dois anos),
salvo ligeiras intercalações.
Um
abraço, boa leitura
Sávio
Luiz
Sávio de Almeida e Viviane Rodrigues
Periferia e escrita da história
Ari Oliveira, uma entrevista chave |
Ela abriga a baixa renda, pessoas
pobres imprensadas em grotas e outros conjuntos similares. A história dessa
periferia nunca foi traçada em profundidade, como se os grupos marginalizados
socialmente não tivessem a dignidade de sujeitos da polis, encravados dentro de um processo que pretende anulá-los
inclusive pela historiografia e pela visão do urbano que se desenvolve.
Uma parceria
Primeiro Grupo de rap em Alagoas |
Ao tempo em que realizávamos e
publicávamos esses registros, crescia o trabalho do Museu Cultura Periférica
ligado ao Centro de Estudos e Pesquisa Afro Alagoano Quilombo, assessorado
diretamente pela co-autora desse artigo e do qual Espaço e Contexto
passaram a utilizar informações e a servirem como divulgadores; bem mais do que
entrevistas no sentido formal, na verdade o que surgia como informação e
análise era fruto de um diálogo entre o Quilombo e o seu próprio lugar através
das atividades do Museu.
Museu Cultura Periférica
O Museu fez crescer registros sobre
essa periferia, gerando documentação sobre a vida de Maceió, fotografando,
gravando, filmando aspectos da vida cotidiana e recolhendo relatos de pessoas
que viveram a construção da cidade, acelerada pela inchação urbana cujo início,
com clareza, foi nos anos 60; embora existisse uma pobreza, o impacto foi
grande sobre a organização da cidade a partir dos acontecimentos que marcaram a
década mencionada.
Daí, no ano de 2012, a partir de entrevistas
feitas por Viviane Rodrigues, saímos
listando, contatando e entrevistando pessoas que, de alguma forma, viram e
viveram a chegada de novos componentes culturais ao dia a dia da
periferia. Realizamos em torno de dez
entrevistas. Hoje estamos começando a divulgar este rico material.
Depoimento e história
O pessoal do Santo Eduardo |
Todos nós temos a dizer sobre a vida;
de certa forma, se todos não somos historiadores, somos arquivos de
circunstâncias e emoções. É absolutamente impossível conceber um depoimento que
seja neutro, como se fosse viável colocar uma parede de chumbo entre o sujeito
e a vida que teve e tem. Todos os depoimentos são pautados por essa ligação,
cada perspectiva pode ser aumentada, diminuída, retirada por pessoas que vivem
o mesmo momento e estabelecem os
próprios limites e recortes.
Em certo sentido, a ideia da
existência de uma memória voltada ao coletivo comporta necessariamente uma
diversidade de posições, o que corresponde à universidade dos sujeitos. Talvez,
fosse melhor dizer que montamos um pequeno mapa de lembranças sobre o hip-hop,
um dos muitos possíveis mapas da estruturação da periferia e suas manifestações
culturais. Estávamos conscientes sobre esta condição que invadiria a todos os
depoimentos, inclusive com recorte e viés que poderiam ser por nós introduzidos,
pois, afinal de contas, propúnhamos temas.
Sabíamos que a fala de cada um
trazia a sua percepção individual, e é nesta percepção que entendemos os
depoimentos que irão ser publicados. Para nós, eles são formas de recordação,
momentos de um diálogo entre o indivíduo e sua circunstância a lidar com seu
passado e, portanto, com seu modo de vida. Apesar deste recorte e talvez em
razão dele, todos são uma contribuição
para a montagem da discussão histórica sobre esta periferia.
Na verdade, estamos diante de uma
série de perguntas que poderiam estruturar um longo texto. Uma delas diz
respeito a como elementos da cultura negra americana transformaram-se em
elementos locais, construídos e explicados pela densidade das relações que se
formam particularmente estabelecidas na periferia de Maceió? Claro que estamos
também, diante de uma sistemática que é a rede de comunicação. Os jovens de
Maceió estavam sendo integrantes e integrados a essa rede que se traduzia em
cinema, discos dos começos do peso da tecnotrônica no enlaçamento de relações
sociais em nossa capital: o mundo foi ficando cada vez mais aqui.
Música, dança e sociedade
O pessoal do Jacintinho |
Houve uma época em que Sorokin, “sociólogo russo branco”, esteve em muita evidência,
inclusive por sua discussão sobre a mobilidade social. Ele tem uma tirada
interessante, embora não seja capaz de chegar às últimas consequências do que
falou, pela insuficiência da base teórica utilizada. É possível discutir que os
pobres de um determinado país são bem mais próximos dos pobres de outro do que são dos ricos do seu. Isso faz sentido,
se pensarmos que os pobres sempre estarão em condição de dominados, e os ricos
de dominantes.
Ele não é e nem poderia ser rastafari, o conteúdo religioso estava
transformado, não se faria presente na vida alagoana. Ele é o
regue-de-nós-mesmos como temos o ripi-ropi-de-nós-mesmos, extensos substantivos
a fazerem face a extenso processo de criação e de recriação que permeia o
encontro das formas pobres.
Jamais poderemos dizer que os fatos
aconteceram como o Dj Ary narra, mas, com toda certeza podemos afirmar que é
desta forma que o Dj constrói a sua fala sobre os acontecidos, representa seu
modo de ser, enuncia suas verdades. Isto nos permite djzer que a malha da memória social requer polifonia, muitas vozes,
cada uma acentuando modos de ver, de sentir, de expressar diferenciados. Nós
estamos diante da forma e modo com que o Dj Ary captou o seu tempo e construiu
suas lembranças.
Os trabalhos de Lewis que passavam
pela narrativa intra família, como,
por exemplo, filhos de Sanches, são fontes excelentes para a demonstração da
pluralidade de olhares e de falas. Com esta afirmativa, nada estamos apoiando quanto
ao círculo fechado que ele abre com a ideia da cultura da pobreza – poverty culture. Apenas levantamos o seu
nome, para argumentar quanto à riqueza de termos depoimentos, não os somarmos e
andarmos pelo eixos que os estruturam. Lewis foi apenas um lembrete de boa
técnica de percepção de falas e sujeitos e do que se pode terminar fazendo de
mau com tudo isto, quando se acelera conclusões. Ele também saiu de moda e foi
parcamente traduzido para o português.
O que desejamos, no fundo, é um
diálogo com a circunstância do ripi-ropi-de-nós-mesmos, perguntar a ela,
esperando que ela fale de si pela pluralidade de vozes que a representam,
sabendo que ela está, de forma particular, em toda fala que se pode ter sobre
ela, vinda ou não, direta ou
indiretamente dela. Como se nota, estamos em um tipo de suporte que se aproxima da instigação hermenêutica.
Sem dúvida ela é instigante, mas
insuficiente e temos de avançar para a organização que temos, dando como razão
suficiente, algo que é trivial: existe um ripi-ropi-de-nós-mesmos, por termos
uma organização de nós mesmos e daí podermos ver que, com consciência ou sem
consciência claramente posta, uma juventude foi em busca de sua liberdade e
marcou lugares privados e públicos e foi tecnotronicamente à rua, para usarmos
a bela expressão criada e argumentada por Darcy Ribeiro.
Um universo político
Ari Oliveira apresentando o DJ Alexandre Araújo |
É quando podemos encontrar o
ripi-ropi-de-nós-mesmos sendo, claramente, também, um elemento do universo
político, do jogo do poder, fundado nele e em suas relações. O ripi-ropi emerge
no que hoje é chamado de periferia e a
expressa de uma determinada forma; emerge e situa-se em nós mesmos, nesta
Alagoas concreta que tem o fantasmagórico urbano da Maceió inusitada em que
vivemos. Ele não precisa declarar-se político; simplesmente é.
Por outro lado, estamos diante da
distinção que sempre mencionamos entre uma Alagoas-de-dentro e uma Alagoas-de-fora
e é necessário reconhecer que o
ripi-ropi-de-nós-mesmos está nas Alagoas-de-dentro, no profundo de nossa
condição histórica. Ele surge incorporando o de fora e o alinhando ao de
dentro, parecendo-nos demonstrar que a pobreza tem o poder de incorporar o de
fora pelo expressivo que se torna em seu cotidiano. Jamais poderíamos afirmar
que o ripi-ropi-de-nós-mesmos nasceria e se manteria nos altos setores de
capital; ele surgiu periférico e se mantém como uma das formas de expressar a
condição de ser e estar periférico tenha quantos fracionamentos suporte.
É, sobretudo importante, verificar
como o movimento vai ganhando espaço público e como as manifestações vão
ganhando público, o modo como vai sendo construída a presença do que estava em gueto, inclusive, na ampliação
de espaço utilizando emissoras de
rádio. A periferia passa a existir como categoria em praça pública, dando,
inclusive, espetáculo para os que passavam em zonas centrais e estratégicas de
Maceió: a frente do Cinema São Luiz e a Praça dos Martírios.
Não era um qualquer que estava ali, e
a imensa maioria deveria ser constituída de pessoas de baixa renda vindas das
áreas pobres. Havia o que afirmar
perante a cidade e a música, a dança, as artes traziam um corpus político onde a condição negra aparecia. Necessariamente, o
negro surgia, pois ele é a base da baixa renda e a transformação do que era de
fora em Alagoas-de-dentro foi buscar, em larga escala, justamente, o que era
negro, o que estava nas Alagoas profundas e se fez dela.
Um outro ponto que deveríamos levar
em consideração ao pensarmos nas origens, é que o movimento começa a acontecer ao mesmo
tempo em que Maceió se desprovincializa, mudando hábitos, costumes. A partir
dos anos sessenta, Maceió vai entrando em atualização, mudando seus hábitos,
especialmente quando se dá a transformação da paisagem em mercadoria mantida e
vivida pelas Alagoas-de-fora, na medida direta em que se inventa a orla,
cognome do exótico.
Paulatinamente, Maceió vai se
vestindo do novo; circulam os jornais alternativos, aparece o rock, peca-se
mais perto de casa; os primeiros motéis eram longe, batia-se no Catolé, e
cresce a Maceió de fora, aprontam-se os hotéis. Boites aparecem.
É esta mudança que viabiliza em boa
parte, o início da profissionalização do DJ, da figura pública que ele encarna,
que passa a vender sua força de trabalho hábil para manter as danceterias e, ao
mesmo tempo, comprometem-se diretamente com a existência de um movimento que,
do ponto de vista de uma visão do urbano (orla) apontava para uma modernização
no lazer. Eles eram tão modernos quanto, por exemplo, a Midô. E, desta forma,
se o ripi-ropi-de-nós-mesmos não poderia estar significando a modernização, no
mínimo, ele estava em seu quadro.
Parece-nos que o momento é rico,
denso, como presença de inúmeros fatores, desde uma modernização pensada para
fora pelo capital à afirmação, para dentro, de uma juventude que buscava forma
de sair da mesmice. Afirmava-se uma
juventude periférica dentro de um contexto de modernização para fora e ela
encontraria seu espaço público, delineando uma exemplar força política, em um
contexto a que muitos chamariam de alienação, mas, categoricamente, o encontro de brecha social de expressão que
foi conquistada e densamente vivida. Uma dobra aparecia na mesmice com que se
pensava branca, a cultura alagoana.
Na certa expressavam dados da tensão
vivida entre uma elite e setores dominados. Possivelmente, a melhor maneira de
ver o ripi-ropi-de-nós-mesmos é buscar a natureza desta tensão e como uma
parcela de juventude atropelada por uma organização excludente, buscou a
afirmação de seu lugar e não teve medo de estar e fazer-se pública, gerando,
até mesmo, sinais de identificação.
É quando nos vem à mente, o grande
achado que foi uma expressão criada por Poliakov: a diabológica. A diabológica
demoniza, transforma em mal tudo que é fora do universo que a cria, mantém e
dá-lhe sentido cotidiano. A juventude vencia a diabológica por dizer,
inclusive, que o público era dela, uma forma de desinventar o gueto. Foi, sem dúvida, um belo momento de afirmação.
Apesar de não ter o viés político
como bandeira alçada, não deixa de nos chamar a atenção, o modo como consegue estar e
viver o movimento ainda dentro de um sistema ditatorial, que não deve ter
encontrado neles um elemento de caracterização de esquerda, mas sem dúvida, a
mera busca de expressão livre já ocasionava um rompimento com o ditatorial.
Não há uma militância política organizada
contra o sistema, estruturada enquanto
contestação, mas era algo diferente, pois, no fundo a sua grande importância
consistiu no fato de que uma parcela da juventude periférica encontrou-se,
soube que existia e resolveu demonstrar-se, quem sabe, uma das gêneses da atual
juventude negra que permanece livre em suas manifestações, como está nas
músicas do Boka, do Invasor e de tantos outros..
Deve ser visto com muito cuidado, a ligação do início desse movimento e a tomada
de consciência de que se definiria uma movimentação em busca de demarcar a periferia.
Neste sentido a música e a dança que se produzia falavam de uma geração que se
assumia pobre e demonstravas-se pobre, bem como diferente. Muito possivelmente,
está, aí, a demonstração de que existia uma geração vinda do processo de
urbanização dos anos 60 e que era uma geração a entender-se periférica, mesmo
que não existisse clareza nesta visão. Ainda não era o tempo dela acontecer.
Embora, fosse estatisticamente insignificante frente ao total da população
pobre, ela trazia a consciência do diferente e rompia com a pedagogia da opressão
que lhes ensinava o caminho da submissão ao sistema. A Praça e a Rua são nossas,
era o que afirmavam, dentre tanta coisa, as danças.
É ainda de pensar que ela trazia o
germe da consciência negra, quando
afirmava o hip hop, e a black music. Havia uma determinação de
fatores negro, sendo interessante perguntar, porque fora buscar os veículos tão
longe? Teria sido pelo prestígio das formas estabelecidas em sistemas
econômicos avançados? Seria a impossibilidade de recuperar e introduzir essa
negritude nas folganças tradicionais que sempre tiveram lugar na periferia?
Debater essa questão é importante pelo valor heurístico. O fato é que se
poderia acusar de alienação cultural, mas sem fundamento, pois, era o exercício
possível de uma juventude buscando uma afirmação pública de independência. Daí
as roupas, o comportamento, as regras de relacionamento interno, o modo de se
demonstrar para o seu local e para a sua cidade.
Este processo continua, mas
encontrando fórmulas e formas diferentes, como não poderia deixar de ser,
inclusive pelo modo como vai se transformando em algo complexo, as relações
culturais que vivem na periferia; são muitos os grupos artísticos que se
estruturam de forma diferente. A periferia é fortemente lastreada em
continuidade de folguedos, dos quais pouco se chega no passado, como a
quadrilha, o coco, o bumba meu boi. Rara a zona periférica de Maceió que não conte
com uma dessas manifestações, das quais a quadrilha foi a que recebeu a maior
espetacularização, reformatação coreográfica e investimento.
O
prestígio do ripe-rope continua, mas a forma de sua organização não passou pela
sofisticação que as outras sofrerame, não foi submetida ao adestramento do
Estado que domesticou o boi –
expressão que tomamos de empréstimo –, patrocinou o coco,
concursou as quadrilhas. O importante é
que tudo nos leva para a dinâmica da periferia, para lugares que a moralidade burguesa,
ao invés de olhar para o seu umbigo, aponta como o local da marginalidade
criminosa.
A grande entrada de evangélicos no hip hop, sem dúvida foi a grande mudança
que ocorreu em seu universo, aquilo que era contestador por excelência para
adquirir “legalidade” poderá tornar-se em um espaço conservador. Isto é algo
que aconteceu com muito das situações contestatória em Alagoas. É o que
aconteceu com o espiritismo e com o próprio protestantismo que ingressaram como
contestadores ao modo católico e terminaram por assumir modos conservadores.
Terminando a conversa
Não
é possível pensar em conclusões em um texto como este. Apenas visitamos o
assunto e assentamos algumas inquietações;
existem pistas em nosso texto que nos encaminham bem mais para a
periferia do que, propriamente, para o ripi-ropi-de-nós-mesmos. Ele é apenas
mais um dos detalhes desta periferia, que merece ser estudada e, sobretudo,
respeitada.