Este pequeno ensaio foi publicado no nº 123, Suplemento Campus, jornal O Dia
Advogado
criminalista, professor de Direito Penal, pesquisador vinculado ao Conselho
Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPQ, além de ser membro
da Coordenação Nacional de Acompanhamento do Sistema Carcerário Brasileiro, do
Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil.
O IDEÁRIO
DE GUERRA NA CULTURA ALAGOANA:
VIOLÊNCIA,
MÍDIA E ESTADO
A crescente sensação de insegurança tem
se apresentado como variável das mais perigosas a qualquer ambiente
verdadeiramente democrático. No Brasil, a repercussão midiática acrítica de
fatos que geram o medo de vitimização na população tende a servir de justificativa
para a elaboração de políticas públicas cada vez mais invasivas às liberdades
individuais.
Em Alagoas, por conta do acentuado ingrediente
histórico-cultural e da falta de vontade política em produzir uma ruptura com
os valores belicosos tão comuns na construção de nosso sistema de segurança
pública, os efeitos dessa dinâmica (violência-mídia-Estado) acabam estimulando
o reforço de um círculo vicioso que corrói os valores democráticos. O resultado
é a tentativa vã de construir a paz primordialmente com base em políticas
públicas que privilegiam o enfrentamento bélico, ou seja, a reação violenta, ao
invés da prevenção.
O surgimento e a manutenção de
personagens sedutores, heróis, principalmente, que dizem exatamente aquilo o
que se quer ouvir, que formulam teses simples e facilmente propagáveis, que se
dedicam a sustentar códigos binários (bem/mal), que não abrem mão de outra
visão de mundo que não aquela lastreada no maniqueísmo, não chega a ser uma
novidade, mas ganha considerável relevo na relação Estado/mídia, especialmente
quando o primeiro, assume o papel de produtor de espetáculos, e o segundo, seu ávido
propagador.
É nesse contexto que temos vivido. Somos
parte daquilo que LLOSA (2013) acabou denominando de “civilização do
espetáculo”. Os valores importam na medida em que nos servem para manter o
espetáculo, é isso o que importa, afinal, ele não pode parar! O respeito aos
direitos e garantias fundamentais são tratados na base da conveniência. Entreter
e divertir as pessoas, mantê-las conectadas aos discursos, essa é a prioridade,
enquanto as práticas autoritárias quando não são percebidas ou contestadas, são
avidamente endossadas.
Nas precisas lições de SCHWARTZENBERG
(1977, p. 9), “hoje em dia o espetáculo está no poder”. Em matéria de segurança
pública então, o Estado tem se travestido em uma grande empresa teatral, em um
verdadeiro “Estado espetáculo”, organizado sistematicamente nesse sentido, na
ânsia de dar respostas às justas e insistentes cobranças populares. Há,
portanto, uma preocupação com o mero tratamento estético, superficial, dos
problemas da criminalidade.
À guisa de exemplo, uma declaração
recente do Secretário de Segurança Pública do Estado de Alagoas, Alfredo Gaspar
de Mendonça, destacado promotor público, pode nos servir
de ponto de partida nessa discussão sobre o espetáculo da violência (real e
simbólica) na contemporaneidade e na forma como ela se propaga acriticamente,
através da mídia, na dinâmica social alagoana.
Adverte-se, no entanto, que não nos
interessa a crítica pela crítica. Razão pela qual ficará claro que nossa
preocupação não se restringe apenas à “nova” gestão das agências policiais, mas
a toda uma estrutura que permite que um ideário de guerra se perpetue ao longo
da história da segurança pública do Estado.
Assim, indagado por um repórter sobre
sua política para o setor, o atual secretário de Estado respondeu que “bandido
em Alagoas na minha gestão só tem dois caminhos a seguir: ou se entrega indo
para cadeia ou morre”. (SOUTO MAIOR, 2015)
Foi essa
a manchete principal de quase todos os sites de notícias no Estado, sem que
tivesse a maior parte da imprensa alagoana se dedicado a fazer uma análise
crítica dela. Aquela contundente declaração, no entanto, fazia-nos rememorar um
círculo vicioso já experiementado na história alagoana, especialmente nas
décadas de 1980 e 1990 (VASCONCELOS, 2014).
No
âmbito da análise do discurso midiático (GAIA, 2011), onde o que nos interessa
é o não-dito, o que está nas entrelinhas, situada entre língua, inconsciente e
história, é possível concluir da referida declaração que, caso não se entregue,
deveria o investigado (presumidamente inocente, conforme mandamentos de nossa
Constituição Federal e da Convenção Americana de Direitos Humanos) ser abatido
ou executado pelas forças policiais.
Segundo
o secretário de Estado, na mesma entrevista, é preferível "um milhão de
bandidos mortos que um policial em Alagoas assassinado". É razoável que assim
se pense. No confronto, por óbvio, sem que haja alternativa menos invasiva e
traumática, é preferível que os profissionais em segurança saiam ilesos. Mas, a
hipérbole, que parece não ter sido dita à toa, é poderosa.
Com
isso, abre-se a clara possibilidade de que a declaração seja sempre utilizada
como justificativa para todo e qualquer evento em que nos deparemos com mortos
pelas forças de segurança. Dirá o policial, "era ele ou eu". E,
covenhamos, não é raro ver esse tipo de justificativa embasando os tais
"autos de resistência". Ocorre que, essa classificação tão usual na
dinâmica policial brasileira, para os indivíduos mortos pelas agências
policiais nos ditos confrontos, na grande maioria das vezes, serve para
escamotear verdadeiras execuções, atos de justiçamentos (BARCELLOS, 2015).
Nesse
contexto, para BATISTA (1990, p. 137), não se pode esquecer que, “as
dissimulações de violência cometidas por agências de ordem (‘autos de
resistência’ visivelmente artificiais, diagnóstico ‘tranquilizador’ de ‘guerra
de quadrilhas’, etc) costumam ser acriticamente endossadas”.
PINTO (2008, p. 246), por sua vez, trabalhando
o conteúdo simbólico do sistema penal e essa relação acrítica quase que de
simbiose desenvolvida entre o Estado e a mídia – cujo quadro se agrava em
Alagoas por conta de os principais veículos de comunicação se encontrarem nas
mãos de grupos políticos influentes nas estruturas de poder (veja-se GAIA,
2011) –, revela-nos que: “os políticos e a mídia falam para as massas,
explorando o medo crescente e o sentimento de terror causado pelos crimes
violentos e por sua divulgação pelos meios de comunicação, e vendendo a ilusão
de que, sancionando leis que reprimam desmesuradamente vulneráveis e
marginalizados que se individualizam, e aumentando a arbitrariedade policial,
ao legitimar, direta ou indiretamente, todo o gênero de violências, obter-se-á
maior segurança urbana contra o delito comum”.
No mesmo
contexto, o secretário de Estado ainda diz não querer que "seu
policial" (o que é um indicativo retórico de possível comportamento
paternalista, ou seja, protetor, que pode servir para angariar simpatia e
fidelidade dos subordinados) saia de casa para matar, muito embora já o tenha
"autorizado" caso o "bandido" resista ou simplesmente não
se entregue.
A
estrutura do discurso repercutido quase que acriticamente na mídia alagoana,
portanto, é muito parecida com aquele já apregoado em outras épocas,
especialmente entre as décadas de 1980 e 1990, quando a participação e/ou
leniência estatal em atos violentos ficou mais evidente por conta do interesse
midiático. Com discursos belicosos como o que utilizamos como exemplo, fica
claro a ideia de que estamos diante de "inimigos" (pecha facilmente
colocada em qualquer um) que precisam ser abatidos ou eliminados, caso não
cooperem com as autoridades constituídas.
As declarações oficiais que exaltam a
disposição de letalidade na atuação dos agentes de segurança pública possuem consideráveis
cargas simbólicas no contexto alagoano. Não se pode esquecer que o Estado se
notabilizou ao longo dos séculos como um dos mais violentos do país, e ainda
hoje o é, onde, quando não era omisso, participava, através de seus agentes,
ativamente de violações aos direitos e garantias fundamentais. (MAJELLA, 2006)
Segundo PAIGE (2009, p. 127), “a teoria
e a prática convencional da segurança deriva, em última instância, da ameaça da
letalidade”, ou seja, a mensagem, por vezes, como no exemplo acima trabalhado,
é cristalina: “queremos deixar-lhe absolutamente claro que iremos matá-lo”.
No entanto, a transmissão de tal ideologia,
em nossa perspectiva, é contraproducente na gestão do sistema de segurança. Alardear
a morte dos que resistem às investidas das agências policiais é, digamos, “dar
força ao inimigo” e, por consequência, estimular sua agressividade, sua
disposição para resistir. Os próprios policiais, portanto, estarão mais
expostos a serem recebidos de forma mais agressiva nas ocorrências das quais
participarem. A disposição para matar pode atrair uma reação da mesma
proporção.
Para PAIGE (2009, p. 127), absolutamente
“ninguém está seguro a partir do momento em que exista alguém determinado a
matar”, mesmo o Estado com todo seu legítimo aparato bélico. Além disso, o
pesquisador conclui dizendo que “a engenhosidade letal vence toda forma de
defesa, desde escudos, armaduras, fossos, muros e castelos até os abrigos para
bomba atômica”.
As autoridades constituídas e suas
relações acríticas com a mídia, queiram ou não, com seus discursos belicosos e
com suas posturas de enfrentamento, acabam influenciando seus comandados e a
própria sociedade, que acaba absorvendo-a como a principal forma de resolução
de conflitos, na manutenção desse círculo vicioso da violência. Veja-se, por
exemplo, o número de pessoas que já foram mortas em confronto com as agências
policias só este ano.
VASCONCELOS (2014, p. 63) nos dirá que
“se é verdade que as autoridades constituem modelos de referência para a
sociedade, as práticas de violência no âmbito do próprio Estado produzem
efeitos estimuladores de violência entre os segmentos sociais”.
Para que se tenha uma ideia do caldo
cultural autoritário com o qual historicamente convivemos, entre os anos de
1980 e 1990, uma frase, tão contundente quanto a proferida recentemente pelo
secretário de segurança do Estado, ressoava de autoridades do mesmo sistema de
segurança pública: “bandido bom é bandido morto”. Era, inclusive, lema da
atuação das agências policiais há época.
Importa
dizer que, para GAIA (2011, p. 33): “Na AD [Análise do Discurso], a ideia de
que todo discurso retoma outros discursos indica um diálogo com outros sujeitos
e com outros momentos, integra a base da categoria interdiscurso, sendo
constituído não somente de intenções, mas igualmente de convenções. O
interdiscurso é ‘[...] o espaço da alteridade discursiva, a possibilidade de
fazer circular, em novos discursos, formulações já enunciadas anteriormente’”.
MAJELLA (2006, p. 20) argutamente
constata que “a violência é parte integrante da história de Alagoas, talvez a
sua principal característica e o traço que melhor a define”. Sobre a
participação do Estado nessa dinâmica, o historiador alagoano conclui que “o
Estado, como conhecemos, tem sido o seu principal mantenedor e cúmplice”.
Além disso, não é raro nos depararmos no
noticiário alagoano com reportagens que, por exemplo, ao informar a morte de um
indivíduo pela polícia, confere mais destaque a sua “ficha criminal” do que à
necessidade do uso da força letal naquelas circunstâncias. Como se o passado do
indivíduo conferisse legitimidade a sua morte independentemente das
circunstâncias.
Não é difícil prever que, diante da
força retórica de declarações como as que analisamos e da visibilidade que a mídia
lhes concede, sem análise crítica, as autoridades passassem a ser cultuadas
pela massa e por boa parte de seus comandados e admiradores como uma espécie de
herói. Apontados como aquilo o que faltava para resolver o incômodo problema da
segurança pública e do medo difuso de ser vitimado.
Na perspectiva de BECK (2011, p. 332),
esse clamor social por “comando político”, apresentado como
solução, vem acompanhado de diversos outros problemas. Ou seja: “a ânsia por
uma ‘mão forte’ cresce na mesma medida em que o indivíduo vê o mundo vacilar à
sua volta. O desejo de ordem e segurança reaviva os fantasmas do passado. Os
efeitos colaterais de uma política que desconsidera os efeitos colaterais
ameaçam converter estes em seu contrário. Ao fim e ao cabo, já não se pode
garantir que o passado ainda não superado não se acabe tornando uma variante possível (ainda que sob outras formas)
de desenvolvimento futuro”.
Segundo a perspectiva de VARJÃO (2008,
p. 20), com a qual concordamos, “há diferentes níveis, patamares e dimensões de
violências e de debate público sobre violências e formas de enfrentamento de
violências”. O problema é a forma atualmente utilizada não só por boa parte da
imprensa alagoana, como também pela imprensa brasileira, para a discussão sobre
o tema. Para a autora, também jornalista: “Enquanto construtores públicos de
discursos, temos, pelo menos, duas escolhas a fazer: discutir maneiras mais
cruéis de fazer frente aos atos cruéis ou formas mais humanas de preservar a
vida; estabelecer parâmetros simbólicos instituidores de realidades mais
próximas da barbárie ou da humanidade”.
É preciso, portanto, não só não supervalorizar
notícias sobre violência, mas, sobretudo, deixar de lado o endosso acrítico dos
discursos bélicos e abrir espaços para uma cultura de valorização da vida,
proporcionando um ambiente em que a valorização da dignidade humana volte a
florescer e a avançar no Estado. (VACONCELOS e PIMENTEL, 2011)
Não há, frise-se, de nossa parte,
qualquer proposta de restrição ou de censura ao trabalho midiático, ao trabalho
da imprensa de forma geral. Esperamos, tal como BOURDIEU (1997, p. 13), que
nossas reflexões não sejam recebidas como uma espécie de ataque contra os
profissionais da segurança pública ou da imprensa alagoana, não se trata de
condená-los ou combatê-los, mas de alertá-los das perversas práticas
antidemocráticas ainda em uso.
Referências:
BARCELLOS, Caco. Rota 66 – a história da
polícia que mata. Rio de Janeiro: Record, 2015.
BATISTA, Nilo. Punidos e mal pagos –
violência, justiça, segurança pública e direitos humanos no Brasil de hoje. Rio
de Janeiro: Revan, 1990.
BECK, Ulrich. Sociedade de risco – rumo
a uma outra modernidade. Trad. Sebastião Nascimento. 2ª ed. São Paulo: Ed. 34,
2011.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão –
seguido de a influência do jornalismo e os jogos olímpicos. Trad. Maria Lúcia
Machado. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
GAIA, Rossana. A política na mídia e a
mídia na política. Maceió: Edufal, 2011.
LLOSA, Mario Vargas. A civilização do
espetáculo – uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Trad. Ivone
Benedetti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
MAJELLA, Geraldo. Execuções sumárias e
grupos de extermínio em Alagoas – 1975-1998. Maceió: Edufal, 2006.
MIRAGLIA,
Paula. Os municípios e a segurança pública. In: LIMA, Renato Sérgio de; PAULA,
Liana de. (orgs.) Segurança pública e violência – o Estado está cumprindo o seu
papel? São Paulo: Contexto, 2014.
PAIGE, Glenn D. Não matar é possível –
por uma nova ciência política global. Trad. Bárbara Canziani Kristensen.
Recife: Editora universitária UFPE, 2009.
PINTO, Nalayane Mendonça.
Recrudescimento penal no Brasil: simbolismo e punitivismo. In: MISSE, Michel
(org). Acusados e acusadores – estudos sobre ofensas, acusações e
incriminações. Rio de Janeiro: Revan, 2008.
SCHWARTZENBERG, Roger-Gérard. O
Estado espetáculo – ensaio sobre e contra o star system em política. Trad.
Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Círculo de Livro, 1977.
SOUTO MAIOR, Bernardino. Alfredo Gaspar
Mendonca diz que bandido em Alagoas tem dois caminhos ou se entrega ou morre.
Disponível em:
http://cadaminuto.com.br/blog/bernardino/266689/2015/04/03/alfredo-gaspar-mendonca-diz-que-bandido-em-alagoas-tem-dois-caminhos-ou-se-entrega-ou-morre.
Acesso em 07 de abril de 2015.
VARJÃO, Suzana. Micropoderes
macroviolências – mídia impressa aparato policial. Salvador: Edufba, 2008.
VASCONCELOS, Ruth. O poder e a
cultura de violência em Alagoas. 2ª ed. Maceió: Edufal, 2014.
_______; PIMENTEL, Elaine (orgs).
As faces da segurança pública e dos direitos humanos em Alagoas. Maceió:
Edufal, 2011.
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